Fonte: Brasil de Fato –
Cida Bento, do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades, fala sobre racismo, discriminação racial, intolerância e políticas de Estado
Estima-se que entre 120 e 150 milhões de pessoas na América Latina e Caribe sejam afrodescendentes. O número não é preciso, pois diversos países não incluem a variável cor/raça/etnia em seus recenseamentos e levantamentos estatísticos. A ausência de dados precisos dificulta o conhecimento sobre essa população e a elaboração de políticas públicas antidiscriminatórias. Em 2010, será realizada uma nova rodada de censos em diversos países latinoamericanos e o envolvimento da sociedade civil no processo é fundamental para mudar essa realidade.
A recomendação aos Estados para que incluam coletem, compilem, analisem, disseminem e publiquem dados estatísticos confiáveis acerca de indivíduos e grupos que são vítimas de racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata é clara no Plano de Ação de Durban (2001). A mesma recomendação foi reforçada na América Latina pela Declaração de Santiago (2008), produzida durante o Seminário-oficina Censos 2010 e a inclusão do Enfoque Étnico (2008), promovido por CELADE/CEPAL; UNICEF; UNFPA e CEA/CEPAL. A declaração reafirma a importância da desagregação de dados estatísticos por cor/raça/etnia e propõe um duplo desafio: esses dados devem ser incluídos nos censos de 2010; e são os próprios afrodescendentes que devem declarar sua cor, através da autodeclaração.
Maria Aparecida Silva Bento é psicóloga social e diretora executiva do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT) – entidade dedicada à pesquisa e ações para a superação do racismo, da discriminação racial e de todas as formas de discriminação e intolerância. Autora do livro Cidadania em Preto e Branco, ela explica a importância de dados estatísticos que permitam conhecer as populações afrodescendentes e defende uma campanha pública de conscientização com vistas aos censos de 2010.
Como o tema da desagregação de dados estatísticos, particularmente com relação à raça e etnia, foi tratado na Conferência da Revisão de Durban em Genebra?
A gente conseguiu manter o tema, mas na Conferência de Durban, em 2001, ele estava com muito mais nitidez e força no documento final. A inclusão do dado raça e etnia no censo e no sistema de informação é uma das principais bandeiras do movimento negro, mas na Revisão de Durban, em Genebra, houve um esvaziamento geral por conta do conflito palestinos e judeus. Mas como o tema é muito importante para nós, estamos batalhando para que ganhe força na nossa voz e nos documentos que decorrem da Conferência.
Mas o assunto chegou a ser discutido em abril deste ano em Genebra?
Chegou. Mas o tema da classificação racial e étnica incomoda alguns grupos, que alegam que isso poderia retomar o tempo do nazismo, quando a classificação racial era o ponto de partida para violações. Na verdade, no Brasil não tem sido assim. Existe classificação racial neste país há mais de cem anos: nos documentos da Secretaria de Segurança Pública, nos documentos necessários para adoção de crianças, está clara a pergunta lá, “qual é a sua cor?”, e você não vê grupos protestarem. Eles protestam quando a classificação étnico-racial aparece associada à luta por direitos.
Qual a importância de incluir a classificação étnico-racial nos censos e outros levantamentos estatísticos?
Ela ajuda a gente a perceber a situação diferencial dos segmentos, as desigualdades. É aí que a gente vai ver que a sociedade não funciona igualmente para todos. É aí que a gente vai ver que o Estado está fracassando, não assegura o mesmo serviço de saúde, o mesmo livro didático na educação. Se está fracassando, se a democracia está em xeque, a gente percebe quando levanta os dados e vê que existem tratamentos diferenciados para diferentes grupos.
Como a questão da desagregação de dados por raça e etnia nos censos tem sido abordada na América Latina?
De maneira descontínua. Alguns países nunca levantam os dados. Outros, como por exemplo o Uruguai, usam categorias similares às do Brasil, mas perguntam sobre a “ascendência”. Alguns países trabalham com a idéia da “ascendência”, outros com a idéia de “cor”, ou “raça”. A questão indígena tem sido muito fortemente colocada e isso remete à etnia – e você tem centenas de etnias -, enfim, é uma complexificação muito grande. Mas mesmo os intelectuais e ativistas mais progressistas procuram evitar o dado raça/etnia. Eles tratam a questão indígena, mas não a questão dos afrodescendentes. Eu senti muita resistência em todos os momentos em que a gente tocou nesse assunto. No Chile, no México, aqui no Brasil, é como se essa questão não devesse aparecer.
2010 é um ano importante, quando diversos países latinoamericanos farão recenseamentos. Que esperar dos levantamentos previstos? As propostas da Declaração de Santiago serão contempladas?
Primeiro, eu acho necessária uma campanha na América Latina como um todo, ajudando as pessoas a compreender a importância do dado raça/etnia e que não se busca o dado “cor” por uma questão de racismo, mas porque se percebe que ele faz diferença na maneira como são tratados os segmentos. Uma campanha para envolver, engajar as pessoas, debater. Com certeza vão emergir muitas questões com os dados coletados e se a sociedade civil participar de todo o processo será possível debater políticas públicas a partir deles. Ainda há muito tempo até 2010 e a batalha não pode parar, a gente tem que ficar pressionando, tem que colocar o assunto em relevo, não deixá-lo silenciar.
