Quilombos podem ajudar a mudar o racismo estrutural?

FONTEJustificando, por Gilmar Bittencourt Santos Silva
Gilmar Bittencourt Santos Silva - Arquivo Pessoal

No final deste ano após tantas perdas, inclusive entre as populações negras no Brasil (por Racismo, Bala ou Covid -19), a Câmara dos Deputados numa articulação, raspada a facão (Emicida), das esquerdas com o movimento negro, colocou em votação e fez aprovar naquela casa o projeto de decreto legislativo 817/2015 a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância pretende ser instrumento de combate ao racismo estrutural.

Ante as falas contra o texto e por conta do meu engajamento e pesquisa, logo imaginei que o texto poderia trazer algo que pudesse mudar as condições de vida no campo, em particular ao falar sobre reparações. Não é o caso. Bastam dois cliques no site da Câmara Federal.

O citado projeto aprovado na casa baixa e seguindo ao Senado Federal nada trata de temas mais tensos, quero vê-lo aprovado, mas ele em nada agrega as disputas para a melhorar a questão da terra, e portanto a questão estrutural com a qual e sem a qual, o Brasil continuará não mudando um fato, o poder está e sua visibilidade está no processo produtivo e reprodutivo, e negros e negras não dominam um e nem outro. E o que justificou alguns discursos de que o texto precisava de melhorias? Que era muito impositivo? Os negros e negras devem estar querendo tudo rápido? Algo que não tem há mais de 325 anos. Convida a uma leitura pessoal sobre isso.

O assassinato de homens e mulheres negras no Brasil é a face mais dramática e talvez a mais visível desse genocídio perpetrado desde que o primeiro homem e a primeira mulher foram sequestrados da África e trazidos para o Brasil para emprestar seus braços, sua cultura e suas habilidades e construir a economia do Brasil Colônia e o Império. Porém, não é a única.

A própria forma com que a escravidão terminou, após um processo de luta que envolveu vários setores da sociedade, mas que, ao final, gerou um ato sem vigor, uma liberdade vigiada e amedrontada contra aqueles que, em verdade, são as pessoas que mais tiveram motivos para temer viver nas Américas, retrata a violência e brutalidade com que foram tratados, pois muitos foram largados nas estradas e abandonados para morrer sem alimento ou recursos para prosperar.

Vieram forçados e forçadas, mas aqui construíram raízes, adotaram um novo idioma, o português brasileiro, e mesmo depois da escravidão, mantiveram-se num lugar de profunda exploração nas cidades e no campo. Ao encaminhar-se o final da escravidão oficial, avolumam-se as insurreições, revoltas e fugas. A partir dessas fugas, consolida-se uma alternativa, os quilombos.

É muito importante tratar esta experiência política, social, jurídica, no plural. Como experiência social, os quilombos foram diversos e surgiram por motivos diferentes, às vezes com maior ou menor permissão da sociedade mestiça ou branca em volta, mas sobretudo foram uma experiência que permitiu ao negro exercer espaço de poder, algo que, em geral, era negado até depois da libertação oficial. Os quilombos no Brasil representam uma profusão de práticas que precisam ser estudadas uma a uma para que possamos apreender como comunidades que sofreram a grande ausência do poder público, omissão que teve método, não nos enganemos; comunidades que, no entanto,  puderam sobreviver e transformar, desde o período colonial, as fontes de alimentos e outros recursos, abastecendo as cidades de todo o Brasil. Não, não é o agronegócio e as cidades que nos alimentam, que enchem nossa barriga, é a agricultura familiar, dentre as quais se inserem as comunidades quilombolas.

Mesmo sem ter políticas sociais de segurança alimentar, sem fomento, durante décadas, estradas para escoamento da produção (muitas até hoje continuam assim), diversas comunidades chegaram aos dias de hoje produzindo muito com muito pouco. Parte disso está relacionada ao compartilhamento de recursos, uma história cuja origem remonta ao fim do estatuto escravocrata, que fez com que a união e a divisão de recursos fossem uma estratégia de sobrevivência que se impunha. Caso lá atrás as propriedades quilombolas tivessem sido reconhecidas ou mesmo se seus integrantes tivessem recebido terras oficialmente, teríamos um território mais bem ocupado e uma melhor distribuição de renda.

