Quem se comove com a morte de Priscila Diva?

Priscila Diva, mulher trans de 29 anos, foi encontrada morta em Mairiporã (SP)

FONTEFolha de São Paulo, por Jéssica Moreira
Priscila Santos, conhecida como Priscila Diva, é considerada uma das primeiras mulheres trans de Perus (SP) Priscila Santos (Arquivo pessoal/Imagem retirada do site Folha de São Paulo)

Em vez de estar escrevendo este texto, eu esperava ver uma multidão reunida cobrando justiça pela morte de mais uma mulher trans: Priscila Santos. Conhecida como Priscila Diva, tinha 29 anos, nasceu e cresceu no mesmo lugar que eu: Perus, periferia de São Paulo.

O mesmo lugar que não impediu que Priscila entrasse para a triste estatística de pessoas trans que não chegam aos 35 anos de idade. Para a triste estatística do país que mais mata pessoas trans no mundo.

Nesta quinta-feira (24), amigos, amigas e a família de Priscila se despediram dela no Cemitério Dom Bosco, também em Perus. No passado, este cemitério foi o destino final de diversas vítimas da Ditadura Civil-Militar em uma vala clandestina comum.

Priscila foi encontrada morta na última terça-feira (22) no município de Mairiporã, na região metropolitana de SP. Na quinta-feira (17), ela saiu de casa por volta das 21h, horário em que costumava trabalhar. Diferente dos outros, nesse dia Priscila deixou a casa apenas de chinelo, short e top, sem celular ou documentos. Como lembrou sua mãe durante o velório, fez o de sempre: “deu uma volta, jogou o cabelo e foi”.

Naquela quinta, foi vista pela última vez na Rua Mogeiro, com a Av. Dr Silvio de Campos, também em nosso bairro. “Nós ficamos atrás dela, perguntando para muitas pessoas”, conta a irmã, Suellen Teixeira, que chegou a ir até hospitais e publicar anúncios de busca nas redes sociais. Infelizmente, foi encontrada morta em Mairiporã e levada para o Instituto Médico Legal (IML) do município vizinho, Franco da Rocha.

“O caso é investigado pela Delegacia de Franco da Rocha. A equipe da unidade trabalha para elucidar os fatos e prender o autor. Mais detalhes serão preservados para garantir a autonomia do trabalho policial”, disse em uma nota curta e genérica a Secretaria de Segurança Pública do estado de São Paulo, enquanto eu ainda estava no cemitério esperando o enterro.

A família também vem tentando desmentir as notícias falsas sobre o estado que seu corpo foi encontrado. “Meu marido e meu irmão reconheceram o corpo. Ela não teve o cabelo raspado, nem suas partes íntimas mutiladas como tem sido falsamente disseminado pelo bairro”, aponta a irmã Suellen, que exige o mínimo de respeito neste momento de tanta dor para a família.

Democracia para quem?

Daqui a alguns dias, completam-se 58 anos do Golpe de Estado. Faz mais de 30 que a tivemos a reabertura da democracia. E eu me pergunto que democracia é essa que vivemos, onde mulheres como a Priscila são vítimas de ódio pelo simples fato de serem quem são?

Eu realmente quero acreditar que a morte de Priscila não fosse apenas mais uma nota de uma assessoria de imprensa, que as vozes e cartazes de seus amigos serão ouvidos: justiça para Priscila, justiça para Priscila.

Família e amigos cobram justiça pelo assassinato de Priscila Diva – Foto: Jéssica Moreira

Embora contemporâneas e conterrâneas, ela com quase 30, eu com quase 31, eu e Priscila não chegamos a nos conhecer. A distância de um viaduto nos separava. Ela cresceu no Recanto dos Humildes, estudou na Escola Municipal Jairo de Almeida.

Eu até cheguei a vê-la pelas ruas do bairro, mas ouvir seus amigos me fez pensar quanto eu gostaria de ter trocado uma ideia com ela. Mesmo que fosse dessas bem rápidas, esperando o ônibus ou na fila de um estabelecimento na região e ouvi-la dizendo “Ai, que tudo”, como relembrou a amiga Flávia dos Santos: “tudo que eu precisava eu conversava com ela. Era uma menina incrível. A Priscila foi morta de tal maneira que nem eu acredito. Pra mim, isso está sendo um choque. Eu quero justiça pela minha amiga. Quero muita justiça, o que fizeram com ela não vai ficar impune”.

