Por Ademir Barros dos Santos,
Sorocaba – Em tempos de inclusão afirmativa, quando a sociedade reconhece sua incompetência em promover, naturalmente, a igualdade de oportunidades para todos sem intervenção estatal, velhas doenças sociais, que se fingiam debeladas, reaparecem nuas, disfarçadas, distorcidas, quase fatais.
Como consequência, discursos se desviam de seus núcleos e se embaraçam, tornando-se emaranhados, afetados que são, dentre outros males, pela má aplicação de conceitos, assim como pelo inadequado uso destes, o que distorce o significado das palavras; isto, sem contar com os desvios de compreensão para alguns termos que, se utilizados fora dos contextos naturais, somente agravam o problema.
É assim quando se fala em racismo, preconceito, discriminação, por exemplo, cujo conteúdo, em tais discursos, parece confundir-se, confundindo, também, quem os lê e deles se vale; assim também com as próprias tentativas de inclusão que, mesmo quando bem intencionadas, podem misturar, inadvertidamente, exclusões físicas a exclusões sócioculturais.
Como resultado, não se atinge, plena e efetivamente, nenhum dos focos; os excluídos continuam excluídos ou, na melhor das hipóteses, são incluídos inadequadamente: obrigados que são a ocupar o espaço torto que lhes é concedido, podem cair na armadilha de alimentar, reforçando, o discurso que, em pouco tempo, justificará sua própria e próxima exclusão.
Daí que se faz urgente algum cuidado com o tema, antes que os efeitos negativos das mencionadas distorções impeçam qualquer ajuste posterior; afinal, remédios curam doentes; mas de nada valem para os mortos.
Os excluídos
Em primeiro lugar, qualquer programa sério de inclusão social, precisa levar em conta a existência de dois grandes grupos de excluídos, tendo em vista os motivos da exclusão: há que se perceber que impedimentos físicos nada têm a ver com impedimentos sócioculturais.
Isto porque, no primeiro caso, o excluído enfrenta limitações que podem, de algum modo, ser superadas tecnicamente; mas as causas permanecerão e, nos casos mais comuns, permanecerão perpetuamente.
Assim sendo, programas inclusivos precisam, aqui, privilegiar ações também perpétuas, que devem estar preparadas para adaptar-se caso a caso, rápida e adequadamente, sempre que necessário.
Já perante exclusões sócio-culturais – motivadas que são pela cor, raça, religião, origem, sexo, etc. -, que já se encontram condenadas constitucionalmente e se refletem em leis nem sempre bem cumpridas, há que se modificar o foco: as ações devem buscar, sobretudo, a eliminação do pernicioso ciclo que alimenta injustificados preconceitos, e aduba o campo, minado, em que a exclusão se nutre.
Porém, há que se cuidar para que o discurso se ajuste a este foco, ajustando-se, inicialmente, o significado dos termos que permeiam tais discursos. É o que tentar-se-á, aqui.
Exclusões sócioculturais
Podem ser consideradas exclusões sócioculturais, aquelas causadas por questões externas ao excluído que, ao ser visto, no discurso social, como não igual à média, passa a ser considerado pernicioso, estranho, incapaz de adaptação ao convívio pleno, o que o atira à camada inferior da escala dos comuns; é o caso dos judeus no discurso neonazista, dos ciganos, dos grupos indígenas, bem como, tradicionalmente, das mulheres, dos analfabetos, e por aí vai.
Infelizmente, é este, também e universalmente, o caso dos negros: escravizados para a construção do continente americano, ainda trazem, na cor da pele, a marca genética do antepassado escravo, como a justificar, indevidamente, a inferiorização social e a decorrente e injustificada exclusão.
Piorando o fato, judeus, ciganos, indígenas, podem confundir-se com não judeus, não ciganos, não indígenas, caso saibam disfarçar, adequadamente, costumes, sotaques, posturas, etc.; aos negros, isto é impossível.
Como decorrência, é exatamente neste segmento que o discurso mais confunde: negro é cor ou raça? Ou se trata de etnia? Ou não será nem cor, nem raça, nem etnia?
Que se busque alguma luz.
Os confusos termos usuais
Etnia
Conceito essencialmente sócioantropológico que, simplificadamente, pode ser entendido como grupo de pessoas que partilham as mesmas origens e vivem a mesma cultura, com antepassado comum, costumeiramente mitificado.
Isto é: diante de antepassado comum perfeitamente identificável, inteiramente humano, está-se diante da linhagem; quando este antepassado, pela passagem do tempo e pela glorificação que cada grupo costuma adotar para justificar-se como diferente, vai adquirindo características e feitos próprios de, digamos, pequenos deuses ou mitos, têm-se a etnia. Por este ângulo, é possível entender etnia como conjunto de linhagens com antepassado glorificado, comum ao grupo.
Isto posto, fica claro que no Brasil – e de resto, talvez no mundo -, é difícil falar-se em etnia nos dias atuais, salvo quanto a grupos eventualmente ainda tribalizados, ou que, de outra forma, tenham mantido sua unidade sóciocultural ao longo do tempo.
Por outro lado, também fica claro que as etnias formam-se e desmancham-se, não podendo ser perpetuadas, até pela miscigenação cultural que a própria natureza humana, essencialmente socializável, traz em si, como característica fundamental até à própria sobrevivência.
