Reação à pobreza tem de ir além da política

Desde 1982, indicadores melhoraram em ano eleitoral

FONTEO Globo, por Flávia Oliveira
Flávia Oliveira (Foto: Marta Azevedo/ Arquivo O Globo)

Num intervalo de quatro décadas e quase uma dúzia de eleições gerais — excluindo disputas por prefeituras e câmaras municipais —, a pobreza caiu no país em todos os anos de pleito. Rigorosamente todos. A conclusão é do economista Marcelo Néri, da FGV Social, em cruzamento sobre a renda dos brasileiros e os ciclos políticos. É o efeito pró-cíclico que presidentes, governadores e parlamentares impõem à atividade econômica com gastos públicos para se reeleger ou emplacar seus candidatos nas cadeiras do poder político. Aconteceu em 1982, 1986, 1989, 1994, 1998, 2002, 2006, 2010, 2014, 2018. E também no ano passado, como informou o IBGE na Pnad Contínua 2022 sobre rendimentos.

A corrida eleitoral passada foi farta em liberação de recursos para proveito político. Teve de orçamento secreto saído dos gabinetes do Congresso Nacional a Auxílio Brasil anabolizado em 50% às vésperas do pleito; de auxílios-gás, taxistas e caminhoneiros a corte de ICMS para reduzir o preço da gasolina nos postos, num afago à classe média. Ainda assim, o presidente candidato à reeleição foi derrotado nas urnas.

A recuperação do mercado de trabalho, sobretudo em serviços, após dois anos de restrições de atividade em decorrência da pandemia e os programas sociais arranjados para alavancar votos para Jair Bolsonaro resultaram num recorde na proporção de brasileiros com rendimentos. Ao todo, 62,6% da população tinha algum dinheiro, maior nível em uma década. O rendimento domiciliar per capita saltou 6,9%. Saiu da média mensal de R$ 1.484 em 2021, mínimo da série histórica iniciada em 2012, para R$ 1.586.

— Os dados sugerem que o ciclo eleitoral foi mais forte em 2022 — atesta Neri.

Ao menos 7,7 milhões de brasileiros conseguiram ocupação no ano passado, segundo Alessandra Brito, analista da Pnad Contínua do IBGE. Com isso, a massa de rendimentos do trabalho avançou 6,6%, para R$ 253 bilhões, embora a remuneração média per capita tenha caído 2,1%. O que disparou foram os ganhos com algum benefício social — Bolsa Família e Auxílio Brasil à frente. O percentual de domicílios cobertos dobrou de um ano para outro (de 8,6% para 16,9%), o que elevou a renda dos mais pobres.

Os especialistas não duvidam que a tendência de redução da desigualdade e de aumento nos rendimentos se estenderá a 2023. Em 2022, o pacote eleitoral incidiu, sobretudo, no segundo semestre. Apenas em agosto passado o Auxílio Brasil saiu do mínimo de R$ 400 para R$ 600. Em 2023, atravessará todo o ano. O Bolsa Família foi relançado com adicionais por crianças, adolescentes e gestantes. O salário mínimo voltou a ter reajuste acima da inflação, favorecendo quem recebe o Benefício de Prestação Continuada (BPC), aposentadorias e pensões. O IPCA, índice da meta, também está menor agora.

A preocupação é tornar a tendência sustentável no longo prazo. O gasto social como proporção do PIB (cerca de 1,5% no Bolsa Família, 1% no BPC) avançou a patamar comparável ao da Espanha (2,5% a 3%), diz Neri. Nas contas dele, cada real distribuído no Bolsa Família movimenta R$ 1,78 na economia; no BPC, R$ 1,19; nas aposentadorias, R$ 0,52. Quanto mais focalizada nos pobres for a política social, mais a atividade econômica se movimenta. O mercado de trabalho é variável fundamental. No período de maior ascensão social no Brasil, até 2014, o emprego com carteira assinada foi mais determinante que os programas de transferência de renda.

— A queda na pobreza e até na desigualdade, no ano passado, era esperada em algum grau. Para o futuro, é preciso aprimorar o funcionamento do Bolsa Família e, sem dúvida, avançar na renda do trabalho. O emprego melhorou, mas ainda estamos longe do nosso pico histórico em termos de formalização — analisa Pedro Ferreira de Souza, pesquisador do Ipea.

Especialista em políticas sociais, Marcelo Reis Garcia alerta sobre a necessidade de impulsionar o mercado de trabalho para superar o que tem chamado de “ilusão estatística”. A queda na concentração de renda no ano passado se deu fortemente pelo aumento da proteção social. Além do valor a mais, o total de beneficiários saiu de 14 milhões para o patamar de 20 milhões. É bom, mas não suficiente:

— Não foi renda produzida. Foi renda transferida. As famílias estão mais dependentes da renda assistencial. O Bolsa Família precisa se articular com políticas de emprego para que a queda da desigualdade seja sustentável — completa.

As transformações do mundo do trabalho exigem ações para estimular postos com carteira assinada, mas também formalizar autônomos e apoiar empreendedores com crédito, assistência técnica, acesso a mercados, sejam eles individuais, micro ou pequenos, da área urbana ou rural. Sem esquecer as dimensões de gênero e raça, uma vez que mulheres e negros são maioria entre desempregados, trabalhadores informais e mal remunerados. A reação começou, mas está longe do fim.

-+=
Sair da versão mobile