Muitos anos antes do final da escravidão, a Lei da Terra foi aprovado e proibiu a venda de terras para quem ainda não as tivesse. Como resultado, houve uma concentração de terras oficialmente nas mãos do Estado e ao mesmo tempo a criação de um latifúndio pouco produtivo, com focos de resistência campesina, muitas vezes totalmente enegrecidos no seio desses latifúndios. Os campesinos produziam nas glebas com apoio apenas entre eles e elas, enquanto eram hostilizados pelos que detinham o título e perdiam interesse em sua manutenção, pelo Estado e por outros invasores, em geral brancos.

Essas condições construíram, de um lado, o latifúndio, que variou com sua modernização para o negócio empresarial agropecuário e o agronegócio, e, de outro, construiu uma moderna rede de produtores solidários e sem título.

Entre os produtores solidários estão as comunidades tradicionais, dentre essas as quilombolas. Para entender como elas sobreviveram é preciso observar alguns aspectos. Em primeiro lugar, essas comunidades têm histórias descontínuas e heterogêneas, portanto cada comunidade responde por um tipo de experiência de resistência, às vezes mais intensa em alguns momentos, outras vezes mais pálida; quer dizer, as experiências não podem ser capturadas por um único tipo de conhecimento, inclusive dos homens e mulheres das ciências, elas devem ser vistas sob o olhar de vários saberes em pé de igualdade, que ao mesmo tempo podem nos apontar um conjunto de práticas bem interessantes.

Além disso, algumas dessas comunidades são de difícil acesso, porque ainda não são acessíveis pelas tecnologias modernas. Suas estradas são de chão. E nem as modernas antenas de telecomunicação ou cabos de internet chegam lá.

Por fim, embora haja um esforço puramente teórico de pensadores urbanos que, sem a vivência campesina, tentam entendê-la com suas fitas métricas forradas de livros lidos para medir terras, é preciso outra postura para saber como os sujeitos que deixaram a escravidão oficial sobreviveram e conseguiram emergir fortes na Constituição de 1988, propondo um novo marco civilizatório. Este novo projeto civilizatório tem de passar pela viagem ao campo brasileiro, pela escuta ativa dos personagens campesinos que jamais foram ouvidos e tiveram muitos representantes nas cidades, que sabiam do que eles precisavam, mas nunca os atenderam. Agora é oportuna essa escuta.

Uma mulher negra e historiadora vai nos apontar que há três momentos em que o discurso quilombola aparece no horizonte brasileiro: “Nas ações de superação ao estatuto do trabalho escravocrata, entre as décadas de 1930 e 1940, particularmente pela atuação da Frente Negra Brasileira e, por fim, na década de 1970 […]” (ILKA BOAVENTURA LEITE). 

Na metade final do século XIX, a luta pelo fim do pacto escravocrata mobilizou diversos setores da sociedade brasileira por motivos e formas diversos. Alguns queriam uma ruptura pura e simples, outros queriam um processo gradual e muitos entendiam que era necessário fazer a indenização dos proprietários dos escravizados. Porém, quando surgiram os quilombos, boa parte dos homens brancos, ainda que não proprietários, os temiam como mecanismo de revolta que colocaria em risco as cidades. E a justiça? Nesse momento, os apelos humanísticos fizeram com que processos fossem abertos para apurar maus-tratos em fazendas – como se a escravidão não fosse maus-tratos em si –, sem que o Poder Judiciário tomasse partido dos negros e negras, e o direito à liberdade.

Entre as décadas de 1930 a 1940, voltou o debate sobre os quilombos através de vários movimentos sociais dos quais o mais vigoroso foi a Frente Negra Brasileira. Mais duradoura, a Frente Negra Brasileira (FNB) construiu, de 1931 a 1937, o principal espaço de debate sobre luta e manifestação dos direitos do negro. Em 1936, movidos pelo sucesso de então, e diante das inquietações em todo o seio da sociedade, a Frente transforma-se em partido político com grande êxito, questionando os direitos do negro de forma ainda incipiente, muito embora tenha levantado a importante discussão sobre o quilombo e o direito à terra. Isso porque era óbvia a mazela deixada pela Lei de Terras, que redundou, entre outras coisas, na incapacidade do negro de, usufruindo da terra, poder financiar-se ou desenvolver uma produção com ingresso no processo capitalista. Ademais, a falta de uma titularidade sujeitava-o a processos de contínuas expulsões, tendo como um dos muitos efeitos as diversas migrações para as grandes cidades.

