Quem tem direito de sentir raiva?

FONTEPor Fabiane Albuquerque, enviado ao Portal Geledés
Fabiane Albuquerque e “Cartas a um homem negro que amei”. (Fonte: Arquivo FA)

A raiva, enquanto afeto humano, legítimo e saudável, é um tema que estou tentando colocar na sociedade brasileira, no debate público, mas encontro tantos impedimentos, que é preciso ir profundamente nas nossas estruturas sociais para dar conta da missiva. O povo brasileiro é uma criação, identidade nacional é criação, cultura é criação e, para isso, os mitos são grandes auxiliares. Para nós, de cima para baixo, impuseram um silêncio gritante sobre as opressões, desde as marcas da escravização e da colonização, à ditadura militar e outras formas de produção de desigualdades geradas pelo sistema capitalista. Os mitos aqui jogam um papel importantíssimo, aquele da escravidão portuguesa ter sido mais branda, da nossa mestiçagem consentida, da cordialidade do povo brasileiro e da democracia racial, são exemplos de como camuflamos a raiva do povo, para não provocar rupturas. Quem ousa levantar o véu e olhar atrás dos bastidores, é visto como raivoso. Evitamos o confronto, evitamos passar por povo ranzinzo, reclamão, briguento, afinal, somos “alegres por natureza”. E, se cada um aceitar o seu lugar, sem pestanejar, podemos viver nesta maravilha chamada Brasil. Criaram uma alegria como produto de exportação “de uma gente que ri quando deve chorar”, como canta Milton Nascimento. Reprimimos certos afetos ou paixões tristes, como decepção, tristeza, revolta e raiva. O povo brasileiro não é só alegria e carnaval, o nosso sistema de produzir felicidade, reprime o que pode incomodar, confrontar, desestruturar. Na base, a gente engole as tiranias diárias ou as desconta no mais próximo, para não respingar nas autoridades brasileiras, na burguesia (patrões, chefes de instituições etc.).

Outro dia, conversava com uma grande amiga dos tempos da vida religiosa em que éramos duas jovens negras, freiras, numa ordem alemã. Nossa amizade dura há anos e as nossas estradas são bem diversas. Ela falava da situação de desempregada, de como é criar sozinha os dois filhos numa favela de Minas Gerais, sem nenhuma rede de apoio. A certo ponto, ela parou o desabafo e disse: “Mas tá bom, não podemos reclamar da vida, senão atraímos mais coisas ruins”. Lhe respondi dizendo que ela podia reclamar, sim, e até manifestar raiva por estar tentando sobreviver num sistema que, desde que ela nasceu, a empurra para a margem. E não é por falta de esforço, pois ela trabalha desde menina em casas de famílias, passou a infância e adolescência sem salário, sem nenhum direito social, quando já poderia estar aposentada. E, no momento, é explorada, com a saúde frágil, em empregos precários nas redes de Ifood. O que fizeram com a gente que não temos nem o direito de manifestar o que sentimos?

No dia 19 de novembro, a Folha de São Paulo reproduziu uma matéria do The New York Times intitulada “Raiva pode ter impacto positivo na motivação; veja como canalizar o sentimento.” A matéria diz que, como uma emoção legítima de existir, é “mais satisfatório do que ser incessantemente positivo”. O estudo sobre a questão foi publicado na revista Journal of Personality and Social Psychology, da Associação Americana de Psicologia. O foco, no entanto, é na produtividade, como sempre, pois o lucro e os resultados estão intrínsecos na sociedade estadunidense. Mas, o estudo é importante neste momento em que a Positividade ganhou todos os terrenos da vida, entrou no tecido social e impregnou-se nas mentes de tal forma que virou quase um dogma. Além da psicologia, atingiu a economia, o mercado editorial, as publicidades etc. Ser positivo é o meio de alcançar a esperada felicidade. Que estrago! Esta ideologia tende a eliminar todos os afetos humanos que podem atrapalhar a tal “subida” rumo ao sucesso e o lucro das empresas, e a classificá-los como negativos ou ruins, quando só são, na verdade, humanos. Estes afetos, considerados maus, devem ser higienizados através de uma série de rituais: terapias, coachs, limpezas cármicas ou energéticas… 

