Quem é a autora negra que mesmo sem contrato grande será lida por milhões?

FONTEECOA, por Marcos Candido
Escritora Cidinha da Silva (Foto: Elaine Campos)

A escritora Cidinha da Silva tem 17 livros publicados, foi vencedora de um Prêmio da Biblioteca Nacional em 2019 e tem obras traduzidas para o alemão, catalão, espanhol, francês, inglês, italiano. Mesmo na ficção, manteve uma escrita sobre africanidades, feminismo e racismo.

Desde setembro, o livro “Os nove pentes d’África” (Mazza Edições) pôde ser encomendado por professores de escolas públicas de todo o país para alunos do 6º ao 9º ano do ensino fundamental. Diretores e professores que escolherem o título receberão um guia para usá-lo em sala de aula.

Isso significa que o governo federal poderá bancar a história de Francisco Ayrá e seus nove pentes milhares de estudantes. Cada objeto na obra de Cidinha possui uma espécie de dom especial e foram criados para presentear os filhos e netos de Vô Francisco.

O livro foi publicado há mais de dez anos e é parte da bibliografia que tornou Cidinha conhecida e lida, mesmo sem contrato com editoras em larga escala. “Os processos de negociação com editoras bem estabelecidas no mercado e com muito poder de fogo são longos, delicados e detalhados”, explica ela, também editora da Kuanza Produções.

Editoras grandes passam a promover autores negros

Nos últimos meses, grandes editoras como a Cia. das Letras anunciaram investimento em autores negros para promover diversidade e enfrentar a pressão social por mais representatividade.

Estudiosos também têm resgatado autores negros, como Lima Barreto, e revisto a negritude de Machado de Assis, autor negro retratado como branco. “A estratégia de embranquecimento da imagem do Machado é estrategema da branquitude”, defende a escritora. “Os brancos sempre sabem quem é negro e estarão prontos para subaltenizar a negritude”.

Neste cenário peculiar, a bibliografia de Cidinha manteve-se ainda mais cultuada nos meios literários.

A autora acredita que une as narrativas místicas e a compreensão de mundo determinada pelos orixás com elementos do mundo contemporâneo. A união é um dos elementos para o sucesso de “Um Exu em Nova York”, livro vencedor na categoria de contos do Prêmio da Biblioteca Nacional no ano passado.

Neste semestre, Cidinha assinou um contrato com a Autêntica, editora de maior porte, para a publicação de um livro para crianças chamado “O Mar de Manu”. A história se passa entre Burkina Faso, Mali e Níger, três países que não são banhados pelo mar.

“A cartilha exúnica me orienta sobre como negociar no mercado e não me queixo, estudo direitinho, aplico as orientações e tenho obtido êxito”, diz. Leia abaixo a entrevista da autora a Ecoa.

Ecoa – Você escreve que o processo para “Pentes” ser enviado ao PNLD foi difícil. Poderia explicar como se dá e quanto tempo leva para que um livro integre o plano? Quais foram os desafios?

Cidinha da Silva – Creio que eu disse que foi um processo duro, renhido, porque envolve muitas disputas que começam dentro da própria editora. Eu posso reivindicar que a casa editorial inscreva meu livro e ela pode dizer, “tenho aqui 10 autores adequados ao processo, preciso escolher” e essa escolha é feita considerando os melhores interesses da editora. Quem cuida disso [escolha e inscrição] são as editoras, não as autoras. É um processo de uma política pública de formação de acervo de literatura nas escolas públicas, e como tal tem rituais e prazos muito definidos que passam por inscrição das obras no FNDE para análise por uma comissão de especialistas que de acordo com critérios públicos, define os livros que irão para o PNLD daquele ano. Quando disse que o processo é duro é porque isso começa dentro da própria editora, por exemplo, “Os nove pentes d’África” é de 2009 e me parece que só agora, em 2020, foi a primeira vez que a editora o inscreveu numa disputa em nível federal dessa magnitude, com a possibilidade de que milhares de exemplares sejam adquiridos. Por que só agora? Não sei, foi uma avaliação da editora. Tem também a disputa externa com as grandes editoras que têm máquinas de lobby fumegantes. As editoras pequenas não fazem lobby, não têm bala na agulha para isso. Depois tem o processo de escolha nas escolas, existe muita desinformação e a gente tenta suprir isso com a publicidade incisiva e efetiva da obra.

Queria que você falasse um pouco mais sobre o que você chama de tensão entre tradições africanas, afrobrasileiras, diaspóricas e afroindígenas. O que há de comum entre elas?

Eu problematizo tensões e diálogos dessas tradições com a contemporaneidade, não entre elas. Meus livros “Os nove pentes d’África” (novela), “Kuami” (romance para crianças), “Um Exu em Nova York” (contos) e “Exuzilhar” (crônicas) são exemplos elucidativos dessa linguagem de tensão e diálogos entre tradições e contemporaneidade. Isso para responder à primeira parte da pergunta, quanto ao que há em comum entre essas tradições, me parece que o fulcro são as matrizes africanas das tradições afrobrasileiras e afrodiaspóricas. As tradições indígenas, por sua vez, têm muito em comum com as tradições africanas, são povos originários – por isso dialogaram tanto na construção disso que chamamos Brasil.

Outra questão é sobre a orixalidade. O que há na estética artística dos orixás que lhe chama mais atenção?

Não sei se orixás têm uma “estética artística”, eles são uma cosmogonia, eles expressam por meio de seus itãs, de suas narrativas míticas, uma compreensão do mundo. Mais do que isso, eles constroem o mundo a partir de uma determinada ética. Sou eu que bebo dessa ética para construir uma “estética artística”.