A luta da Frente Negra Brasileira também anteviu a favelização das grandes cidades e já denunciava as mazelas e os preconceitos, todavia teve sua continuidade interrompida pelo ato do Estado Novo em 1937, momento em que se encerraram todas as atividades das agremiações políticas. Mas e o Judiciário? Este não se moveu no intuito de mobilizar lutas nas cidades e muito menos no campo; sem condições objetivas de independência e com origem em castas que emulavam a elite proprietária, jamais se meteria em questões de terras, muito menos para preto.

Ainda que sem o protagonismo da questão racial, a acumulação de terras, a ausência de titularidade de terras das populações campesinas, a profunda desigualdade, fortemente enegrecida por tudo que se disse antes, causou até a década de 1960 um grande mal-estar no campo, principalmente entre os sindicatos rurais e as Ligas Camponesas. Estes, sob o breve período democrático do Brasil das décadas de 1945 a 1964, passaram a reivindicar um conjunto de direitos, dentre eles a reforma agrária e um novo estatuto favorável à democratização de terras. Esses grupos tinham forte identificação com lutas populares de orientação marxista e, em muitos casos, iam além da discussão sobre a propriedade da terra, passando a discutir a própria estrutura do Estado brasileiro.

O golpe civil-militar de 1964, articulado e urdido por setores políticos conservadores, parte da mídia hegemônica à época, conglomerados econômicos internacionais e pela classe média pouco democrática, e executado pelo alto oficialato do Exército Brasileiro, dentre outras coisas, tentava barrar o avanço de uma legislação que buscava modernizar o capitalismo no país por meio da reforma agrária.

Na década de 1970, o quilombo ressurge como uma memória de resistência ao colonialismo, servindo de símbolo de luta e eco da liberdade, com uma base de identidade étnica, cujo modelo seria aplicado no Brasil, mas cujas origens se encontram na cultura de África (BEATRIZ NASCIMENTO). Por sinal, existe no movimento negro o reconhecimento da importância da questão agrária e da elaboração de estratégias de luta campesina a fim de criar novas perspectivas para a sociedade no país. Eis que o quilombo surge como uma alternativa para gerar essas estratégias, apreendidas como parte de uma luta por democratização e reparação.

Cite-se aqui que, em agosto de 1982, nos últimos dias da ditadura militar, no 3º Congresso de Cultura Negra das Américas, no edifício da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, foi registrada, dentre as discussões do Grupo Movimentos Sócio-Políticos, a seguinte proposição em relação à questão da terra: “[…] Que os movimentos negros apurem onde existem terras ocupadas por comunidades negras e providenciem, por meios legais, a aplicação da usucapião das terras.” (BEATRIZ NASCIMENTO). Ou seja, no contexto da democratização brasileira pelo retorno do estado de direito, a agenda dos movimentos sociais incorporou à pauta do movimento negro a necessidade de regularização das terras ocupadas por comunidades negras, evitando o processo de sua expulsão. Essa luta redundou, após avanços e recuos, num artigo da Constituição Federal de 1988, e regulamentado em 2003, que concedeu o título de terras a essas comunidades, algo que jamais ocorrera de fato, salvo raras exceções. Poucas comunidades foram tituladas, segundo os dados do INCRA, órgão nacional com incumbência de fazer tal titulação.

Num contexto de crise de representatividade, diante da baixa adesão aos processos políticos e do desgaste na forma de produção (dependente de exportações e de economia de commodities), além do aumento do autoritarismo no seio do Estado brasileiro, o poder judiciário, em parte, foi uma das primeiras vítimas do golpe de 1964. Com uma magistratura superior um pouco mais encorpada, os verdadeiros donos do poder não quiseram dar chance e manobraram para neutralizar os juízes um pouco mais ciosos dos seus deveres, principalmente quanto às liberdades individuais. E hoje, o que vivemos?

