Racebending, nerds e racismo

Mais uma escalação e mais uma revolta no meio nerd: bastou anunciarem Anna Diop como Estelar na série dos Jovens Titãs e, coletivamente, vários nerds lamentaram o quanto “estavam apagando personagens brancos”. Em uma imagem compartilhada repetidamente nas redes sociais, várias escalações não brancas para personagens outrora brancos eram acompanhadas pela frase “Ta foda”. Várias das críticas à atriz traziam um subtexto gritante de racismo – a começar pela opinião de “apagamento branco”.

no Q Stage

O caso de Estelar é particularmente emblemático da indignação de parte do público nerd com atores não brancos em papéis de destaque. Não apenas a personagem é laranja, um tom de cor que não representa nenhum grupo étnico na Terra, mas… Seu desenhista original, George Pérez, deliberadamente a desenhava com traços negros e cabelo bufante: os traços caucasianos (ou asiáticos) e cabelos lisos vieram muito depois.

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O mesmo tipo de revolta com a escalação de atores “étnicos” foi visto em outras séries e filmes: quando Idris Elba foi escalado como Roland Deschain em A Torre Negra (a ponto de alguns o culparem pelo fracasso do filme). John Boyega foi alvo de campanhas de ódio ao ser escalado como o Stormtrooper desertor Finn em o Despertar da Força. Mehcad Brooksfoi atacado por seu James Olsen em Supergirl.

Igualmente, a sucessão de personagens brancos por personagens “étnicos” é frequentemente alvo de revolta e de piadas com cunho racista. Kamala Khan, a atual Miss Marvel, foi alvo de piadas alegando que seu poder seria “se explodir” e comentários furiosos sobre “pintar uma terrorista como heroína”.

Whitewashing: quando a diversidade é apagada

Mais e mais, reclamam de atores não brancos em papéis “tradicionalmente” brancos – enquanto ignoram a prática reversa: o uso de atores brancos para papéis “étnicos”. O “Whitewashing” dá as caras de várias formas: a mais comum é reescrever o personagem como sendo branco, embora alguns casos se destaquem pela cara de pau – tal qual a escalação do modelo americano Sean Faris como o japonês Kyo Kusanagi em The King of Fighters.

Se engana quem imagina que apenas obras estrangeiras são afetadas por isso: o protagonista do clássico da literatura FC americana Tropas Estelares,  o filipino-argentino Juan “Jonnie” Rico virou o loiro e alvo John “Jonny” Rico, interpretado por Casper Van Dien. O ator irlandês Liam Neeson viveu o vilão árabe Ra’s Al-Ghul em Batman Begins. Em um caso duplo de racebending, Benedict Cumberbatch interpretou o vilão indiano Khan Noonien Singh, originalmente vivido pelo mexicano Ricardo Montálban.

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O problema não é novo. Em 1956, o astro dos westerns John Wayne foi escalado no papel do conquistador mongol Genghis Khan. Em 1961, Mickey Rooney interpretou o caricato senhorio japonês Yunioshi em Bonequinha de Luxo, usando de maquiagem e próteses dentárias para assumir uma aparência nipônica. Há uma longa tradição, cada vez mais criticada, de “embranquecer” personagens no cinema.

Tampouco o problema se restringe ao cinema e a TV ocidental. Com um forte nacionalismo e movimentos étnicos exarcebados, os cinemas Indiano, Japonês, Chinês e Coreano tem uma forte tradição de reescrever personagens para a etnia nacional. Por um misto de facilidade de produção e nacionalismo, as adaptações cinematográficas de Attack on Titan (mangá que faz questão de apontar a ausência quase total de asiáticos) e Full Metal Alchemist (passado em um equivalente fantástico para a Europa) mudaram seus elencos para 100% nipônico.

