Quem tem direito ao luto?

FONTEPor Gisele caroline dos Santos Monteiro, enviado ao Portal Geledés
Protesto no Jacarezinho após operação policial que deixou 28 mortos (Foto: REUTERS - RICARDO MORAES)

Três anos atrás decidi voltar a atender na clínica após ouvir de muitas pessoas próximas o quão traumático havia sido a experiência de falar sobre si para o terapeuta ou analista e me questionei seriamente se não poderia tentar de alguma forma voltar e aprender a ouvir melhor. Essas pessoas que se queixavam em sua maioria são pessoas LGBTI, pretas, favelados, pessoas com dores exploradas comercialmente e que ainda assim seguem invisíveis.

Um desses casos, o de uma amiga muito querida, onde a terapeuta a questionou sobre a dificuldade de reconstituir sua árvore genealógica, frisando na necessidade desse processo para o seguimento do trabalho, mas a terapeuta não entendia que sua árvore era composta por ancestrais que ficaram na travessia, por crianças que não nasceram, por tias, tios, primos, irmãos, mães e pais que não necessariamente são familiares consanguíneos. Ela não entendia sobre configuração familiar preta, periférica e não há problema em não saber, por isso é tão importante nossa escuta.

Desde o início da pandemia, voltamos a enfrentar a lidar de forma mais direta com as desigualdades visíveis e nesse cenário onde alguns podiam ficar em casa e tantos outros precisaram ir para rua nos deparamos com as diversas formas de viver o luto.

Todos nós, de alguma fora, no último ano vivemos o luto e lidar com o luto do outro é uma das experiências humanas mais humanas, aprender a lidar, respeitar e ouvir, ouvir muito, nos leva a buscar entender o que é melhor fazer para aquela pessoa, aquele amigo, aquele familiar considerando as subjetividades do luto.

Aprendemos que cada luto é único, mas não sei se aprendemos que todos os lutos são duros, profundos e precisam ser cuidados. Recorro a Judith Butler para tratar sobre ungrievable lives – as vidas que não seriam passíveis de luto (2016), vidas de indivíduos que desde sempre são vistos socialmente como precárias, finitas e que não tendem a despertar os mesmos afetos de outras vidas, em especial quando deixam de existir e passam a fazer parte do luto de outros.

Em dezembro do ano passado no município de Belford Roxo, bem próximo ao local onde vivi, 3 garotos, Lucas Matheus (8 anos), Alexandre da Silva (10 anos) e Fernando Henrique (11 anos), é preciso falar seus nomes, desapareceram a luz do dia sem deixar rastros, ou melhor, sem que a polícia encontrasse seus rastros. Desde então vimos um silenciamento da mídia, das redes e a ausência de uma movimentação coletiva no sentido reivindicar ações para encontrar esses meninos no leva novamente a manifestar que nem todas as vidas serão consideradas, não somente no espaço clínico, mas na sociedade.

Essa semana o delegado do caso levanta uma hipótese acusatória contra as crianças em meio a investigação afim de justificar o desparecimento, curiosamente isso acontece uma semana após reportagem sore o caso passar no programa Fantástico da Rede Globo. Independente da linha investigativa, ao ler a notícia pensei nas famílias, pensei na dor dessas famílias sem saber se seus filhos estão vivos ou não e agora com essa linha que a polícia segue, seus corpos pretos que já não despertavam tanto interesse coletivo, tantos afetos positivos, passam a ser vistos como corpos desviantes ocupando o lugar que o estigma os atribui desde o nascimento.

Nesse contexto me pergunto, quem pode chorar suas dores, quais mães são escolhidas para viver seu luto, quais indivíduos são ouvidos sobre suas perdas e quais precisam lidar com suas perdas como se não tivessem acontecido, pois a pessoa que perderam era um corpo desumanizado.

Poderia citar a recente chacina do Jacarezinho, a morte de Lorena, mulher trans morta de forma desumana em uma clínica, poderia seguir falando dos milhares de pessoas que estão nas ruas trabalhando em meio a pandemia e instigar para pesarmos como e quem elas são, mas eu quero hoje falar da importância da nossa escuta.

Precisamos ouvir todas as histórias, considerarmos todas as histórias e atualizarmos nossa prática para que seja possível acolher toda as dores. Acolha a dor e olhe a cor, olhe o gênero, a origem, a deficiência, olhe a diferença, considere a diferença e se para acolher for preciso mudar a teoria é isso que vamos fazer, nós estamos aqui para isso. Não faz sentido seguirmos se não for dessa forma.

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 
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