Este será o quarto momento? Há todos os indicativos de que é fundamental um novo paradigma socioeconômico capaz de influir nas próprias condições de produção e distribuição dos direitos. Veremos, assim, que a justiça, enquanto sistema de política social que administra a prestação de bens e serviços necessários à vida num contexto de uma sociedade de mercado, não mudará pela atuação e fortalecimento dos quilombos, por isso mudanças efetivas são necessárias.

No bojo da crise interna do Estado brasileiro e da sua própria crise de justiça, as tradições jurídicas anteriores legaram, assim, um conjunto de avanços a que se ousa chamar de sistema jurídico, bem como um conjunto de mecanismos, inerentes à lógica da economia de mercado, que criou condições a um estado protetor.  Tanto nos estados da Europa e nos Estados Unidos como em países da África e da América Latina, há algum nível de entendimento de que as pessoas precisam ter as mínimas condições de vida, ideia que ficou restrita às pessoas que têm trabalho formal, mas até isso vem deteriorando com o fim do emprego formal, que inclusive resulta na perda de arrecadação do Estado e no recrudescimento do compromisso estatal com os empreendimentos privados. Esse quadro vem alterando as condições do Estado para aquisição, modificação e transformação de direitos, fato que muitos tem chamado de Crise do Estado.

Considerando os períodos aludidos até aqui no Brasil e no mundo, podemos dizer que foi exatamente em momentos de grandes de transformação interna ou externa que o discurso quilombola exsurgiu como um dos elementos de propulsão da sociedade, de inquietude e de resistência ao colonialismo. Consolida-se assim uma espécie de arqueologia do termo quilombo para mostrar que, a partir de um dado momento, ele é uma forma de resistência e decolonialidade, com atuações que contestam práticas elaboradas, modificadas e adaptadas por um colonizador em seu proveito e subalternizador dos colonizados (ISABEL CASTRO HENRIQUES), incluindo todo seu legalismo do encarceramento e sua criminalização do negro bem como outras políticas sociais violadoras dos direitos humanos da população negra. Apesar das constantes modificações e da própria modernização do Estado brasileiro influenciadoras das diversas políticas sociais, a justiça jamais foi afetada por um novo paradigma, atuando, na verdade, como um limitador das mudanças sociais, afinal foi criada sob a égide do pacto colonial e do bacharelismo.

Em geral, por muito tempo, o próprio judiciário não era uma arena propícia para demandas sociais, muito menos para questões agrárias, cujo controle e domínio são tão caros ao patriarcado quanto os corpos dos homens e das mulheres negras.

Tudo isso podemos encontrar muito bem descrito em autores negros e autoras negras, contudo só por meio da oitiva ativa que entenderemos como sobreviveram. Este aliás é um dos poucos avanços da Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância ao falar deste movimento necessário de trazer esses  negros e negras para serem ouvidas ativamente.

Assim, conduzi uma pesquisa sobre a realidade dos quilombos iniciada há cinco anos. Num primeiro momento, fiz uma série de leituras dos dados da política social de titulação de terras em comunidades quilombolas para, em seguida, adentrar na análise de processos de titulação e terminar com entrevistas dentro da comunidade quilombola. Por meio do método de pesquisa chamado de grupo focal, ouvi durante quase um ano – indo com frequência a duas comunidades quilombolas na cidade de Cachoeira no Recôncavo da Bahia – falas registradas do dia a dia que revelam como essas pessoas lidavam com seus problemas, como eram ajudados e como distribuíam justiça em momentos de tensão.

Grada Kilomba (2019), em sua apresentação intitulada Desobediências Poéticas, convida a ouvir a “contação” de histórias da população negra sem a mediação do que ela chama de “narcisismo branco”, que não permite que outras perguntas sejam colocadas senão as da população branca.