O artigo precisou ser publicado primeiro nos Estados Unidos para ganhar alguma credibilidade na imprensa brasileira. E olha que os movimentos sociais de esquerda nunca descartaram a raiva! O tema ainda é visto como algo negativo, que deve ser rechaçado em nome da felicidade construída pela sociedade de consumo. O que, na verdade, acoberta os conflitos de classe, raça e gênero no Brasil. Eu estou a mais de um ano tentando publicar dois livros, um com o tema da raiva e outro com o tema do ressentimento, numa perspectiva contra tendência.  Mas não encontro mercado no Brasil para isso. Uma editora renomada até teve a curiosidade de ler um dos manuscritos e a própria proprietária escreveu-me dizendo que o tema lhe chamou a atenção, mas ela preferia ver as coisas com esperança. Ora, em nenhum momento eu nego a esperança como caminho para uma sociedade mais justa, mas, apresentar uma estrada mais “doce”, “limpa” de alguns afetos é sempre preferível para a maioria. 

Quando escrevi meu primeiro romance brasileiro Cartas a um homem negro que amei, diversas pessoas o leram antes de ser publicado pela Editora Malê. Uma dessas pessoas, mulher branca, disse-me: “você tem que dizer que não está com raiva”. Logo pensei: “porque eu tenho que dizer isso? Porque eu tenho, como mulher negra, que justificar em um livro os meus afetos?” A narrativa tem momentos de raiva, mas também de ternura, esperança, angústia, sofrimento, otimismo… Porque só a raiva precisava ser justificada e até desaparecer? Obviamente, não segui o seu conselho. Cabe ao leitor vivenciar ou não os afetos dos personagens. 

Na França, onde moro atualmente, é a socióloga Eva Illouz, franco-israelense, quem denuncia a conivência da ideologia do positivo com os interesses capitalistas. Para a autora de Happycracie, afetos como a raiva, ressentimento e tristeza estão sendo censurados em nome da resiliência, da positividade e de uma esperança que não encara a história pelo que é. Eu também tenho esperança, senão, não lutaria por um mundo melhor. Acontece que acho imprescindível legitimar alguns afetos descartados e estigmatizados como parte da transformação do mundo.

Mas onde eu quero chegar? Quero falar do povo brasileiro e do meu povo negro em relação à raiva. Estes últimos sofrem com o estigma deste afeto nas suas falas, olhares, escritas, militância etc. Chamar um negro ou uma negra de raivosa é uma forma de nos reduzir a animais. Já diz Patrícia Hill Collins, a imagem da negra raivosa é uma Imagem de Controle, usada para que não ameacemos os privilégios da branquitude. Acontece que com esta imagem colada em nós, tendemos a nos defender negando a raiva, adotando, muitas vezes, uma atitude de docilidade servil, como única forma de se livrar do rótulo e obter reconhecimento social. Isso é extremamente danoso para a nossa saúde e para a nossa luta. No patriarcado branco capitalista, homens sempre foram autorizados a demostrar a sua, enquanto nas mulheres, a raiva é vista como ausência de feminilidade. Algumas feministas brancas, no entanto, se libertaram desta prisão, demonstrando a sua abertamente ou de forma passivo agressiva, ou seja, “cutucando” pessoas negras e se fazendo de vítimas assim que reagimos. Mas negros e negras não podem expressar a sua.

