“(Re)conhecendo a Amazônia Negra” traz olhar sobre desenvolvimento da negritude

A mostra revela a imersão da fotógrafa Marcela Bonfim no Vale do Guaporé, em Rondônia

Por Antonio Laudenir, Diário do Nordeste
Registro de Marcela Bonfim sobre a manifestação de fé no Vale do Guaporé. Lá, acontece a Festa do Divino, importante peregrinação Católica da Região Norte
Foto: Marcela Bonfim

Existe um Brasil marginalizado, sem rosto ou história. O alerta é dado pela exposição “(Re)conhecendo a Amazônia Negra”, em cartaz na Caixa Cultural Fortaleza a partir da próxima sexta-feira. Reunindo 55 imagens, a mostra representa a imersão da fotógrafa Marcela Bonfim no Vale do Guaporé, Estado de Rondônia.

O acervo ilustra as diversas identidades e culturas presentes entre os povos negros da Amazônia e aprofunda a importância social das religiões de matriz africana na construção do Brasil. Resgata, ainda, expressões de remanescentes quilombolas, afroindígenas, barbadianos e haitianos do Norte.

O povo negro é parte fundamental na história da Amazônia. Remonta a 1750 com a chegada de escravos vindos de Vila Bela da Santíssima Trindade (MT) em decorrência do ouro e da construção do “Forte Príncipe da Beira”. Outras migrações negras, principalmente do Pará, Maranhão e Ceará chegaram à região a partir de 1870, para extração da borracha, minérios e metais preciosos no “Ciclo do Ouro” e “Ciclo da Borracha”. Entre 1907 e 1912, trabalhadores advindos do Caribe (os barbadianos) contribuíram com a construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré.

Heranças

Os descendentes carregam nos traços as heranças socioculturais de uma parcela importante da população brasileira, pouco reconhecida dentro do discurso histórico oficial. Ao estabelecer contato com essas comunidades, assim como os terreiros e festejos religiosos daqueles lugares, Marcela identificou o próprio reconhecimento como mulher negra. Naquele lugar por vezes esquecido, reaprendeu a amar a si mesma.

Nesta foto “Madona Negra”, Marcela Bonfim registra descendentes de imigrantes da Guiana Francesa. À esquerda, o personagem “Chico Remeiro”
Foto: Marcela Bonfim

Rondônia surgiu na vida da fotógrafa, natural de Jaú (SP), em 2010, quanto ela migrou para assumir uma vaga de trabalho, após tentativas frustradas no mercado paulista. Economista graduada pela PUC-SP, a hoje militante pela causa das populações negras e povos tradicionais era outra pessoa até os 25 anos. “Sempre ia para a última fase, aquela da entrevista. Quando me viam, era sempre aquela reação de surpresa. Escolhi migrar para manter vivos meus anseios”.

À época, ela se considerava uma negra embranquecida, acreditava no discurso da meritocracia. Afirma ter mantido sérias ilusões sobre a própria identidade. Morando em outro ambiente, sem conhecer praticamente ninguém, passou a perceber a existência dessas comunidades quando gradativamente era questionada se sua origem estava ligada a elas. Para quem nutria ilusões sobre a própria aparência, aquele contato íntimo sinalizava na ressignificação da negritude.

Identificação própria

“A cidade me contatou por meio de questionamentos. Perguntavam-me se eu era barbadiana. Notei a existência de famílias tradicionais negras. Foi a primeira vez que vi algo assim e isso me levou a buscar mais. Ao adentrar a história do Estado, descobri outros fluxos migratórios de maranhenses, paraenses e cearenses. No meio dessa busca, veio a câmera fotográfica”, detalha.

As fotos foram feitas a partir de 2013, quando passou a frequentar essas populações. Ao visitar um quilombo pela primeira vez, não conteve a angústia ao lembrar dos livros de história da escola. Neles, a imagem no negro chicoteado era bem maior que o espaço destinado a falar sobre Zumbi dos Palmares.

Toda sensibilidade de Marcela Bonfim traduzida nesta imagem de Luzia Maloney. A descendente de barbadianos foi fotografada em Porto Velho, Rondônia
Foto: Marcela Bonfim

Diante daquele cenário, notou que tais personagens nem sequer eram marginalizados. Na verdade, nem existiam para o discurso dominante. Ao caminhar pelas zonas rurais, notou a diferença entre a cor do trabalhador e a do proprietário da terra. Empunhar a câmera tornou-se resistência, uma briga tanto para ela como para aquelas comunidades existirem. “O extermínio negro é grande e muito sério. O ‘Amazônia Negra’ é um projeto de militância”, pondera.

Durante a visita ao acervo, logo na entrada, o visitante encontrará um altar trazendo alguns dos objetos de variadas religiões, encaminhando-o à primeira parte da exposição. As imagens seguintes revelam variadas expressões de fé impressas nos detalhes de mãos, pés e semblantes de um povo que mantém fortemente as tradições e sincretismos. No Vale do Guaporé, acontece a Festa do Divino, importante peregrinação Católica no Norte.

Costumes

Elementos como espadas-de-são-jorge e sal grosso também compõem a expografia, no intuito de apresentar ao público um pouco dos costumes presentes no cotidiano dos povos fotografados. Trata de um mergulho na subjetividade destes brasileiros, nas histórias de vida e necessidade por dias melhores. “Nossa origem é da mistura, do negro e do índio que nunca se fala. A antropologia brasileira é fugidia quanto ao assunto”, detalha a paulista.

“Andamos nessa sociedade invisível, ela foi moldada pra isso. Ela enxerga a cor, mas não nos vê. Somos um bando invisível no meio de tanta cor, e como lidar com isso? A exposição vem tirar da invisibilidade uma população que está ali há muito tempo, existia e nem sequer era citada na história oficial brasileira. Mas ela também contribui com outras populações brasileiras esquecidas”, arremata.

Em “(Re)conhecendo a Amazônia Negra”, cada imagem, garante Marcela Bonfim, representa uma espécie de cidade. Reafirma a urgência do brasileiro em adentrar e reconhecer as suas origens. Cada retrato, para a autora, representa a finalidade de um autorretrato. Marcela destaca a importância de dividir essas narrativas para um público maior. São criaturas negligenciadas que estão por aí. Sobrevivem sem o reconhecimento suficiente da própria imagem.

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