Racismo estrutural virou álibi para justificar práticas individuais e institucionais, diz professor

FONTEFolha de São paulo, por Renata Galf
Samuel Vida, advogado, professor de direito e coordenador do Programa Direito e Relações Raciais da UFBA - OAB-BA / Divulgação

Apesar de considerar correta a análise de que o racismo estrutural é uma realidade, Samuel Vida, que é professor de direito da UFBA (Universidade Federal da Bahia), considera que o uso da expressão tem se banalizado.

O termo racismo estrutural tem, segundo ele, sido apropriado de uma maneira que esvazia seu sentido, apresentando o racismo como uma espécie de fatalidade.

“Então as pessoas alegam, ‘olha, isso é resultado do racismo estrutural’, ponto. E não se discute, não se apresenta a lista dos responsáveis por isso.”

“É como se houvesse uma condicionalidade invisível, imperceptível diante da qual nós não teríamos como diagnosticar adequadamente e atacar no sentido de erradicar o que produz o racismo. Então a expressão racismo estrutural tem virado nos últimos anos um álibi para justificar tanto práticas individuais quanto práticas institucionais”, diz.

Samuel Vida, 53, é coordenador do Programa Direito e Relações Racias na UFBA. Fundada em 2003, a iniciativa foi pioneira entre as faculdades de direito do país.

Qual o pilar do Programa Direito e Relações Raciais da UFBA? Nós nos inspiramos muito em uma pesquisa feita pela professora Dora Lúcia de Lima Bertúlio. Ela concluiu a pesquisa de mestrado dela em 1989 e publicou como livro somente agora, em 2019. A pesquisa tem como título “Direito e Relações Raciais: Uma Introdução Crítica ao Racismo”.

Essa obra nos inspira porque é a primeira abordagem feita no Brasil que chama atenção para esse dado: o campo jurídico não discute adequadamente racismo e relações raciais. Em segundo lugar, ela destaca um outro aspecto muito importante que é o de que o racismo, como fenômeno social, impregna as instituições jurídicas. Então ele está presente em toda manifestação de juridicidade conhecida no Brasil. E ela vai fazendo todo um um resgate histórico disso, desde o período imperial até o final dos anos 80.

Como professores de direito das diferentes áreas podem atuar para mudar isso? Eu penso que há duas ações, duas atitudes fundamentais e básicas, sem prejuízo de que elas se desdobrem em várias outras. A primeira é o estudo e o reconhecimento da complexidade racial. Há um nível de desinformação que não é gratuito, que é fruto de como essas engrenagens funcionam.

A própria faculdade é um dos fatores da desinformação. Porque, por exemplo, como é que uma disciplina como direito penal não discute violência policial, não discute genocídio negro? Então, a primeira atitude é de buscar mais informações, não dá para esperar que, quando casualmente se deparem com os dados, mostrem surpresa, os professores de direito têm o dever de estudar as relações raciais brasileiras e compreendê-las.

O segundo movimento é a revisão dos programas que cada professor gerencia no interior de suas instituições. Nós, em geral, temos um padrão de programa nas disciplinas de direito que parece ter sido formulado no mesmo laboratório, às vezes com pontos idênticos, com a estrutura idêntica, muitas vezes com a bibliografia idêntica. Quase sempre voltada para uma matriz euro-norte-americana.

Ou seja, nós discutimos a partir de bases teóricas de pensadores alemães, italianos, norte-americanos, franceses. E quase nunca —em alguns casos não há um único— autores brasileiros. Ou, quando há, são autores brasileiros que repetem os autores estrangeiros, ou seja, nós não estudamos a realidade brasileira na formação jurídica. E isso precisa ser enfrentado.

Todas as disciplinas, desde aquelas mais técnicas, por exemplo, direito processual civil, que à primeira vista poderiam dizer ‘mas o que é que isso tem a ver com relações raciais?’, têm relação, sim. Porque é ali que se discute uma série de instrumentos que vão possibilitar efetivamente o acesso ou não às estruturas judiciais. Dependendo da complexidade que um instrumento desse tenha ou do entendimento de como ele deve ser manuseado por um juiz, pelo advogado, pelo promotor, isso vai ter um impacto racializado.

Apesar dos altos índices de letalidade policial, principalmente contra a população negra, na proposta do pacote anticrime do então ministro Sergio Moro constava o excludente de ilicitude. Como o senhor vê o papel do direito em medidas como esta? É a confirmação de que o direito e as instituições jurídicas podem servir como as principais afiançadoras do genocídio negro. Nós nos insurgimos ativamente contra esta proposta e outras do pacote anticrime, eu participei inclusive de uma mesa realizada na Câmara dos Deputados por ocasião da fase de debate sobre o projeto, exatamente apontando para este absurdo.

Em uma sociedade que já tem um elevado índice de impunidade quando a ação policial ilegal se dirige contra negros, você cria uma categoria a mais que possibilitaria legalizar ações abusivas, violadoras de direitos. No próprio direito em vigor, já existe a excludente de ilicitude na forma da legítima defesa ou estrito cumprimento do dever legal, que abriga a ação policial quando ela é realizada dentro da legalidade.