Para além da morte, quem foi Priscila em vida?

Nascida em 11 de dezembro de 1992, Priscila era filha de Dona Irene dos Santos, irmã de Suellen, Luana, Diego, Taise e Diógenes. Seus sobrinhos e sobrinhas, mesmo sem entender sua partida, choravam a saudade da tia.

Todos os amigos com quem conversei durante o velório diziam a mesma coisa: ela era alto-astral, alegre, extrovertida, brincalhona.

“Era uma pessoa muito extrovertida. Alegre e sorridente. Falava bem. Estava sempre bem arrumada. Era muito especial para muitas pessoas”, é o que, em meio ao turbilhão de informações e emoções, diz a irmã Suellen Teixeira.

Priscila era também uma inspiração para muitas delas e deles. Um de seus amigos, o Talysson Ferreira, a considerava uma das primeiras mulheres trans de Perus.

“Eu acompanhei a trajetória dela e o sofrimento, porque não foi fácil. Não é fácil para nenhum de nós. Pra mim, ela foi a diva, ela que iniciou como uma mulher trans aqui em Perus. Sofreu muito para iniciar e tomar uma atitude e dar força a outras mulheres, porque nenhuma tinha coragem ainda”, diz Talysson.

“Ela deu coragem a todas para se assumir e ter orgulho de ser o que é. Única rainha que vai ter aqui em Perus. A nossa diva de Perus”, conta, emocionado, o amigo Talysson.

Sua fala me fez lembrar de uma entrevista que realizei com Erika Hilton: primeira vereadora trans da Câmara Municipal de Vereadores de SP que, inclusive, cresceu vindo à casa de sua avó, em Perus. Desde o começo de sua campanha e em meio ao mandato, Erika já recebeu inúmeras ameaças de morte.

“Ser a primeira mulher trans a ocupar esse lugar também exemplifica porque o Brasil é o primeiro país do mundo que mais mata mulheres trans e travestis”, disse a vereadora.

Lembrei também de Xica Manicongo, citada outro dia pela Linn da Quebrada, a segunda mulher trans a estar no Big Brother Brasil em 22 edições.

Reconhecida como a primeira travesti da história do Brasil, Xica foi sequestrada do Congo, escravizada e vendida a um sapateiro em Salvador (BA), em meados do século 16. A exemplo de reis e rainhas de sua terra natal, caminhava vestindo um pano sobre a cabeça e não aceitava ordens. Isso lhe rendeu uma acusação de crime de sodomia à Inquisição da Igreja Católica. Para sobreviver, deixou de se vestir como realmente gostava e aderiu às vestimentas tradicionais. Você pode conhecer mais sobre ela por meio da pesquisa da professora Jaqueline Gomes de Jesus.

Lembrei de Kátia Itapety, primeira mulher trans eleita no Brasil, em 1992, em Colônia do Piauí (PI). Lembrei de Érica Malunguinho, a primeira mulher trans a ocupar uma cadeira como deputada estadual em todo o Brasil.

Lembrei da ativista Marsha P. Johnson, que, em 28 de junho de 1968, lutou pelo fim da discriminação no Bar StoneWall Inn (EUA), enfrentando a violência policial rotineira no lugar, frequentado por pessoas LGBTQI+ de baixa renda. O dia do orgulho, em junho, tem suas origens neste episódio.

Lembrei das entrevistas que realizei com mulheres trans na política para o Nós, mulheres da periferia. Lembrei d falta de representatividade. A violência política de gênero e as tantas ameaças de morte que elas sofrem ao longo de seus mandatos. Da invisibilidade de seus corpos na mídia. Da falta de oportunidade educacional ou de trabalho, como bem mostra Caê Vasconcelos, jornalista e homem trans, em seu livro Transresistência.

Para Caê, o assassinato de uma pessoa trans é a etapa final de um processo de exclusão conectado à transfobia estrutural de nossa sociedade.

