QUERO (QUEREMOS) FICAR: nota sobre respiração no litoral-periferia

FONTEPor Anderson Moraes Pires, enviado para o Portal Geledés
(Vsevolod Vlasenko/Getty Images)

Resumo: O presente texto visa explicitar reflexões sobre a experiência vivida de um estudante do curso de Psicologia, morador da cidade de Fortaleza, neste atual cenário da COVID-19, evidenciando brevemente a desigualdade social e racial na capital cearense. Observa-se, por exemplo, que o Homem, indivíduos brancos/as, promove a não existência de outros sujeitos. O ‘eu-meu’ do autor se entrelaça com o ‘nós-nosso’ ao longo do artigo, recuperando o sentido da coletividade, com influência de estudos da Psicologia Social. Por fim, não considera-se um texto-fim, pelo contrário, pode ser lido a partir de um lugar aberto para diálogos e trocas.

Vinte e três anos de habitação no litoral oeste da terra da luz parece ser o suficiente para conhecer todas fortalezas desta cidade. Porém, a cada momento percebo que não dá para contar os grãos de areia espalhados pela pista, nem a quantidade de telhas da minha sala, pois sempre algo grita por prioridade. O vento, por exemplo, já nem é também percebido, exceto nos dias de mais necessidade e que o corpo transpira.

Estar no lado da orla que ninguém ver é uma forma de também não existir. A partir do olhar de um Homem, considera-se que não há turismo, não há belas praias e tampouco a formação de sujeitos. Logo, não precisa de investimento, não precisa de uma atenção do Estado. O conceito de pensar medidas que atendam às pessoas-comunidades em suas especificidades é quase que inexistente. No entanto, o olhar do Homem está sendo questionado cada vez mais por Nós próprios. Nossa vontade de (rees)escrever e gritar nossas histórias, corpos e invenções é motor; transformação. 

Surge a necessidade de tentar apresentar brevemente quem são esses corpos que formam o Homem. Neste caso, não falo sobre uma pessoa específica, mas de um grupo dominante, que tem o capital, o poder de decisão e uma raça, por mais que não se percebam racializados, que não se percebam enquanto brancos/as. É esta dificuldade de se perceberem enquanto brancos/as que os/as fazem protagonistas, um exemplo, um marco. E, também não falo apenas de pessoas de fora. Infelizmente, estas pessoas estão geograficamente localizadas na própria capital e muitas seguem na tentativa de não reconhecer a potência do litoral oeste e das outras periferias.

Neste momento não consigo ver o mar, pois a COVID-19 está no bloco de areia que costuma ser ocupado pelos meus e na calçada da minha casa; se duvidar até aqui dentro. O espaço branco da cidade também está sem poder respirar, pois concentra o maior número de casos. Contudo, de uma forma que pode até parecer mágica para muitas pessoas, é ao meu lado, que não apresenta números tão altos de casos quanto o espaço da elite, que os corpos caem, sem chance de serem tocados pelo sol novamente. Fico feliz, enquanto aluno do curso de Psicologia, que esta ordem desigual está sendo questionada na academia há algum tempo, mas consigo me sentir até um pouco desesperançoso ao ver e sentir que a estrutura desigual pouco se movimentou.

Existem momentos de reflexão sobre a minha própria realidade, que é compartilhada com os meus pares, inspirados nos escritos do livro As artimanhas da exclusão: análise psicossocial e ética da desigualdade social, organizado por Bader Sawaia. E, de fato, o processo de exclusão social é ambíguo, pois pode ser analisado a partir de diversas formas: do social, do subjetivo e do físico. Anteriormente, por exemplo, citei os três aspectos não de uma forma separada, pois é necessário um pouco de esforço de todas as partes para também refletir, sobretudo um esforço da elite.

As privações implícitas e explícitas de circulação, como a minha de não ir ao mar, é paradoxal. Agora, conseguimos ver de uma forma mais nítida, não só aqui, mas também nos outros grandes centro urbanos, o motivo da permissão dos/as moradores/as das periferias de circular em áreas brancas e ricas. Estes moradores precisam de saúde, assim como de dinheiro para o básico, e é por isso que continuam arriscando suas vidas saindo da comunidade. Desse modo, não poderão parar até que medidas eficazes do Estado, baseadas na ética e no dever de garantir a vida de todos/as, sejam tomadas. Até lá, a exposição desses corpos será continuada, a fim de servir à quem detém o poder do capital. Eles, os dominantes, não podem morrer de fome!

É nessa lógica que os casos da COVID-19 chegam às nossas ruas e atravessam os nossos corpos. A instalação é rápida e a devastação é colossal. O cheiro do mar deixa de ser sentido, a comida, quando tem, perde o sabor e a única vontade é de ficar deitado/a, pois o corpo pesa. A seguinte pergunta ecoa acima do meu diafragma: “Como respirar sem as ferramentas básicas de sobrevivência?”. O nosso Sistema Único de Saúde merece a nossa total atenção e respeito, e infelizmente a saúde pública não suporta toda as demandas da periferia, das vidas da população negra.

A fim de gerar fôlego para possíveis debates, outra pergunta surge: “A desigualdade é percebida?”. E de uma forma muito específica às/aos minhas/meus parceiras/os conhecidas/os ou não da Psicologia: “Até quando o poderoso silêncio branco sobre as desigualdades sociais vai predominar nos nossos saberes e práticas?”.

Eu não quero morrer sem conseguir r-e-s-p-i-r-a-r! 

As minhas irmãs e os meus irmãos não querem morrer sem r-e-s-p-i-r-a-r!


** Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas do PORTAL GELEDÉS e não representa ideias ou opiniões do veículo. Portal Geledés oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.

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