Retomam-se, aqui, as perguntas de Kilomba (2019): Como as histórias são contadas? Por que são contadas?  E quem pode contá-las? Assumi, portanto, na abordagem desta pesquisa, que não existem respostas universais e predeterminadas que servem a todos os sujeitos e situações, mas respostas que só podem ser plenamente entendidas diante das perguntas formuladas no contexto próprio das pessoas. Estando diante de uma pesquisa que busca apreender como as práticas sociojurídicas existentes em comunidades quilombolas interferem nas políticas sociais públicas de acesso e garantia das terras destinadas a elas, é preciso conhecer e fundamentar essas práticas a partir das percepções dos sujeitos dessas comunidades.

O medo do branco do protagonismo da mulher negra(principalmente) e do homem negro(logo atrás) é tão grande que qualquer proposta, ainda que pequena coloca em risco a própria segurança desse ser. Nada há no texto que amedronte, mas o simples fato do texto falar em combate ao racismo apavora alguns grupos políticos, isso é uma característica que nos entranhou com a escravização e nos deixou com esse “narcisismo”.

Somente como uma redescoberta e afirmação de novas narrativas poderemos ser capaz de reconstruir a nossa história e isso passa também por partir da contação de episódios da vida desses sujeitos. Como disse anteriormente, não se trata de uma preocupação de estabelecer marcadores do direito, mas se trata de fazer com que todos os campos tenham uma visão plural e se posicionem.  No que diz respeito à forma de busca de direitos ante aos ataques externos, os quilombolas aprenderam a se articular mediante o longo aprendizado com as lutas camponesas, inclusive quando os resultados não foram alcançados total ou parcialmente lá atrás.

Durante as entrevistas, as mulheres e os homens dessas duas comunidades foram ouvidas em grupos: alguns apenas com jovens, outros grupos só com mulheres, outros ainda com homens e mulheres de mais de 60 anos. As perguntas consistiam em questionamentos sobre a trajetória e o percurso de superação das dificuldades, além dos novos problemas que surgiam. É evidente que uma comunidade quilombola negra não contou só consigo para prosperar. Porém, no tema da aplicação da justiça e sua distribuição interna, a distância dos centros que podiam aplicar a norma escrita obrigou-os a ter em mente que a distribuição dos recursos gerados, a socialização do ônus de eventuais fracassos produtivos e a aliança de habilidades seriam capazes de fazer com que a maioria sobrevivesse. Durante o processo de escuta, a comunidade não é ouvida individualmente e cada um que fala pode ter sua resposta complementada ou refutada por um ou outro.

Para entender bem como funciona, veja-se a entrevista realizada em um dos grupos, neste caso o grupo de homens e mulheres com mais de 60 anos. Um dos entrevistados refere-se ao episódio da invasão do quilombo por grileiros, que apareciam sempre sem qualquer documento e sem decisão judicial, achando que conseguiriam retirar as pessoas da comunidade facilmente. A estratégia dos grileiros era fazer uma reunião para discutir algum direito e, diante de alguns poucos, fazer um acordo para retirá-los das terras, contudo os quilombolas, uniram-se e foram até o local, impondo a retirada dos grileiros, pois aprenderam com a prática que essas violações de pouco a pouco se expandem para as demais regiões; inclusive essa estratégia se repete nas periferias das grandes cidades por empreendimentos que desejam construir em determinada área. Os quilombolas dessa comunidade entenderam que, ainda que a área seja de alguns poucos, todas e todos deveriam lutar por ela, criando forte resistência.

Neste episódio reproduzo a fala de uma das pessoas ouvidas e participantes dessa mobilização que “acharam que não estávamos preparados […] Chamaram para uma reunião, e na hora era para retirar a gente, mas nós ficamos, pois a única coisa que a gente quer negociar é para ficar na terra […].”

Há em outros relatos que tratam da prática da defesa coletiva de direito, atentando a seus múltiplos significados, inclusive das dificuldades de acesso a outros meios de justiça para resolver o conflito, a consideração sobretudo da capacidade da comunidade de se articular em prol de um objetivo, que é o de manter o território unido, evitando a presença de terceiros, sem autorização. A prática de acordos com participação coletiva em tema privado é comum nessas comunidades, mas que varia quanto ao grau de integração e da história, demandando maior aprofundamento por parte das pessoas que pretendem aplicar o direito na comunidade, o que, por outro lado, pode servir para nortear um processo probatório de escuta de testemunhas coletiva ou mesmo novos processos de negociação coletiva.

