Racista é você!

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Copiando o professor do Uneafro-Brasil Douglas Belchior, tive algumas vezes a chance de, diante de um público relativamente grande, fazer duas perguntas cujas respostas são sempre emblemáticas. A primeira é: “quem aqui acredita que o Brasil é um país racista?” – mar de mãos aos céus. A segunda: “quem aqui se considera racista?” – nenhuma mão se levanta. O resultado não destoa do que mostram algumas pesquisas feitas com maior rigor científico. Uma delas foi realizada pelo Datafolha em 2008: enquanto 91% dos entrevistados responderam que sim, existe racismo contra os negros no Brasil, apenas 3% se assumiram racistas.

Diante dos números, uma primeira hipótese seria a de que esses 3% são bastante conhecidos, muitíssimo influentes e é a exclusivamente deles que provém o preconceito identificado por 91% dos brasileiros e das brasileiras. Considerando o absurdo dessa ideia, estamos num impasse: no Brasil, parece existir um racismo sem racistas. Justamente esse paradoxo é que parece explicar por que as injúrias raciais proferidas por uma menina branca do Rio Grande do Sul a tornaram, do dia para a noite, a inimiga número 1 da nação.

Em geral, o racista brasileiro prefere pensar que racista é o outro, o que faz xingamentos diretos a um indivíduo específico, passíveis de todos os rigores da lei. Os casos cotidianos de inferiorização, os comentários “inofensivos”, as “piadas” de preto, isso tudo, para muitos, é bobagem. Muitos, na verdade, dão-se por satisfeitos se puderem continuar com seu discurso impregnado de preconceito sem arcar com o ônus que é receber a pecha de racista. No entanto, talvez para se sentirem melhores do que realmente são, essas mesmas pessoas se apressam sempre que possível para atribuir a outrem a inominável ofensa que, quando proferida por pessoas negras, tende a ser vista como exagero e vitimismo: “seu racista!”

A torcedora gremista não é a primeira em tempos recentes a catalisar esse sentimento. Poucos anos atrás, em 2009, o zagueiro argentino Desábato foi alçado à categoria de inimigo da nação ao xingar, em partida pela taça Libertadores, o atacando são-paulino Grafite. Na ocasião, novamente o termo “macaco” (a criatividade dos racistas é muito limitada) chocou o mesmo Brasil que acha natural nomear alguém a partir da analogia com algo de cor preta. No caso, o termo “grafite” demarca no codinome do jogador sua condição social desfavorável, fazendo com que, ao nomeá-lo, seja sempre delimitado seu lugar social e as implicações dele. Não vemos isso como problema se a atitude provém de brasileiros, gente boa e cordata. Mas não venha aqui um argentino chamar de macaco o “nosso neguinho”. Isso nunca!

Via de regra, os mesmos que não são capazes de enxergar a distinção racial (conceito que só não existe na Biologia) em apelidos como “grafite” são as pessoas que, em favor de uma “igualdade abstrata”, mostram-se contra as cotas raciais. Sob a falácia de que as cotas sugeririam uma suposta inferioridade dos negros, não percebem o quanto a pobreza do raciocínio os denuncia. Considerando o fato de que, nos vestibulares mais concorridos das universidades públicas, os negros são uma pequena parcela dos aprovados, pode-se perguntar: isso se deve aos anos de escravidão e à ausência de políticas para reparar seus efeitos, ou à inferioridade dos negros? A quem optar pela segunda opção, devo lembrar que, em Biologia, raça não existe. A quem optar pela primeira, resta defender ações afirmativas ou, na pior e mais honesta das hipóteses, assumir que convive bem com as injustiças sociais.

Com essas considerações, somos levados ao conceito de “racismo institucional”, termo cunhado por integrantes do grupo Panteras Negras para designar o fracasso das instituições na promoção de uma igualdade racial (tendo sempre em mente que, nas relações sociais, raça existe sim). Esse tipo de racismo não equivale à injúria racial cometida por torcedores do Grêmio contra o goleiro Aranha. Trata-se sim da inoperância das instituições diante de uma sociedade que trata como “natural” os negros serem maioria nas prisões, mas minoria nas festas de formatura.

Normalmente, a maioria dos que repudiam a atitude da jovem gaúcha não demonstram a mesma comoção diante do racismo institucional, verdadeiro problema a ser combatido. Por mais que seja abominável ofender alguém por pertencer a um grupo étnico cuja história é toda de sofrimento e luta, nosso real algoz não é quem nos chama de macacos. Antes, são os que negam empregos, os que fecham as portas dos hospitais e das universidades, os que promovem políticas de “segurança” genocidas nas periferias. Amarildo e Cláudia são, infelizmente, apenas dois exemplos de uma lista cada dia mais longa.

Tendo isso em mente, o linchamento que a torcedora gremista vem sofrendo talvez seja mais um ato de reafirmação do racismo que de combate a ele, por mais paradoxal que isso pareça. Recorrendo ao Antigo Testamento, convém lembrar a figura do “bode expiatório”, animal que era oferecido em sacrifício para purgar os humanos de todos os pecados cometidos. Parece que, em vez de questionarmos efetivamente o racismo institucional e seus efeitos, limitamo-nos a oferecer o sacrifício de uma jovem para que os deuses nos perdoem. Deuses que, talvez, sequer existam. Ao contrário do racismo.

 

 

 

Fonte: Brasil Post 

 

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