Raça
Segundo bem esclarece Munanga (2004:17), “Etimologicamente, o conceito de raça veio do italiano razza que, por sua vez, veio do latim ratio, que significa sorte, categoria, espécie”.
Prossegue ele:
Na história das ciências naturais, o conceito de raça foi primeiramente usado na zoologia e na botânica, para classificar as espécies animais e vegetais. Foi nesse sentido que o naturalista sueco Carl von Linné, conhecido em português como Lineu (1707-1778), o usou para classificar as plantas em 24 raças ou classes, classificação hoje inteiramente abandonada.
Portanto raça, em suas origens, pouco adere à conotação hoje utilizada: embora aplicada, corretamente, a animais de cria, tais como cavalos e cachorros, erra quando se refere a humanos sem considerar efeitos sociais, mesmo tendo em vista a cor da pele.
Na verdade, raça é conceito de separação para fins de classificação, assim como o é o termo tomo – parte do todo – entre os gregos.
Daí afirmar-se, corretamente, que não existe raça humana, do ponto de vista biológico: os biólogos não encontram razões suficientes para justificar qualquer separação entre humanos, de seu ponto de vista científico.
Mas não há como negar a existência das raças quando socialmente vistas, já que, mesmo a partir da migração humana original para a ocupação do planeta, e como decorrência da necessária adaptação, diferenças naturais apareceram: cor da pele, configuração morfológica, tipo de cabelo, formatos de nariz e olhos, dentre outras.
Mas é do confronto entre raças socialmente vistas – isto é: das separações sociais, não das biológicas, que inexistem – que, adaptadas ao meio ambiente formando sociedades diversas e culturalmente distintas, nasce o racismo.
Cor
Quanto à cor, pouco há a acrescentar: cor é pigmento, aparência, coisa externa; é atributo estético; nada mais que isto.
Porém, nas sociedades formadas a partir do escravismo negro para a construção dos próprios alicerces nacionais – e aí estão todas as Américas -, a cor passou a ser marca de inferioridade social, visto que nunca houve emigração africana espontânea em direção ao Novo Mundo; daí que todos os negros, quer claros, quer escuros, descendem de imigrantes compulsórios, pretos na origem, escravizados e inferiorizados em novas terras de indesejado destino.
Portanto, é preciso reconhecer: as Américas são formadas a partir de sociedades de castas, não de classes; daí que confundir cor de pele com pobreza não é correto; mas é conseqüência desta condenável prática primordial.
Desta constatação, é fácil deduzir: a conotação da cor, quando transformada, pelos colonizadores, em indelével marca social de submissão, se transmuda em incontestável prova de incapacidade nata para adaptar-se àquilo que a sociedade dita culta, formadora e senhora da civilização, aceita como bom e válido. Ainda hoje.
Esta a razão que leva a cor a ser tratada, no extremo, tal e qual doença contagiosa, da qual, quanto mais escura, mais é necessário apartar-se; eis aí o erro basilar que os europeus aplicaram aos africanos que os acolheram do outro lado do Atlântico, e que os impediu de partilhar da milenar cultura de acolhimento que, ali,havia.
Cor/Raça/Etnia
Esclarecidos os termos, é de se notar que, no Brasil, alguns deles ainda se confundem, desviando para discussões inócuas as atenções do efetivo desenvolvimento de políticas inclusivas que tenham, como foco, a eliminação do racismo sóciocultural – aquele provocado por questões de cor, religião, etc.
É por esta razão que no Brasil, ao levantar pesquisas, o IBGE se vê obrigado a apoiar-se no quesito cor/raça/etnia, como se todos estes termos tivessem o mesmo significado; é que, no entendimento popular, eles não apresentam diferenças efetivas, quer claras, quer escuras. Infelizmente, ainda hoje é assim.
Efeitos sociais
Preconceito
O preconceito parece ter nascido com a consciência humana. Segundo correntes atuais, antropólogos e sociólogos tendem à unanimidade quando o localizam como componente da fundamentação de sociedades autônomas que, até para afirmar o grupo como necessário, coeso entre seus membros, supunham-se superiores – ou, no mínimo, diferentes – a todas as outras.
Como base para tal afirmação, tais estudiosos assentam-se na autodenominação utilizada por tais sociedades, tais como ntu entre os povos de idioma bantu: ntu, para estes largos povos africanos, significa gente!
De outra forma: autodenominando-se gente, consideram eles todos os demais povos, embora humanos, não tão gente assim!
Alguém dirá, preconceituosamente: é, mas isto é coisa de africano, e africano é mesmo assim! Que este alguém procure saber como os povos americanos autóctones, dentre outros, se autodenominavam: terá a grata surpresa de descobrir que também eles, embora do outro lado do Atlântico, mantinham o mesmo costume… Assim os yanomami, por exemplo.
Não será diferente pelo mundo afora.
Daí o pré-conceito visto como inerente à personalidade grupal: ao admitir o próprio povo como o único formado por gente, negava-se a todos os outros a mesma condição. Mesmo sem qualquer prova concreta, mas da qual decorria a própria identificação enquanto pertencente ao grupo!
Em outras palavras: a exclusão primordial nasce por mero conceito prévio, inconsistentemente formado; mas que hierarquiza os povos ideologicamente. Por puro preconceito.
Ademir Barros dos Santos é coordenador da Câmara de Preservação do núcleo de Cultura Afro-brasileira – Nucab – da Universidade de Sorocaba
Fonte: Por Dentro da África