Em tempos de profunda demonização dos partidos progressistas, os quilombolas da comunidade ouvida guardavam boas recordações dos governos petistas. Durante as entrevistas, ficou evidente que percebem uma melhoria nas políticas sociais no período que coincide com os governos dos presidentes petistas Lula e Dilma e que, por isso, sentem gratidão pelo processo vivido nesse período que os ajudou a conquistar bens e serviços.

Indo mais a fundo da questão, percebemos que a melhoria de condições os ajudou inclusive nas relações internamente, pois os mais jovens passaram a ter acesso à internet, algo que todos e todas desejam, e também as pessoas no quilombo. Numa das entrevistas com os mais jovens, eles pontuaram os avanços: “[…] passou a melhorar com os projetos da Bahia Produtiva […] Projetos de agricultura familiar […] Quando as casas passaram a ser de melhor, foi a partir do Bolsa Família”, pontua um dos ouvidos. “A partir de 15 anos para cá com Lula e Titia Dilma […]”, conclui uma jovem entrevistada.

Explicando sobre as condições de melhoria ou de encaminhamentos para as dificuldades, um deles declara: “Depois da associação é que vieram coisas que melhoraram muito”. Ainda sobre essas melhoras, muitas lideranças lembram que é também nesse período dos governos petistas que começa, em terras de populações tradicionais e indígenas de todo Brasil, uma série de projetos que retiram ou ameaçam retirar milhares de pessoas de seus territórios. Isso também está na memória dos quilombolas, sem gratidão.

Por outro lado, pode parecer que a ausência dos poderes de justiça, como falei aqui, seja um bem em si mesmo; livres dos formalismos e dos atos sacramentais, os quilombos estariam melhor. Acontece que não é bem assim. E a ausência de políticas sociais positivas é, na verdade, uma política, e homicida. Isso se aplica tanto ao direito à moradia quanto ao direito de acesso à justiça. Por sinal, durante a pesquisa, uma das jovens entrevistadas, que era do quadro da associação, foi assassinada – aparentemente nenhum vínculo com a luta pela terra. Porém, quando os fatos em torno do perecimento da jovem vieram a público, o choque foi demasiado forte. Ela teria sido morta pelo ex-companheiro que não concordava com o fim da relação. Importa dizer que a jovem E S H foi morta a tiros, o que interrompeu sua trajetória de estudante de graduação no Centro de Artes, Humanidades e Letras (CAHL), da Universidade Federal do Recôncavo Baiano. Os boletins de ocorrência e o pedido de liminar para afastamento não surtiram efeito. Eles já conheciam essa história de outras vezes. Isso reflete um estado de abandono que não é típico das comunidades quilombolas, mas que também atinge as mulheres no quilombo, que se veem nesses casos contando apenas umas com as outras, parte se tornando lideranças, em condições parecidas como as que ceifaram a vida dessa jovem, que entrou para o Atlas da Violência. O principal suspeito está preso à espera de julgamento.

Tudo isso remete a algo que as duas comunidades sabem. Os membros dessas comunidades caminharam muito e fizeram muitas coisas, e suas experiências precisam ser conhecidas, mas eles não prescindem de políticas sociais. Eles reconhecem e pedem políticas sociais que deem segurança em todos os sentidos, pois, como outras sociedades, eles precisam de serviços e bens que se integrem as suas vidas e os ajudem a manter seus valores, consolidando seus processos de vida e sua reprodução de saberes.

As duas comunidades pesquisadas mal têm água encanada, não têm acesso por estrada de asfalto; há promessas de que vai ocorrer logo, e o serviço de energia só chegou durante os governos Lula e Dilma, ou seja, mal chega aos últimos dez anos, e além dos referidos atores políticos, isso teve a ver com a ação de lideranças quilombolas.

