Referência do pensamento feminista decolonial, ativista e filósofa argentina María Lugones morre aos 76 anos

FONTEPor Leda Antunes, do O Globo
A filósofa e ativista feminista María Lugones (Foto:  Daily Nous/Reprodução)

Morreu nesta terça-feira (14) a filósofa, professora e ativista feminista argentina María Lugones, aos 76 anos, devido a uma parada cardíaca. De acordo com familiares, ela estava internada por causa de uma pneumonia e tinha câncer de pulmão. A informação sobre a morte da intelectual foi publicada pelo filósofo Nelson Maldonado-Torres em sua conta no Facebook e posteriormente confirmada ao GLOBO pela Binghamton University, do estado de Nova York, onde Lugones atuava como professora de Literatura Comparada e de Estudos Latino-americanos.

A sobrinha de Lugones, Gabriela Veronelli, informou que o corpo da filósofa será cremado e haverá um funeral em Binghamton-Endicott, NY, nesta sexta-feira (17), restrito a um número pequeno de convidados em função da pandemia de Covid-19. Outros serviços memoriais online ainda estão sendo planejados.

Lugones é uma das referências máximas do pensamento sobre a colonialidade do conceito de gênero e suas implicações. Seu interesse era o de teorizar sobre as várias formas de resistência contra múltiplas opressões. Ela foi reconhecida pelo seu trabalho na teoria feminista, na filosofia social e política e na filosofia latino-americana.

— Minha família e eu nos sentimos profundamente tocados por todas as pessoas e grupos e seus tributos, expressando admiração e gratidão pela luta, pelas ideias e pelas contribuições de Maria para a justiça social — disse Veronelli, em troca de e-mails com a reportagem.

Natural de Buenos Aires, Argentina, Lugones mudou-se para os Estados Unidos nos anos 1960, onde completou a graduação na Universidade da Califórnia, em Los Angeles, e o mestrado e doutorado em filosofia na Universidade de Wisconsin. Em 1993, passou a dar aulas na Binghamton University.

— Como ativista e professora, Lugones seguia a máxima de ‘não pensar o que não posso praticar’ — explicou o professor Joshua Price, chefe do departamento de sociologia na Universidade de Binghamton e amigo da ativista.

Neste ano, Lugones foi contemplada pelo “Frantz Fanon Prize”, da Associação Filosófica do Caribe, que premia filósofos caribenhos reconhecidos por sua contribuição intelectual ao longo da vida. Ela foi reconhecida por suas contribuições inovadoras na teoria e filosofia decolonial feminista, filosofia e teoria indígena, estudos críticos de gênero, raça e sexualidade, filosofia latino-americana e teoria de sistemas mundiais atestada nos muitos artigos, simpósios, capítulos de dissertação e edições de periódicos sobre seu trabalho de liderança no que ficou conhecido como Teoria do Sul Global. Em 2016, foi nomeada “Distinguished Woman Philosopher” pela Society for Women in Philosophy.

Obra reconhecida mundialmente

Além das inúmeras publicações acadêmicas, Lugones é autora do livro “Pilgrimages/Peregrinajes” (2003, ainda sem tradução para português), em que fala sobre a sua vivência como mulher latina vivendo nos Estados Unidos. Ativista contra a opressão do povo latino pela cultura americana dominante, ela também foi acadêmica participando dos privilégios dessa cultura. Lésbica, experimentou homofobia no mundo norte-americano e latino. Uma mulher que se moveu inquieta no mundo do patriarcado. Lugones escreve sobre subjetividades múltiplas e conflitantes que moldam seu senso de si, resistindo à demanda por um eu unificado à luz de suas ambiguidades necessárias.

O livro lançou as bases de seu reconhecimento global como filósofa feminista, concentrando-se na dinâmica complexa de múltiplas opressões e na libertação de mulheres de cor nos EUA. A obra inclui o agora clássico ensaio “Playful World Traveling and Loving Perception”, que por si só já foi citado mais de 1.500 vezes e traduzido para francês, português, espanhol e mandarim.

Uma ilustração vívida do impacto do seu pensamento ao redor do mundo é o fato de que o trabalho de Lugones foi citado mais de 7 mil vezes nacional e internacionalmente, disse Price.

— Lugones foi uma professora e mentora amada e uma presença calorosa em nosso departamento. Nos seus 25 anos em Binghamton, ela formou ao menos 11 alunos de doutorado e foi capaz de garantir espaços para eles em universidades prestigiadas — afirmou.

A filósofa também é coautora da publicação “Género y Descolonialidade”, com o artigo “Colonialidad y género: hacia un feminismo descolonial”, um dos seus trabalhos mais conhecidos, em que investiga a interseção de raça, classe, gênero e sexualidade para entender a indiferença dos homens em relação às violências que sistematicamente infringem contra as mulheres não brancas. Que, para ela, são mulheres “vítimas da colonialidade do poder, e inseparavelmente, da colonialidade de gênero.”

Outro trabalho de destaque da autora é o artigo “Heterosexualidad y el Sistema/de Género Moderno Colonial”, publicado en 2007. Ela também foi uma das fundadoras da Escola Popular Norteña, na cidade de Valdes, Novo México.

Em sua publicação sobre a morte de Lugones, o filósofo Maldonado-Torres, cita o parágrafo de abertura do rascunho mais recente da introdução de um livro sobre feminismo decolonial que eles estavam editando juntos, ao lado da também filósofa Yuderkys Espinosa. Maldonado-Torres diz que o texto tinha sido escrito na segunda-feira, por ele e Yuderkys, e que eles esperavam aprová-lo com Lugones na terça, quando souberam do seu falecimento.

No texto, ele afirma que “María Lugones desempenhou um papel fundamental na formação do movimento feminista decolonial, tanto através da sua combinação criativa das teorias queer e das mulheres de cor do terceiro mundo com o trabalho de uma série de estudiosos e ativistas latino-americanos e caribenhos cujo trabalho explorou as múltiplas dimensões da colonialidade e decolonialidade, quanto da criação de espaços transdisciplinares nos Estados Unidos e na América Latina.”

“Que contribuição maciça ao mundo das ideias, à pedagogia, à irmandade radical e à camaradagem na luta contra a colonialidade em todas as suas dimensões e a colonialidade de gênero, mais especificamente. Seu trabalho continuará inspirando gerações e mantendo viva a chama da luta sustentada contra a colonização e a colonialidade. Ela nos deixou uma grande variedade de ferramentas para superar a arrogância epistêmica e nos encontrarmos em coalizões radicais. Perdemos uma verdadeira gigante, incrivelmente brilhante, humilde e amorosa, que sempre aspirou construir comunidade e se mover com os outros no caminho de criar mudanças reais e substanciais. Que exemplo você nos deixou, querida professora, irmã, camarada e amiga!”, escreveu o filósofo.

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