Racismo que matou João e vitimou Miguel encontra reação nas urnas

FONTEPor Maria Carolina Trevisan, de Universa
Mirtes Renata Santana, mãe de Miguel Otávio Santana da Silva Imagem: JÚLIO GOMES/LEIAJÁIMAGENS/ESTADÃO CONTEÚDO

O racismo desvaloriza as vidas negras. João Alberto Silveira Freitas, 40, um homem negro, foi espancado por um policial militar e um segurança na noite desta quinta (19) no estacionamento do Carrefour em Porto Alegre (RS). Mais um caso de violência racial em supermercados. Em 2019, vimos a tortura de um jovem negro de 17 anos no Ricoy, em São Paulo, e o sufocamento até a morte de outro jovem negro no Extra, no Rio.

Em Recife, Miguel, o menino de Mirtes, completaria seis anos esta semana. Ele nasceu em 17 de novembro de 2014, às 7h42, rechonchudo. Pesou 4,5 quilos e mediu 42 centímetros. Teve a vida interrompida pelo desprezo, a negligência, a crueldade que muitas vezes determinam as relações raciais no Brasil. Miguel era muito pequeno. Não teve tempo de aprender o lugar do negro no país onde a sociedade se estruturou sobre o mais numeroso e longo período de escravidão do mundo.

“O Miguel, a cada minuto, era uma alegria diferente”, descreveu a madrinha, Jéssica, no vídeo que celebra a vida do menino negro. Vida que valia nada para a patroa de Mirtes, Sari Corte Real. Ela o abandonou no elevador de um prédio de mais de 40 andares em Recife, em 2 de junho, auge da pandemia. Miguel tinha cinco anos de idade. Procurava sua mãe.

Mirtes Renata Souza, 33, guardou cada vela de aniversário, memória das festinhas caprichadas que fazia. Na indescritível dor da perda de um filho, o que move seus dias é o desejo de justiça e o acolhimento da rede de amor que construiu. Marta, a avó, guardou a lembrança do companheirinho que a levava na academia. Era seu jeito de motivá-la a fazer exercícios. Paulo, o pai de Miguel, mal consegue respirar, sufocado de tristeza. “Feliz aniversário, filho”, diz, no vídeo em que registra a saudade. “Me sinto sozinho no mundo.” Chora.

A violência que levou a alegria de Miguel, Mirtes, Paulo, Marta, Jéssica, e caracteriza a dor de tantas famílias negras, não pode ser admitida. Miguel era pequeno. Não sabia que ali não ele tinha direitos.

Justiça racial nas urnas

O país que tolera o racismo não pode se dizer democrático. Como afirma o manifesto da Coalizão Negra por Direitos, “enquanto houver racismo, não haverá democracia”. Mas as eleições de 2020 mostraram que há evidências de mudanças consistentes rumo a um país com mais justiça racial. O patrão de Mirtes e Marta, Sérgio Hacker Corte Real (PSB), marido de Sarí, tentou a reeleição à prefeito de Tamandaré (PE). Perdeu.

A proporção de candidatos negros em 2020 foi a maior já registrada. Pela primeira vez, brancos não foram maioria. Como demonstrou o site Gênero e Número, vereadores negros ocuparão 44% das cadeiras no país. Mas ainda há um longo caminho. Nas prefeituras, apesar do avanço em relação a 2016, apenas 32% dos eleitos são negros, um abismo de representação em relação à população brasileira (56% são negros).

“A mudança é notável”, afirma o sociólogo Celso Rocha de Barros, colunista da Folha. “Agora tem bancadas, de vários partidos, que se juntam quando uma questão de relevância para os negros está em pauta. Essa mudança foi a boa notícia da eleição. Não se deve superestimar o tamanho disso no momento atual. Aconteceu mais em capitais, não sabemos ainda o quanto isso chegou ao Brasil profundo, mas é uma tendência. Isso vai se disseminar”, analisa.

No Rio, Mônica Benício, viúva de Marielle, se elegeu vereadora pelo PSOL. É mais uma evidência da força do antirracismo no Brasil. Marielle representa a mulher negra, da favela, liderança na luta pelos direitos humanos, o que se refletiu em diversas candidaturas pelo país. Curitiba e Vitória elegeram suas primeiras vereadoras negras: Carol Dartora, do PT, e Camila Valadão, do PSOL. A capital paulista elegeu a primeira mulher negra e trans, Erika Hilton (PSOL), a sexta mais votada.

Ao que tudo indica, o bolsonarismo se enfraqueceu. As urnas mostraram que boa parte dos eleitores não compactua com discursos agressivos, preconceituosos, que incentivam o ódio. Um dos candidatos mais alardeados pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) em seu horário eleitoral particular, o ex-presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo Ivan Sartori (PSD), candidato à prefeitura de Santos, teve apenas 18,33% do votos. Ele é conhecido por ter absolvido os policiais militares que participaram do Massacre do Carandiru, uma das mais graves violações de direitos humanos de pessoas sob custódia do Estado que já aconteceu no planeta. A maioria dos 111 assassinados naquele 2 de outubro de 1992 era negra. Bolsonaro saudou a ação, estimulando a violência policial, como a que vitimou João no Carrefour. A urna rechaçou o candidato.

“Bolsonaro enquanto político perdeu, mas pode ser que ele se recomponha com perfil mais para o populismo do que para o autoritarismo. Aquela onda de 2018 parece ter passado”, diz Celso. Dependendo de quem seja o presidente da Câmara dos Deputados e de como o país irá responder à crise econômica em 2021, o discurso bolsonarista pode até voltar. “Mas, neste ano, não pegou.” Ao que tudo indica, o Brasil caminha para um movimento de reorganização à esquerda e à direita, com mais diálogo e negociação, menos violência, racismo e ódio.

Tomara que sejam sinais de reequilíbrio, de enfrentamento ao racismo. Para que não se tolere mais o ódio racial. Para que as vidas não sejam perdidas para a violência.

A justiça por Miguel não pode esperar mais.

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