Racismo não tem desculpa

Reprodução/YouTube/ Itaú Cultural

A jornalista Maju Coutinho mais uma vez sofreu ataques racistas. Até quando episódios como esse vão se repetir?

Por PAI RODNEY, da Carta Capital

Reprodução/YouTube/ Itaú Cultural

Então é assim: xinga, ofende, humilha, desqualifica, desumaniza e depois vai lá e faz um videozinho pedindo desculpa, dizendo que se expressou mal, que não pensa desse jeito, que não sabe o que aconteceu, que foi uma declaração infeliz e está tudo certo. Quantas vezes já vimos esse filme? E até quando episódios como esse vão se repetir? O cara estava participando de uma live no Instagram e disparou um monte de impropérios racistas contra a jornalista Maju Coutinho, apresentadora do Jornal Hoje, e a médica Thelma Assis, participante desta última edição do BBB.

O tal empresário Rodrigo Branco, com um histórico bastante controverso tanto na carreira como diretor de TV quanto em sua atuação como “prefeito” de Orlando, deixou a DJ e influenciadora Jude Paulla absolutamente atônita com suas opiniões. O amigo e facilitador de inúmeras celebridades brasileiras (que desfrutam das “vantagens” que ele consegue, por exemplo, nos parques da Disney) destilou seu racismo sem nenhum constrangimento. Em seguida, usando a mesma tática de todo racista, postou um vídeo se desculpando e reconhecendo seu “erro”. Claro que restringiu os comentários e foi defendido por seus seguidores (brancos como ele). Porém, a essa altura, a internet já era sacudida por uma enxurrada de postagens que o obrigaram a excluir seu perfil.

Os advogados de Maju Coutinho e Thelma Assis já devem estar tomando as medidas judiciais cabíveis. Ao sugerir que a jornalista e a médica só teriam alcançado suas posições de destaque em razão de sua cor, o empresário desconsidera que esse, na verdade, é um privilégio de outro grupo étnico. Além de referir-se à médica como uma “negra coitada”, Branco fez duras críticas ao trabalho da jornalista, inclusive com informações falsas, chegando a afirmar que Maju não seria uma boa profissional.

Não as conheço pessoalmente, mas sei da luta de tantas outras mulheres negras e devo lembrar que este é um quadro que se repete: chegar a um lugar de notoriedade e ver sua trajetória desmerecida, desqualificada por um racista. Isso é um crime que não pode mais cair na conta do mal-entendido, da brincadeira, da injúria. Não se trata apenas de um comportamento irresponsável, principalmente quando se tem quase um milhão de seguidores.

Essa conduta criminosa, que incita ao ódio e à violência contra pessoas negras, sobretudo as mulheres, não pode, definitivamente, ser considerada inocente, ingênua. Quem age dessa maneira tem um comportamento condenável, criminoso, e deve responder com todo o rigor da lei. Sabemos que ainda teremos que trabalhar muito para que o racismo seja classificado como crime independentemente do caráter de sua manifestação. Racistas como Rodrigo Branco deveriam ser punidos de maneira exemplar, mas branco não vai pra cadeia por violar o direito de um negro, e mais uma vez vemos como o privilégio opera numa estrutura como a nossa.

Num país fundado no racismo e na exclusão, as únicas leis que de fato funcionam pra todos são a “lei do silêncio”, a “lei do cão” e a lei da gravidade. No Brasil, a fome e a vulnerabilidade sempre fizeram parte da dura realidade do povo negro. Aqui, a pobreza tem cor e gênero. Pretas e pobres deveriam ser invisíveis, mas quando “ousam” alcançar os holofotes tornam-se o alvo preferencial. Que importa a luta dessas mulheres? Elas não deveriam estar lá e pronto. Como se atrevem a ocupar o lugar dos brancos?

Certa vez, voltando do Rio de Janeiro para São Paulo com algumas amigas, tivemos que parar numa grande rede atacadista. Ao sair do carro me ofereci pra levar a mochila de uma delas, mas já avisei: “negro de mochila não entra em mercado, vão me barrar.” Não deu outra. Cruzei a porta e o segurança já me abordou: “você vai ter que deixar sua mochila no balcão.” Olhei pra ela e falei: “eu não disse?” Ela pegou a mochila e avisou o segurança que não a deixaria porque tinha coisas de valor, se ele queria olhar: “não, senhora, pode entrar, fique à vontade.” Virei pra ela e disse: “isso é o que a gente chama de privilégio branco.”

Eu nunca entrei num supermercado ou loja de departamentos com uma mochila sem ser abordado ou seguido por seguranças. Já cheguei a precisar da intervenção do gerente numa grande loja de material de construção. Os argumentos dessas empresas também são os mais batidos possíveis. Passou da hora de instruírem adequadamente seus funcionários ou contratarem terceirizados minimamente treinados. Além de responsável, essa atitude demonstraria, com efeito, uma tentativa de superar esse racismo disfarçado de norma de segurança.

A confusão, o equívoco, a brincadeira. Por que não nos confundem com médicos, advogados, policiais, professores? Por que as suposições que recaem sobre um negro são sempre as piores? Quais as consequências disso na organização social? Vou lembrar um episódio bem típico. Alguns anos atrás, o ministro Luís Roberto Barroso, ao tentar elogiar Joaquim Barbosa, disse que o ex-presidente do STF seria um “negro de primeira linha”. Dias depois, com voz embargada, ressaltava que passou a vida inteira “tentando combater e derrotar estereótipos racistas”, mas, pelo que se viu, não venceu o próprio racismo internalizado.

Por fim, a assertiva de um site de piadas, que dizia não ser racista e esclarecia, antes de tudo, que não havia intenção de ser preconceituoso, nem de estimular tais atitudes. Pois bem, na primeira linha já se lê a “anedota”: “Por que preto não erra? Porque errar é humano!” Denunciar resolve? Se racismo é justamente a desumanização do outro, como eles não são racistas? Uma coisa é certa: antes de dizer se é ou não racista, o Brasil precisa aprender o que é racismo (na teoria, pois na prática sabe perfeitamente).

Tudo isso pra dizer que um pedido de desculpas não resolve. Só mesmo a conscientização desse povo sobre a forma como o racismo opera neles e o impacto de suas “brincadeiras” e “mal-entendidos” na vida das pessoas negras seria suficiente. Essas atitudes alimentam uma estrutura que não só impede a ascensão de negros e negras, como justifica seus lugares sociais aviltantes, encarceramento e morte. Aliás, é bom lembrar que o silêncio de alguns também é racismo.

O ideal seria o racismo ser julgado enquanto crime em todas as suas formas de manifestação, mas o Código Penal Brasileiro é uma “política de inclusão” para pobres e pretos (perdão pelo pleonasmo). Então, como um branco nunca será punido por esse crime de forma realmente justa, a melhor maneira de “se desculpar” de fato, de mostrar que se arrependeu, é contribuir com ações efetivas na luta antirracista, inclusive com apoio financeiro.

Por enquanto, a única certeza que tenho é que o “lugar do negro” é um lugar onde ninguém quer estar. Ao Branco e brancos deste País, recomendo notar que o racismo estrutural não lhes impinge sequer um mínimo de empatia. E eles ainda reclamam: “Mas vocês veem racismo em tudo!” Pois lhes digo: “Parem de praticar, que a gente para de ver.”

 

 

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