Qual a importância da autodeclaração de cor/raça/etnia nos censos e demais levantamentos estatísticos?
Alguns estudos feitos pela ONU mostram que o ideal é que você diga. É uma questão ética que está sendo colocada. Tem um processo que a pessoa tem que viver para se designar branca, amarela, parda, indígena. A identificação é uma conquista para cada um de nós, na medida em que a gente vive em sociedades que valorizam o tipo racial, o tipo branco. Todo mundo que não é branco pode ter dificuldade para dizer o que é, porque o desejo é ser sempre o mais valorizado. Eu acho que a autoidentificação é um processo que se vive até se conquistar aquilo que já se é. Se eu sou negra, quero poder falar sobre mim mesma como negra.
A autodeclaração deve ser o critério dos censos e demais levantamentos?
Com certeza. Há estudos no Brasil que comparam a heteroclaração (Heterodeclaração quer dizer quando o outra determina sua cor, etnia, etc) e a autoclassificação e não vêem muita mudança. Quando você vê que não tem tanta diferença entre as duas, percebe que a classificação é subjetiva. Eu acho que a autoclassificação torna o dado mais real, correto, confiável. É sempre um ponto de partida para pensar políticas públicas, pois já começa o processo quando você vai se autoidentificar. Ao tomar consciência do quão difícil é se dizer negra ou indígena às vezes, do significado que isso tem e de como isso pode ou não orientar as políticas, você vai perceber não só a diferença, mas também as desigualdades, e assim pode começar a pensar políticas públicas. Eu acho que a sociedade civil tem que acompanhar e monitorar o Estado muito de perto no trabalho que faz de censo, conceber junto, debater e depois pensar as políticas.
A República Dominicana vive uma situação crítica, de negação da cidadania aos/as afrodescendentes, com invisibilização dessas pessoas nos levantamentos estatísticos. A senhora poderia comentar este e outros contextos em que o desconhecimento dos dados sobre raça contribui para a discriminação?
É por desigualdades como esta que se resiste tanto a botar esses dados no censo. Uma parte da população que nunca está nos grandes centros urbanos, nos aeroportos, que nunca é vista por quem vem de fora precisa ser reconhecida – eu acho que os dados do censo podem ajudar. Em países como a República Dominicana, que vive uma situação dramática, mais do que nunca a ronda de censos de 2010 precisa ganhar visibilidade para que essas questões apareçam. A sociedade precisa debater os impactos do significado da cor/raça/etnia. Hoje, 75% das guerras no mundo têm base em raça/etnia, diferenças culturais. Às vezes a questão fica fragmentada, difusa para as pessoas. Falta debater o significado e o impacto disso no cotidiano, pois em casos como esse, será possível caminhar melhor: se traz a questão a público e aí as instituições podem se manifestar.
A senhora poderia comentar o peso da interseccionalidade de raça/etnia e gênero em relação ao contexto latinoamericano?
A situação da mulher negra é dramática, quando a gente vê os estudos em qualquer área, saúde, trabalho, educação. É o segmento mais penalizado. Em todos os lugares a situação se repete, mas talvez no Brasil seja a mais grave de todas. Quando raça/etnia e gênero se sobrepõem, as discriminações se reforçam, aparece o desemprego maior, muitas deficiências no acesso à saúde para a mulher. Ela caminha mais rápido em busca de escolarização que o homem negro, mas ainda está muito aquém dos outros segmentos.
De que maneira os censos podem ser trabalhados nas escolas e no âmbito das políticas educativas? Eles são instrumentos para discussão e atividades que dêem visibilidade à problemática da discriminação e promovam uma reeducação das relações raciais?
Eu acho que se deve trazer a discussão de que não existe raça, mas que o racismo enquanto construção social se faz presente. Tem que trazer essa questão para as crianças, ajudá-las a enxergar o tratamento diferencial que a sociedade oferece aos diferentes grupos e debater, pensar um conceito de democracia que nós não temos no Brasil. Os censos e demais levantamentos poderiam ser utilizados. Temos que adequar isso, para a criança entender e construir outro tipo de mundo. Em meu primeiro livro para pré-adolescentes, eu ajudo a entender a diferença da cor de pele, biologicamente constituída e socialmente usada para discriminar. Vários intelectuais já fizeram isso, então é pegar esse material e ajudar a criança a compreender por que o cabelo dela é de um jeito e o do amigo dela é de outro, a cor da pele, os lábios, o nariz. Não há diferença genética. Os estudos que foram feitos em 1950 para a ONU para saber se havia diferença entre os grupos continuam atuais. Ou seja, o problema não são as diferenças genéticas, mas sim as teorias sociais.
Com todas essas considerações, o que significa ser negro/a hoje?
Ainda é lutar para que a sociedade seja democrática, para que democracia e cidadania façam sentido. Não deveria ser, mas ainda é isso. Às vezes falo com pessoas que deveriam ser meus pares e preciso estar sempre lembrando que não dá para eles fazerem belos discursos sobre democracia e cidadania se 2/3 da população estão fora disso. Ser negro é ter que estar trazendo à tona essas questões.
Matéria original: Quero poder falar sobre mim mesma como negra