Este texto tem relação com as reflexões de minha pesquisa de mestrado e com o produto didático que é fruto dela. Aqui, analiso a representação das mulheres negras nos livros didáticos de história do Plano Nacional do Livro Didático (PNLD) entre 2001 e 2017. Nesses documentos, é perceptível, não apenas o apagamento dessas sujeitas históricas, mas também a permanência de imagens de controle sobre elas, cujos efeitos produzem significados que tendem a subalternizar e reduzir as experiências das mulheres negras. Essas representações são permeadas pelas interseccionalidades de raça, gênero e classe presentes em nossa sociedade. Apesar disso, afirmo que é possível um ensino de história antirracista, feminista negro e que promova a justiça social. Como fazer isso na prática pedagógica? A resposta está na promoção de um letramento histórico que construa o conhecimento sobre as experiências negras, problematizando os estereótipos.
O histórico escravocrata brasileiro e a resistência negra
Considerando a exploração indígena desde 1500, foram trezentos e oitenta e oito anos de uso da mão de obra escravizada indígena e negra. De acordo com Eunice Prudente, durante quase 400 anos, o negro foi transformado em objeto de compra e venda, sujeito inclusive à hipoteca. Na consolidação das leis civis de 1858, negros/as escravizados/as pertenciam à classe dos bens móveis, ao lado dos “semi-moventes”, ou seja, “os negros eram vistos como se fossem rebanho que possui um dono”. A consequência para os negros/as escravizados/as e livres foi processo ininterrupto de agressão aos seus direitos. No sistema escravista, a tortura, a escravização e os espancamentos tinham o objetivo de anular a sua humanidade.
O Brasil foi o último país das américas a abolir a escravidão. Na luta pela liberdade, houve resistências coletivas frequentes e variadas, desde a organização de motins em fazendas até a fuga para a formação de quilombos. A Conjuração Baiana, a Revolta de Carrancas em Minas Gerais em 1833, a Revolta dos Malês em 1835 na Bahia e a Revolta de Negro Cosme durante a Balaiada no Maranhão em 1841 materializam alguns dos incontáveis exemplos desse histórico de resistência negra à escravidão.
O movimento abolicionista é um marco político do protagonismo negro, já que a abolição, longe de ser benevolência da princesa Isabel ou dos senhores de escravos, foi conquistada por meio de mobilização de famílias, irmandades negras, escritores, jornalistas, advogados negros e pessoas negras livres. Muitas delas utilizaram a imprensa, os meios jurídicos e outras expressões artísticas para defender a liberdade e a cidadania nos períodos anterior e posterior à abolição.
Raça, gênero e classe: a manutenção de uma sociedade desigual
O racismo no Brasil, de acordo com Nilma Lino Gomes, ocorre de um modo peculiar, pois ele funciona atravessado pela sua negação. No entanto, pesquisas mostram que, no dia a dia, em espaços como no mercado de trabalho, na educação básica e na educação superior, pessoas negras ainda são discriminadas e vivem em profunda desigualdade racial quando comparadas a outros segmentos étnicos-raciais do Brasil.
A filósofa Djamila Ribeiro aponta que todas pessoas têm lugar de fala, mas dependendo da localização social onde estão situadas elas não têm suas produções e reivindicações respeitadas. Nessa lógica, pessoas negras e indígenas são silenciadas pelos que sempre tiveram o privilégio de falar por si e pelos outros, como ocorre com pessoas brancas. De igual modo, Patricia Hill Collins, com base na teoria do ponto de vista feminista negro, diz que as mulheres negras têm percepções singulares sobre a sociedade, advindas das relações que estabelecem com sua vivência, militância e a produção intelectual de outras mulheres negras. A partir dessas abordagens, compreendemos como são estruturadas historicamente as categorias de raça, gênero, classe e sexualidade, que quando interseccionalizadas funcionam como dispositivos que reforçam as desigualdades.
Como isso é apresentado no livro didático de História?
Levando em consideração a agência negra nas lutas pela liberdade, o livro didático de história da Coleção Integralis destinada para estudantes do 8º ano do Ensino Fundamental, cita de forma genérica o protagonismo negro nas associações abolicionistas, sem descrever o agenciamento de diversos/as sujeitos/as históricos/as que atuaram no processo. Muitos negros e negras lutaram ativamente pela abolição da escravidão no Brasil. Por isso, pessoas como Maria Firmina dos Reis, José do Patrocínio, André Rebouças, Luís Gama, Francisco José do Nascimento (Dragão do Mar), Adelina a charuteira, Estevão Roberto da Silva são nomes que devem ser conhecidos e estudados para entendermos o papel do povo negro na luta pela liberdade e na construção da própria história.
No que tange às imagens das mulheres negras no material didático analisado, elas são representadas 39 vezes, o que corresponde apenas a 9,92% do total de todos os sujeitos históricos apresentados no livro. A saber: os homens brancos 132 vezes ou 33,58%; mulheres brancas 73 vezes ou 18,57%; homens negros 50 vezes ou 12,72%; indígenas 24 vezes ou 6,10%. As imagens sem pessoas identificadas aparecem 75 vezes ou 19,08%, ou seja, o conjunto de paisagens, mapas e gráficos tem maior expressividade numérica do que pessoas negras e indígenas. Uma vez que as mulheres negras representam 28% da população brasileira, podemos dizer que elas estão invisibilizadas ou sub-representadas no material. Com efeito, é importante questionar: Quando as mulheres negras são representadas no livro, o que as imagens dizem sobre elas?