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Uma forma que isso se manifesta é a exigência que personagens não sejam “estrangeiros demais “ – o que resulta em uma abundância de personagens meio e um quarto nipônicos em obras japonesas ou em protagonistas “estrangeiros” quando um filme não se passa no país em que foi produzido. Um caso particularmente emblemático disso é o protagonista da primeira série da franquia Gundam, Amuro Ray. Com um prenome que soa japonês, o personagem é – dependendo da versão de MS Gundam que se consome – 1/2, 1/4 ou um 1/8 japonês, embora seja desenhado com traços judaicos e tenha pais com nomes romenos.

A revolta seletiva

Há um comportamento “curioso” quanto à indignação com o chamado “racebending”. A recente adaptação de Death Note pela  Netflix demonstra este comportamento: embora o filme tenha sido criticado pelo Whitewashing rompante (e parcialmente justificado por sua proposta, de recontar a história nos EUA ao invés de no Japão), a maior parte da indignação veio da escalação do ator negro Keith Stanfield como o detetive L.

Há uma rejeição muito maior por atores negros, árabes e indígenas do que por outras trocas étnicas. Nos EUA, houve quem reclamasse de Ricky Whittle no papel do semideus Shadow Moon em Deuses Americanos, embora o personagem no livro fosse deliberadamente descrito como mestiço (tal qual os EUA); ao mesmo tempo, pouco se reclamou do inglês Ian McShane como o nórdico Wednesday, ou do sueco Peter Stormare como o deus eslavo Czernobog.

Um fator que explica isso é que, na sociedade contemporânea, a identidade “branca” tem precedência sobre grupos étnicos. Assim atores vistos como brancos – mesmo que não o sejam, como o nipo-descendente Dean Cain, que interpretou o Super-Homem por quase uma década – não sofrem críticas por “fazerem o papel errado”. Quando ainda circulava o boato de que a cantora e atriz Zendaya faria o papel de Mary Jane Watson, esta foi criticada por não ser ruiva – critica que não afetou sua antecessora no papel, a loira Kirsten Dunst, ou a igualmente loira Scarlett Johansson interpretando a igualmente ruiva – e russa – Natasha Romanoff.

Igualmente, RJ Cyler foi alvo de mais críticas do que os outros atores de Power Rangers, embora todos os Rangers tenham tido suas etnias trocadas – isso é, a exceção de Elizabeth Banks, criticada por whitewashing. A indo-americana Naomi Scott praticamente não sofreu ataques ao assumir o papel que antes era da acrobata Amy “Jo” Johnson – talvez por ter passabilidade branca.

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Etnicidade intencional x Incidental

Um argumento ao criticar qualquer forma de racebending (assim como mudanças de gênero, sexualidade e religiosidade de um personagem) é que isso iria contra a “essência” do personagem ou contra a “visão original”. Embora essas características frequentemente sejam puramente incidentais para o personagem e não tenham papel significativo na narrativa.

Existem casos em que estes detalhes são deliberados e pensados: O Pantera Negra foi criado como parte do movimento Afro Futurista dos anos 60. Sam Wilson, como uma resposta aos movimentos de combate ao racismo. Steve Rogers, loiro e de olhos azuis, era uma resposta irônica ao “ubermensch” nazista e o racismo contido na ideia da “Raça superior”. A Mulher Maravilha era uma reação intencional à masculinidade violenta dos super-heróis da era de ouro. Magneto Victor von Doom são em parte comentários sobre a situação dos Judeus e dos Ciganos. A já citada Kamala Khan não é incidentalmente paquistanesa e muçulmana: essas características fazem parte da essência da personagem, diferente da religiosidade de Jack Harkness (que é qual mesmo?) ou da brancura (nunca declarada, só presumida) de Kimball Kinnison (enquanto os cabelos ruivos de sua amada Clarissa MacDougall são um ponto de trama).

Em histórias de super heróis em particular, etnicidade e nacionalidade frequentemente são tratadas como um tema por si só – vide a quantidade de personagens negros com “negro” em seu nome, ou cujas origens estejam ligadas à África ou ao Gueto. Personagens asiáticos têm mistiscismo, artes marciais e “O Sol Nascente”. Latinos, por algum motivo, pendem ao fogo; oriundos de países nórdicos, ao gelo.