Há uma crescente de incômodos entre intelectuais negros de serem convocados pela imprensa somente para opinar sobre racismo, por exemplo. Sua literatura passa por isso, mas não em temas centrais. Você sente incômodo semelhante?

Sim, mas só falo o que quero e quando quero, seja porque não aceito jogar esse jogo, seja porque quando topo participar é para falar com absoluta liberdade.

Qual foi seu primeiro livro favorito? E qual foi o último?

O primeiro, “Niketche: uma história de poligamia” (Paulina Chiziane)”, e o mais recente, “Estação das sombras”, de Léonora Miano.

“Pentes” foi selecionado para ir para as escolas. Na escola, você teve acesso a livros de autores negros, homens ou mulheres?

Na escola li Machado de Assis e Lima Barreto. Aos 16 anos li um livro chamado “Raça e cor na literatura brasileira”, do David Brookshaw, que recentemente se tornou meu “amigo” numa rede social. Esse livro me descortinou um universo no início do terceiro ano de ensino médio e tive contato com uma multiplicidade de autorias negras que passei a buscar. Tive informação de que a editora Figura de Linguagem (Porto Alegre) vai reeditar esse livro que, certamente, será útil para muita gente.

Se pudéssemos concentrar um tema em comum entre autoras negras contemporâneas, o que as une? A gente também consegue traçar um aspecto estilístico comum?

Olha, estou pensando nisso agora, pois tenho mesmo interesse pelas singularidades, mas talvez o trabalho com a memória seja algo que jaz como substrato em boa parte das obras. Obviamente, a experiência de sermos mulheres negras em um país extremamente racista, também atravessará de alguma forma tudo o que escrevermos (não sei se nos une, mas nos marca).

Você publica há anos e tem muitos leitores. Você já recebeu proposta de editoras em em escala maior, como selos da Cia. das Letras ou Record? Se sim, por que não foi para frente?

A gente tem no Brasil entre cinco e dez editoras enormes, conglomerados que contam com forte capital estrangeiro e estratégias globais de escolha de autores, impressão e circulação de livros, e tem também editoras grandes de capital próprio, como a Autêntica (MG). Aliás, como o processo está finalizado, posso divulgar que assinei contrato com a Autêntica para publicação de um livro para crianças chamado “O mar de Manu”, uma história que se passa em África, em algum lugar entre três países que não são banhados pelo mar, o Níger, o Mali e o Burkina Faso. Os processos de negociação com editoras bem estabelecidas no mercado e com muito poder de fogo são longos, delicados e detalhados. Por princípio de vida, não falo sobre coisas que estão em processo, aprendi que a gente perde energia ao fazer isso. A energia deve ser colocada no processo e não deve se dispersar no blábláblá em torno dele. Deve-se falar na hora certa, a hora agora é de silêncio, concentração no propósito e metas. Afora isso, trabalho, trabalho e mais trabalho.

As mesmas grandes editoras, em especial a Cia., dedicam-se agora na criação dos chamados de núcleos de diversidade para a promoção de autores negros, indígenas, LGBTs etc. Qual sua opinião sobre este tipo de ação?

Elas são espertas e inteligentes, estão atentas ao mercado e suas flutuações e já compreenderam que existe um público ávido por consumir as histórias que criamos, público de gente nossa e público de fora dos nossos grupos. Parece-me que cada escritora e escritor dos grupos mencionados por você deve ter a sabedoria e liberdade de analisar e definir o que é mais adequado ao seu projeto literário e de carreira. Tem gente que não tem projeto literário, tampouco de carreira e tudo bem também. Tem gente que prefere se organizar em coletivos e falar pela voz desses coletivos e me parece algo igualmente valoroso. As pessoas só não podem falar umas pelas outras sem autorização. Refiro-me, principalmente, a certo grupo de intelectuais ligadas à universidade, que demoniza as editoras grandes e se arvora em falar em nome das escritoras negras no sentido de “boicotar” essas editoras. Eu converso com as editoras que me procuram, recebo convites, apresento minhas propostas e negociamos. Em outros casos, eu procuro pelas editoras e apresento meus projetos. A cartilha exúnica me orienta sobre como negociar no mercado e não me queixo, estudo direitinho, aplico as orientações e tenho obtido êxito.

Autores como Lima Barreto e Machado de Assis tiveram suas biografias resgatadas pela fatia de larga escala do circuito literário e na academia. O que poderia ter sido diferente em relação a Machado, se sua identidade racial tivesse sido reconhecido antes, até mesmo em vida?

Mas quem esqueceu algum dia que Machado era negro? Quem é que pensa que ele pôde em algum momento se passar por branco no Brasil negro do século 19? Quem acha que os garçons brancos da Confeitaria Colombo não torciam o nariz por servir café e guloseimas a um negro? Que não faziam piada entre os pares, “olha lá, um preto se achando gente!?” A estratégia de embranquecimento da imagem do Machado é estratagema da branquitude fartamente conhecido no sentido de esvaziar a população negra de seus ícone possíveis, mas daí a pensar que Machado viveu uma vida de branco ou de quase branco, é algo de uma criatividade que não alcanço, é inverossímil, não tem sustentação lógica. Os brancos sempre sabem quem é negro e serão cruéis ao dizê-lo aos tontos que quiserem fugir de sua negritude, farão isso todas as vezes que julgarem estratégico e necessário. Eu vou repetir, os brancos sempre sabem quem é negro e estarão prontos para subalternizar a negritude de acordo com os interesses do momento. Eu não tenho qualquer fantasia de que as coisas pudessem ser diferentes disso no século 19 do Machado.

Cidinha da Silva
Livros disponíveis, como “Os nove pentes d’África” em Kuanza Produções.

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