No geral, elas são retratadas em condição de escravidão e pobreza, resumidas a trabalhadoras braçais, inferiorizadas, subservientes e quase sempre estão acompanhadas de outros sujeitos históricos. Essa recorrência fixa a ideia de que elas não eram agentes históricas ativas. Neste sentido, podemos dizer que há uma relação direta entre a estruturação das opressões interseccionais de raça, gênero, sexualidade e classe e os estereótipos sobre a mulher negra reproduzidos nos livros didáticos de história. Desse modo, nega-se à humanidade das mulheres negras, o que afeta nossa autoestima porque, conforme enfatiza Patricia Hill Collins, inviabiliza nossa autodeterminação como negras.
Como trabalhar com exceções sobre as mulheres negras no livro didático de História?
Os estereótipos e imagens de controle interferem na construção da consciência racial, social e histórica de jovens negras por todo o país. No entanto, existem exceções imagéticas que destacam o agenciamento das mulheres negras. Uma vez que essas exceções deveriam ser a regra, precisamos, ao mesmo tempo, problematizar os estereótipos e explorar essas imagens, articulando-as com narrativas históricas que expressam de forma adequada as experiências negras. No livro didático analisado, das 39 representações, as mulheres negras aparecem de forma positiva em apenas 8 delas.
As imagens acima retratam a Festa de Reis, em Minas Gerais, no século XVIII. Aqui, é visível o protagonismo e as representações positivas das mulheres negras. Nessas iconografias, elas aparecem bem trajadas, com adornos na cabeça, dançando e festejando. Esse aspecto deve ser reforçado em sala de aula como um meio de valorizar a autoestima das alunas negras, vinculando a história com seu protagonismo enquanto estudantes e cidadãs. Isso favorece a autodeterminação de sua negritude que pode ser construída por meio de representações positivas.
Além da possibilidade de reforçar a representação positiva das mulheres negras nas imagens analisadas, professoras e professores de história podem trabalhar com as dinâmicas existentes entre a Folia de Reis, o catolicismo popular e a religiosidade de matriz africana. Esse percurso pedagógico permite a compreensão das relações de estreitamento religioso e cultural como sendo o caminho encontrado por negras e negros para atribuir outros sentidos para a Folia de Reis, enquanto folguedo de origem branca, mas que no Brasil adquiriu características bem coloridas pelos afro-brasileiros. Esse processo de ressignificação da Folia de Reis expressa uma forma de resistência histórica do povo negro.
A partir dessas exceções imagétocas analisadas professoras e professores de história podem trabalhar a participação ativa das mulheres negras na construção da própria história, na resistência à escravidão e no combate a desumanização de negras e negros. Trata-se de oferecer visibilidade às representações não estereotipadas das mulheres negras, enfatizando que essas sujeitas históricas foram e são protagonistas na construção da história do mundo, do Brasil e de suas trajetórias como povo negro.
Assista ao vídeo da historiadora Caroline Barroso Miranda no Acervo Cultne sobre este artigo:
Nossas Histórias na Sala de Aula
O conteúdo desse texto atende ao previsto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC):
Ensino Fundamental: EF08HI14 (8º ano: Discutir a noção da tutela dos grupos indígenas e a participação dos negros na sociedade brasileira do final do período colonial, identificando permanências na forma de preconceitos, estereótipos e violências sobre as populações indígenas e negras no Brasil e nas Américas); EF08HI19 (8º ano: Formular questionamentos sobre o legado da escravidão nas Américas, com base na seleção e consulta de fontes de diferentes naturezas); EF08HI20 (8º ano: Identificar e relacionar aspectos das estruturas sociais da atualidade com os legados da escravidão no Brasil e discutir a importância de ações afirmativas); EF08HI27 (8º ano: Identificar as tensões e os significados dos discursos civilizatórios, avaliando seus impactos negativos para os povos indígenas originários e as populações negras nas Américas); EF09HI03 (9º ano: Identificar os mecanismos de inserção dos negros na sociedade brasileira pós-abolição e avaliar os seus resultados); EF09HI04 (9º ano: Discutir a importância da participação da população negra na formação econômica, política e social do Brasil); EF09HI26 (9º ano: Discutir e analisar as causas da violência contra populações marginalizadas (negros, indígenas, mulheres, homossexuais, camponeses, pobres etc.) com vistas à tomada de consciência e à construção de uma cultura de paz, empatia e respeito às pessoas).
Ensino Médio: EM13CHS102 (Identificar, analisar e discutir as circunstâncias históricas, geográficas, políticas, econômicas, sociais, ambientais e culturais da emergência de matrizes conceituais hegemônicas (etnocentrismo, evolução, modernidade etc.), comparando-as a narrativas que contemplem outros agentes e discursos); EM13CHS502 (Analisar situações da vida cotidiana (estilos de vida, valores, condutas etc.), desnaturalizando e problematizando formas de desigualdade e preconceito, e propor ações que promovam os Direitos Humanos, a solidariedade e o respeito às diferenças e às escolhas individuais). EM13CHS601 (Relacionar as demandas políticas, sociais e culturais de indígenas e afrodescendentes no Brasil contemporâneo aos processos históricos das Américas e ao contexto de exclusão e inclusão precária desses grupos na ordem social e econômica atual).
Caroline Barroso Miranda
Telefone: (91) 98159-8293
E-mail: carolinebarrosomi@gmail.com
Instagram: @historiasdacarol
** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.