Racismo e Sexismo nas História da Lobotomia no Brasil

(Foto: Bigstock)

Dr. Juliano Moreira² já na década de 30 lutava para esclarecer seus contemporâneos, que os males da mente nada tinham a ver com o caráter ou com o grupo étnico dos afetados pelas doenças mentais. Sabemos que ele, apesar do prestígio adquirido no Brasil e no exterior, viu sua contribuição esvanecer sob os pressupostos do Racismo.

Mas ainda hoje, nos causa certo desespero saber o alcance destas crenças, e principalmente perceber como a contemporaneidade ainda tem certo pudor em enfatizar algumas informações.

A Associação Nacional de História (ANPUH), no dia16 de abril deste ano concedeu o 7o. Prêmio de Teses à pesquisadora Eliza Toledo, pela tese A Circulação e aplicação da psicocirurgia no Hospital Psiquiátrico do Juquery. São Paulo: uma questão de gênero (1936-1956)³.

Segundo a autora, a prática da psicocirurgia, popularmente conhecida como lobotomia, englobou um conjunto de intervenções no cérebro de pacientes diagnosticados com complicações psiquiátricas específicas e foi vista com bastante entusiasmo, malgrado as graves e irreversíveis complicações à saúde de quem era exposto a ela.

Uma análise mais profunda dos registros do Hospital Juquery, como prontuários médicos e farta documentação clínica, permitiu constatar que embora o número de pacientes do sexo masculino fosse maioria entre os internos, as psicocirurgias, entre as décadas de 1930 e 1950, foram aplicadas com maior incidência em mulheres. Para ela a questão se devia a classificação de certos comportamentos como desviantes, ou seja, aqueles que fugiam dos padrões estabelecidos pela sociedade, exatamente como aprendemos com o estudo sempre lapidar de Jurandir Freire Costa.

Em entrevista, ela afirma:

Tais noções de gênero estiveram presentes na forma como os médicos enxergavam a patologia mental que deveria ser tratada pela psicocirurgia, perpassada por noções como a instabilidade feminina. O diagnóstico de personalidade psicótica, muitas vezes atribuído em relação ao seu caráter amoral, foi importante na indicação de cirurgia em mulheres classificadas pelos médicos como brancas, amarelas, negras e pardas, mas especialmente nestes dois últimos grupos, demonstrando relação à percepção da patologia e de seu tratamento⁴. 

O Olhar necessário da contemporaneidade

Contudo, as fontes coletadas pela brilhante pesquisadora exigem um olhar diferenciado.

Inicialmente cabe investigá-las à luz dos ensinamentos do médico psiquiatra Frantz Fanon, ainda pouco visitado pelos estudiosos da Saúde Mental no Brasil ⁵. É urgente aplicar-lhes a noção de que estes processos de alienação e domesticação dos corpos e mentes daqueles e daquelas que caíam na teia psiquiátrica, enquadravam-se na pedagogia levada a cabo pela estrutura de colonização, hoje analisada sob a ótica das colonialidades que atingem até mesmo a dimensão ontológica dos subjugados.

Urge também, acionar o largo material epistemológico, de vozes transgressoras e insurgentes, iniciado no Brasil por Lélia Gonzales, Beatriz Nascimento, Neusa Santos e Sueli Carneiro⁶, em paridade intelectual com os contributos de bell hooks, Patrícia Hill Collins e Kemberly Crenshaw entender como o sexismo e o racismo puniram aquelas que ousaram desobedecer.

Por fim, precisamos justapor estas narrativas à arte de Rosana Paulino, fornecer-lhes as tessituras da costura de Sônia Gomes e a poética interdisciplinar de Grada Kilomba.


² Uma ótima análise sobre a importância do médico brasileiro foi feito por Ynaê Lopes dos Santos, Juliano Moreira: o médico negro na fundação da psiquiatria brasileira. Coleção Personagens do Pós-Abolição. Rio de Janeiro: Eduff, 2020.

³ Tese disponível no siteda isntituição: tese_eliza_toledo.pdf (fiocruz.br). Matéria publicada em 19-05-21 nosite do Café História: https://www.cafehistoria.com.br/estudo-de-historia-sobre-lobotomia-premiado. Acesso em 19-05-21.

⁴ Entrevista concedida ao Café História, idem.

⁵ Sobre os estudos de Frantz Fanon e a saúde mental no Brasil, Deivison Faustino e Maria Clara dos Santos Oliveira, Frantz Fanon e as máscaras brancas dasaúde mental: subsídios para uma abordagem psicossocial. Revista da ABPN • v. 12, n. Ed. Especial – Caderno Temático: “III ANPSINEP – Articulação Nacional de Psicólogas/os Negras/os e Pesquisadoras/es” • outubro de 2020, p. 6-26

⁶ Sobre o tema no Brasil, ver Marisangela Lins de Almeida, Mulheres negras e intelectualidade: transgredindo fronteiras. Anais do Encontro Internacional e XVIII Encontro de História da ANPUH-Rio, História e parcerias. Um bom apanhado sobre a contribuição das intelectuais negras está em COLLINS, Patrícia Hill. Aprendendo com a outsider within: a significação sociológica do pensamento feminista negro. Revista Sociedade e Estado, vol. 31, n. 1, p. 99-127, jan./abril, 2016.

¹Rosemeri Conceição é Historiadora, Mestre em História Social pela USP, Doutoranda em História e Crítica da Arte pelo Programa de Artes Visuais da UFRJ e Coordenadora da Casa Preta da Maré.
** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 
-+=
Sair da versão mobile
Privacy Overview

This website uses cookies so that we can provide you with the best user experience possible. Cookie information is stored in your browser and performs functions such as recognising you when you return to our website and helping our team to understand which sections of the website you find most interesting and useful.

Strictly Necessary Cookies

Strictly Necessary Cookie should be enabled at all times so that we can save your preferences for cookie settings.

If you disable this cookie, we will not be able to save your preferences. This means that every time you visit this website you will need to enable or disable cookies again.