“Quando o corpo trans tomba, chegando a um assassinato, é importante dizer que a ponta do iceberg estava muito profunda. No livro, eu falo sobre mercado de trabalho. Vivemos em uma sociedade capitalista, se não temos trabalho, como vive? Se você é expulsa de casa quando é jovem. Se você não consegue concluir a escola (ou consegue depois de enfrentar muita transfobia). Quando há o assassinato, muita coisa aconteceu antes. Tudo está conectado à transfobia estrutural”, diz o jornalista.

Segundo dados da Transgender Europe (TGEU), o Brasil registrou 41% de todos os casos de assassinatos de pessoas trans em todo o mundo. O último relatório da ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) mostra que, em 2021, aconteceram, ao menos, 140 assassinatos de pessoas trans, sendo 135 travestis e mulheres transexuais, e cinco casos de homens trans e pessoas transmasculinas. Em 2020, a organização mostrou que o número de mortes violentas chegou a 175. A maioria das vítimas eram negras.

‘Medo de sair e não saber se vamos voltar’

Enquanto eu me lembrava de tudo isso, as sobrinhas e os sobrinhos da Priscila choravam a morte da tia que não vai mais vê-los crescer. Eu observei amigas, inclusive outras mulheres trans, com medo. “Poderia ser a gente”, ouvi uma dizendo para a outra.

“Eu estou profundamente chocada, porque essa não é a primeira vez que isso acontece em Perus”, diz a amiga Safira Rodrigues de Souza, também uma mulher trans. “Passam-se os anos, quando achamos que passou um pouco o trauma, novamente acontece com a Priscila. Onde vamos parar? Uma coisa é você ter medo de sair e de ser assaltada. Outra coisa é você ter medo de sair e não saber se vai voltar. Da mesma forma que fizeram com elas, vão querer fazer com a gente. Acho que alguém deveria tomar providência. Tem gente que até aceita, mas depois que bebe uma ou duas, aí começam a humilhação. Tem quem xingue e tem gente que se junta e agride a gente”, lamenta Safira.

Ali, naquele cemitério, em que já estive tantas vezes, em tantos lutos, eu me vi pequena e triste. Me vi tentando montar um mosaico de uma biografia que eu poderia ter contado quando ela ainda estava ali, viva. Por que eu nunca entrevistei as mulheres trans do meu bairro? Eu me vi impotente, enquanto parte da sociedade, enquanto parte dos movimentos que integro: negro, periférico, de mulheres. Enquanto jornalista que cobre, diariamente, a periferia. Enquanto jornalista que quer desmitificar a morte e o luto.

Como falar sobre isso num território onde você não sabe se vai voltar para casa? Onde uma família como a de Priscila precisou realizar uma vaquinha online urgente para arrecadar R$ 2.500 para transportar seu corpo até Perus. Eu me senti vazia. A estatística está bem ao nosso lado, e o que nós estamos efetivamente fazendo?

Eu tinha prometido pra mim mesma não escrever mais sobre a morte das mulheres que vêm de onde eu venho. Eu prometi a mim mesma escrever sobre elas em vida. Eu prometi, mas a Priscila morreu e não havia nenhuma reportagem sobre sua morte, tampouco sobre sua vida e trajetória, que vão muito além desse assassinato.

“Não existia tristeza perto da Priscila. Qualquer pessoa que chegasse triste perto dela rapidinho ela levantava o astral com o jeito dela brincalhão de ser”, conta Safira.

Hoje, além dessas reflexões que dividido com vocês, há uma reportagem no Nós, mulheres da periferia, replicada também na Ponte Jornalismo e no Jornal Cultural Perus e Anhanguera.

Embora esse texto seja um lamento, ele também é um grito para você que chegou até aqui. Grito este que eu deixo na voz de Jaqueline Gomes de Jesus, no prefácio do livro Transresistência, de Caê:

“Que as palavras, mais do que informarem e mexerem com a sua cabeça, o(a) formem, toquem o seu coração. Que você também faça parte da transresistência, promovendo a inclusão e a cidadanização das pessoas trans por meio das palavras e das ações mais cotidianas, fazendo revolução no universo do qual você faz parte, e indo além. Repudie a ridicularização das vidas trans. Não se considere melhor do que alguém só porque você é cis”.

Justiça para Priscila Diva!


Jéssica Moreira é escritora e jornalista. Coautora do Blog Morte Sem Tabu e Cofundadora do Nós, mulheres da periferia

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