O ator americano Donald Glover se viu no centro de uma discussão sobre a intencionalidade e a “plausibilidade” étnica do Homem-Aranha ao se demonstrar interessado em interpretar o herói. Para grande parte do público nerd, “não era plausível” que Peter Parker pudesse ser negro. Com razão, Glover se indignou: a sugestão era de que não era possível que existisse um garoto negro, que vivesse com a tia e se interessasse por ciência. Afinal, gostar de ciência não estava dentro do estereótipo negro: não era parte do “tema”. Seu protesto levou à criação do segundo Homem-Aranha do universo Ultimate, Miles Morales.

Do outro lado: perpetuando estereótipos e confundindo ator e personagem

Ao mesmo tempo, parte do público que demanda mais representatividade e que condena as instâncias de Whitewashing no cinema ocidental recai sobre outro erro: a perpetuação de estereótipos e a confusão entre ator e personagem ao reclamar de apagamento étnico. Na tentativa de se combater o racismo, acabam por perpetuá-lo.

No Tumblr, site como uma das comunidades de “justiça social” e cyberativismo mais ativas, a etnicidade de certos atores virou motivo de revolta por seus personagens não condizerem com elas. Quando o ator judeu Jon Bernthal foi escalado para viver Francis “Frank Castle” Castligione na segunda temporada de Demolidor, houve quem reclamasse da escalação de um judeu como o anti-herói. Após o início da série, o mesmo setor da comunidade se revoltou com o catolicismo vago do personagem, afirmando que isso era apagamento judaico. No papel de James “Bucky” Buchanan Barnes, o ator romani Sebastian Stan levou parte dessa comunidade a insistir que o amigo de infância de Steve Rogers havia de ser cigano.

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De forma similar, houve quem reclamasse de apropriação cultural por parte do Demolidor, insinuando que por ser católico, o personagem só poderia ser latino. O Despertar da Força encarou críticas por “escalar um judeu como parte de uma organização baseada no nazismo” devido ao personagem de Adam Driver, ignorando que Driver não é judeu – a confusão foi, ironicamente, causada pelo estereótipo de que judeus têm narizes grandes.

Driver se viu no centro de outra polêmica junto com o ator britânico Andrew Garfield ao estrelar o filme histórico Silêncio. Movidos por falta de conhecimento histórico, usuários da rede criticaram a escalação de atores brancos para interpretar padres portugueses. Em sua visão centrada nos EUA, por falarem um idioma latino, os personagens haviam de ser mestiços. Havia um quê de racismo nisso – e na opinião recorrente em críticas ao filme de que o shogunato Tokugawa, responsável por uma campanha de limpeza étnica e religiosa, era uma inocente vítima do colonialismo.

Embora bem intencionado, esse tipo de ativismo não apenas perpetua estereótipos (coisa que foi vista com a indignação cercando o personagem Punho de Ferro e a polêmica afirmando que ele devia ser asiático) como tende a prejudicar a mesma luta contra o preconceito do qual faz parte. Particularmente quando feita com argumentos que demonstram falta de conhecimento de causa: quando o filme Ghost in the Shell (Vigilante do Amanhã, no Brasil) foi criticado pela escalação de Scarlett Johansson no papel da major Motoko Kusanagi, grupos de ativistas reclamaram da perda de “um exemplo para crianças asiáticas” – ignorando que o quadrinho-fonte é adulto, ultra violento e ultra sexual – e usaram do nome da personagem como argumento para provar sua etnia – novamente demonstrando ignorância, em vista que não apenas o quadrinho revela que a “casca” da Major é baseada em uma mulher branca, como o seu nome é um pseudônimo óbvio (algo como alguém na Inglaterra com o sobrenome excalibur). A motivação estava certa – mas os argumentos, mal pesquisados.

 

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