“Essa pátria nunca me foi gentil”.
Foi esse o breve e certeiro comentário que dona Marilda de Souza Francisco fez ao ouvir o hino nacional tocado solenemente em uma das mais importantes instituições arquivísticas do país. Na ocasião, dona Marilda compunha a mesa de conferencistas que falavam sobre um interessante projeto histórico e arqueológico que está sendo realizado em conjunto entre movimento social negro, universidades públicas federais, entidades do Estado e instituições internacionais na tentativa de localizar aquele que seria um dos últimos navios negreiros que chegaram ilegalmente no Brasil, e que naufragou na costa de Angra dos Reis (RJ) no início da década de 1850.
A história é interessantíssima, e torcemos para que essa iniciativa conjunta possa revelar mais detalhes desse navio, de quem eram os africanos e africanas que foram sequestrados em Moçambique, e do Brasil que manteve o tráfico ilegal de escravizados por décadas, contrariando as suas próprias leis.
Mas, para mim, não resta dúvida que o que há de mais importante nessa história é o fato dela ter chegado até nós por meio da tradição oral que estruturou a memória e as histórias dos homens e mulheres que viviam no Quilombo Santa Rita do Bracuí, em Angra dos Reis.
Por muitos anos, os mais velhos contavam sobre as fazendas de engorda da família Souza Breves, fazendas essas que serviam para receber os africanos ilegalmente escravizados e garantir que eles e elas receberiam um tratamento adequado para melhorarem de saúde depois da travessia atlântica, chegando em boas condições de saúde nas fazendas de café que a família tinha no Vale do Paraíba fluminense. Sim. Fazendas no plural. Porque os Souza Breves eram proprietários de milhares de escravizados e dezenas de fazendas na região, além de atuarem no tráfico ilegal de africanos escravizados.
E foi escutando as histórias dos mais velhos que dona Marilda Francisco começou a perceber que havia um grande fundo de verdade naquilo que mais parecia conto de assombração. E essa não era a única história contada pelos mais velhos. O conhecimento que permeava a vida dos moradores do Quilombo do Bracuí eram ecos de histórias que o Brasil, essa pátria que nada tem de gentil, escolheu esquecer.
Mas dona Marilda, junto com outros moradores do quilombo, decidiu que essa história precisava ser conhecida e escutada. E, assim como outras mulheres negras e quilombolas, ela teceu – em meio à coletividade da qual faz parte – uma outra interpretação do que é o Brasil de ontem e de hoje. Uma interpretação que parte do quilombo!
A inspiração de Tereza de Benguela
Não é a primeira nem a última vez que uma liderança quilombola se ergueu contra uma ideia muito bem estruturada de Brasil. Também não é coincidência que hoje, 25 de julho, é a data na qual comemoramos o Dia da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha. Há 250 anos, num outro 25 de julho, morria Tereza de Benguela, uma mulher negra que foi líder política e militar de Quariterê, um dos mais importantes quilombos da região central do Brasil Colônia. Sua história de luta e resistência ao sistema escravista, bem como de construção de um outro tipo de comunidade, ecoa nas histórias de outras mulheres negras que fizeram e continuam fazendo do quilombo não só um lugar de pertencimento, mas também uma forma de enxergar o mundo.
E por mais que haja uma série de particularidades que precisam ser (re)conhecidas quando tratamos de comunidades quilombolas – que ainda sofrem inúmeras dificuldades para terem suas terras demarcadas, e muitas vezes são impedidos de exercerem sua cidadania de forma plena – não podemos fugir da realidade que dona Marilda colocou tão bem: o Brasil nunca foi uma pátria gentil aos quilombolas, porque as histórias e trajetórias que esses quilombolas contam colocam em xeque a ideia de um pais pacífico, harmonioso e sem racismo.
Não foi por acaso que importantes intelectuais negros fizeram do quilombo um conceito-chave para interpretar o Brasil e sua história. Aqui, lembro de Maria Beatriz Nascimento, que se estivesse viva teria completado 81 anos no último dia 17 de julho. Essa historiadora (que não à toa teve pouco reconhecimento em vida) sistematizou uma análise do Brasil que partia das vozes e saberes de mulheres como dona Marilda e Tereza de Benguela, apresentando a todo momento que por trás daquele país forjado pelas instituições do Estado, existiam quilombos pulsantes, que criavam outros sentidos de nação e de luta por liberdade. Como bem disse Antônio Bispo dos Santos no seu livro A terra dá, a terra quer: “as nossas vidas não têm fim” (p.102).
E essas são histórias que não devem ser reconhecidas e engavetadas na caixa “das histórias quilombolas” como uma espécie de subcapítulo da “história negra no Brasil”. Não que isso seja pouco, mas essa classificação muitas vezes nos engessa e faz com que percamos a dimensão real daquilo que era dito e contado. Estamos tratando da história do Brasil. E também estamos reconhecendo que durante séculos parte dessa história foi contada por pessoas específicas, ignorando propositadamente todo um mar de vidas, trajetórias e lutas. E o pior, essa ideia deturpada de Brasil fez com que muitos de nós imaginemos que o quilombo é algo perdido no passado.
Como o movimento negro diz há tanto tempo: o quilombo também é hoje.