Utilizamos, inclusive, este exemplo para demonstrar como não há e nunca houve no Brasil um direito neutro quanto às relações raciais. Toda estrutura jurídica brasileira, em maior ou menor escala, está transversalmente estruturada por uma lógica de supremacia racial branca.

E não é somente a ação policial, é também a existência, por exemplo, de uma norma que concede, ao delinquente portador de diploma universitário, o direito a uma prisão especial. O que justifica isso numa sociedade em que, até recentemente, negros quase nunca entravam na universidade? Isso é uma forma, ainda que não explícita, de estabelecer um tratamento racial diferenciado.

Qual a importância do termo relações raciais e não direito antidiscriminatório, por exemplo? O racismo implica sujeitos que estão em polos diferentes. Então, há sempre uma relação. Essa relação, do nosso entendimento, é de poder e de dominação, mas é também de resistência e de enfrentamento.

Então, quando você chama a atenção para o direito antidiscriminatório, você coloca uma perspectiva que sugere uma passividade do polo vitimado e, ao mesmo tempo, não evidencia plenamente as responsabilidades do polo opressor. Quando você foca nas relações, você reconhece que há uma dinâmica, que essa dinâmica se atualiza.

Por exemplo, muitas vezes as pessoas que falam apenas a partir do eixo da discriminação querem nos convencer de que há razões estruturais —está na moda agora falar em racismo estrutural— para explicar as desigualdades.

Nós rejeitamos essa leitura, porque, no nosso entendimento, a relação atualiza a opressão. Então as pessoas brancas integram uma relação. O racismo é uma relação. Elas têm vantagem, elas se beneficiam materialmente e simbolicamente. Então, é preciso compreender o racismo sempre nessa dinâmica relacional.

Vem ganhando destaque no debate público o racismo estrutural. Como o senhor avalia a adoção deste termo pela população? Eu tenho dito que o uso da expressão tem se banalizado. A construção da ideia do racismo estrutural é uma construção antiga, feita pelo movimento negro norte-americano, vários autores norte-americanos produziram análises mostrando como o racismo estrutura as instituições. E essa análise está correta, ela não está errada.

O problema é que, no Brasil, entrou na moda uma apropriação que esvazia o sentido da expressão e passa a sugerir que há um racismo que é originado de estruturas indeterminadas. É como se houvesse uma condicionalidade invisível, imperceptível, diante da qual nós não teríamos como diagnosticar adequadamente e atacar no sentido de erradicar o que produz o racismo.

Então a expressão racismo estrutural tem virado, eu diria que nos últimos anos, um álibi para justificar tanto práticas individuais quanto práticas institucionais. E, ao mesmo tempo, apresenta-se sempre como sendo uma espécie de fatalidade. Então, as pessoas alegam, ‘olha, isso é resultado do racismo estrutural, ponto’. E não se discute, não se apresenta a lista dos responsáveis por isso.

O próprio episódio do assassinato do João Alberto evocou manifestações. Em certo momento um dos executivos da empresa chegou a falar inclusive que eles admitiam que o que ocorrera fora resultado do racismo estrutural. E quem é esse sujeito que movimenta o racismo estrutural? Nós temos uma empresa que contrata a segurança, que prepara, que define critérios para exercer o controle no interior de suas instituições. Você apaga tudo isso e remete para um sujeito indeterminado, invisível.

O Estado da Bahia foi pioneiro ao criar em 1997 a primeira Promotoria de Justiça de Combate ao Racismo no país. Qual a importância de uma promotoria especializada? Ela é muito relevante, porque possibilitou aqui na Bahia um aumento do comprometimento do Ministério Público como um todo com a temática. O Ministério Público baiano passou a figurar como parceiro em várias iniciativas e debates sobre relações raciais e racismo, o que não acontecia antes da promotoria, e irradiou esse efeito para outras instituições.

Então, além do Ministério Público, hoje o próprio Tribunal de Justiça, embora de forma ainda muito tímida, constituiu um grupo de trabalho para discutir a questão do racismo no Judiciário e curiosamente esse grupo de trabalho é liderado pelo atual desembargador que, à época da criação da Promotoria, foi o primeiro promotor de combate ao racismo —e é uma pessoa inclusive não negra— o que mostra que o engajamento das pessoas com a temática, quando há esclarecimento adequado, gera um efeito institucional que se multiplica. ​

Samuel Santana Vida, 53

Ogan de Xangô do Terreiro do Cobre e advogado. É professor de direito e coordenador do Programa Direito e Relações Raciais da UFBA (Universidade Federal da Bahia). Secretário-executivo do Aganju (Afro-Gabinete de Articulação Institucional e Jurídica) e doutorando em Direito, Estado e Constituição pela UnB (Universidade de Brasília), onde também obteve o título de mestre.

 

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