E este é o último ponto que desejo destacar; longe de romantizar o papel das associações nos quilombos, eles têm sido um espaço de grande disputa política e de constante contestação. Durante a pesquisa, quando alguém colocava a associação como um ponto de mudança, reconhecia a liderança como alguém capaz de trazer benefícios para muitos e, ao mesmo tempo, colocava a sua liderança a serviço da comunidade, contudo, durante toda audição, ouvia-se e percebia que muitos não a apoiavam. Apesar disso, o fenômeno se repetiu nas duas comunidades, embora novamente a própria condição de liderança fosse com frequência contestada seja em eleições ou em pleitos políticos.

A liderança é o lugar em que as disputas políticas se tornaram intencionalmente intensas, forçando os líderes a ceder sempre aos menos favorecidos ou perder poder, ou pior, desagregar a comunidade. As lideranças quilombolas, nesse sentido, não podem ter mais coisas que outros membros sob pena de serem até mal vistos, e isso é uma dura lição que eles e elas nos ensinam, não? Há no quilombo, de fato, o senso de que todos precisam ter um mínimo para sobreviver, mas que nem todos podem produzir com a mesma capacidade produtiva. Contudo, isso não se deve a uma melhor qualidade dessas pessoas, mas à percepção de que não podem abrir mão da ajuda um do outro; a vida, portanto, torna-se preciosa, porque ela assim o é.

Por outro lado, apesar de a relação com a natureza não ser o foco da pesquisa, furto-me a dizer como as comunidades que pesquisei lidam com recursos como água ou mesmo a flora. No entanto, uma reflexão pode ser feita: As terras ocupadas por estes homens e mulheres, negros e negras, sofrem ataques do Estado brasileiro para a sua retirada, pois os recursos naturais são cobiçados. Então logicamente percebemos que tais recursos estão em ótimas condições para gerar tanta cobiça, e se se deseja tanto retirá-los (RINALDO ARRUDA), chegando ao extremo de eliminar fisicamente esses homens e mulheres – somente no ano de 2017, conforme denúncia, 12 lideranças quilombolas foram mortas, matéria do CONAQ (2017).

No final, todos os participantes afirmam não ter interesse em sair da comunidade, de romper esses laços com os quais seus membros definiram um senso de justiça e passam por uma luta conjunta pela terra.

De acordo com os processos coletivos e dos seus métodos, ao estudar a evolução jurídica, demonstrou-se que o direito conhecido e positivo gera um direito individual em que as demandas são tidas como individualizadas, o que nas disputas urbanas de famílias, por exemplo, torna as ações judiciais uma ação sem dia para terminar, arrastando-se por anos e beneficiando os mais fortes que podem esperar por um processo demorado da justiça. As partes são chamadas a resolver cada uma das demandas, no máximo as famílias são incluídas, mostrando que, quando se trata da relação com essas comunidades quilombolas, a lógica das práticas jurídicas se altera. É comum que toda comunidade participe das disputas de seus membros, de sorte que as soluções cheguem mais rápido, logo a privacidade não é erigida a um pedestal.

Pela lógica da justiça, em alguns quilombos, os problemas podem ser socializados com a coletividade, buscando encontrar soluções plurais com o mínimo de sacrifício dos direitos dos indivíduos, ou menos ainda da coletividade.

Todos os diagnósticos recentes sobre a justiça denotam a insatisfação da população. Há críticas sobre seu peso e custo para sociedade; nesse sentido, não se deve pensar em aplicar na integralidade as formas de justiça nos quilombos, mas é importante pensar em aceitar seus resultados e ampliar as suas decisões, entender a lógica que as sedimenta  com a simplificação da justiça e a maior participação das pessoas envolvidas em litígios. Esta percepção pode ajudar a apresentar uma justiça melhor e mais rápida. Ante à Crise do Estado, não tenho dúvidas de que o quilombo é o lugar de poder dos negros e negras, sempre foi assim, e cada vez mais vão mostrando caminhos que podem aperfeiçoar mecanismos de gestão pública, inclusive de justiça.

 

Gilmar Bittencourt Santos Silva é Defensor Público do Estado da Bahia. Doutor em Políticas Sociais e Cidadania pela UCSal. Pesquisador com pesquisa aprovada pelo Comitê de Ética de Pesquisa CAAE 89035618.6.0000.5628. Autor da obra  Direitos dos remanescentes de quilombos: Uma dimensão de um direito constitucional.
-+=
Sair da versão mobile