Durante o governo Bolsonaro e todas as medidas anti-povo adotadas por ele e a sua equipe, uma feminista branca comentou nas redes sociais, sobre um dos desmandos do inelegível, nos seguintes termos: “Que raiva!”. Achei interessante a sua liberdade de expressar o seu afeto quando, semanas antes, diante de uma postagem minha sobre racismo, ela comentou: “Quanta raiva!” Naquele momento da postagem eu não estava com raiva, mas pensei na encruzilhada que nos encontramos diante de gente branca: apontam raiva quando não sentimos e quando de fato sentimos, podemos expressá-la? A socióloga negra, feminista, estadunidense, Rachel Alicia Griffin, professora universitária, nos mostra o caminho no texto I AM an Angry Black Woman: Black Feminist Autoethnography, Voice, and Resistance. (Eu sou uma mulher negra com raiva: Autoetnografia de feministas negras, Voz e Resistência. Ela diz que mulheres negras têm inúmeros motivos para estarem com raiva e que, recorrentemente, ela mesma é interpelada sobre a sua: “Raquel, porque você está com raiva?” Ela completa: 

(…) é como se a expressão da minha raiva devesse vir acompanhada de um sinal de alerta, um pedido de desculpas e uma equipe de limpeza. Na maioria das ocasiões, a minha resposta é fazer perguntas de volta, dizendo: “Olhe para o mundo. Como posso não ficar com raiva? Como você pode não estar com raiva?”. Em um dia em que a insolência me sai pela ponta da língua, posso acrescentar: “Como o mundo inteiro pode NÃO estar com raiva?” Ao confrontar essas perguntas, descobri a utilidade de rastrear minha raiva de mulher negra por meio e entre as vidas de mulheres que se parecem comigo.

Ao longo do artigo ela expõe uma lista de coisas que a deixa com raiva. Este ato é expressão de liberdade diante deste afeto. Não são os brancos quem definirão quando e o porquê ela está com raiva, ela mesma é capaz de enumerar os seus motivos. Traduzi alguns deles abaixo:

-Estou com raiva dos europeus brancos que implantaram as raízes da violência sistêmica e do desrespeito insensível nos Estados Unidos quando criaram a instituição social da escravidão. 

-Tenho raiva dos negros africanos que venderam mulheres parecidas com eles para esse mesmo sistema traiçoeiro. 

-Tenho raiva do fato de que as condições da escravidão eram tão vis que muitas mães negras sabiam em seus corações que matar seus bebês lhes proporcionava mais alívio do que viver. 

– Estou com raiva de todos os fãs que compram qualquer álbum que se refira a qualquer mulher negra como uma vadia, prostituta ou traiçoeira.

-Também estou com raiva de Tyler Perry, por não usar seu talento para representar as mulheres negras como mulheres fortes e talentosas, apaixonadas por si mesmas por quem são e pelo que têm a oferecer.

– Estou com raiva da presença repressiva das mulheres negras na mídia.

-Estou com raiva porque a mídia desaprovou meu corpo de mulher negra birracial durante toda a minha vida. Para aqueles que supervisionam a degradação institucionalizada das mulheres negras na mídia, vocês acabaram de ser servidos. Tomem nota: meu corpo não é mais seu playground.

-Estou irritada com o fato de o mundo continuar olhando com desdém para as mulheres negras.

-Estou indignada com o fato de as populações marginalizadas continuarem presas em divisões políticas que minam o potencial de construção de coalisões em meio às nossas diferenças.

-Eu estou com raiva. Não sou histérica, doentia, maluca, excêntrica, tola, infantil, jovem, selvagem, primitiva, incivilizada, grosseira, rude, inadequada, lunática, mas justa e justificadamente com raiva.

Bem, a lista dela é grande e cada uma de nós tem a sua.  Espero (olha a esperança em mim!) que com coragem, possamos expressar para o mundo a nossa raiva. Não, não temos que limpá-la ou justificá-la, mas saber usá-la. Os fatos que a suscitam estão aí e, ao menos que as coisas mudem, temos direito de sentir raiva.


Fabiane Albuquerque, Ph.D. em sociologia, escritora e negra feminista.


** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.

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