Reflexões sobre interseccionalidade de gênero, raça e classe nas políticas públicas em Salvador

FONTEEnviado para o Portal Geledés, por Karine de Souza Oliveira Santana
VLT – Foto: Site “Mobilidade Urbana Salvador”

14 de Maio

No dia 14 de maio, eu saí por aí
Não tinha trabalho, nem casa, nem pra onde ir
Levando a senzala na alma, eu subi a favela
Pensando em um dia descer, mas eu nunca desci

Zanzei zonzo em todas as zonas da grande agonia
Um dia com fome, no outro sem o que comer
Sem nome, sem identidade, sem fotografia
O mundo me olhava, mas ninguém queria me ver

No dia 14 de maio, ninguém me deu bola
Eu tive que ser bom de bola pra sobreviver
Nenhuma lição, não havia lugar na escola
Pensaram que poderiam me fazer perder

Mas minha alma resiste, meu corpo é de luta
Eu sei o que é bom, e o que é bom também deve ser meu
A coisa mais certa tem que ser a coisa mais justa
Eu sou o que sou, pois agora eu sei quem sou eu

Será que deu pra entender a mensagem?
Se ligue no Ilê Aiyê
Se ligue no Ilê Aiyê
Agora que você me vê

Repare como é belo
Êh, nosso povo lindo
Repare que é o maior prazer
Bom pra mim, bom pra você
Estou de olho aberto
Olha moço, fique esperto
Que eu não sou menino

Lazzo Matumbi e Jorge Portugal

 

A letra deste poema, que foi lindamente musicado, reflete o projeto político adotado no Brasil. O país decidiu por uma política genocida que incide diretamente sobre a população negra, como uma estratégia perversa com novas formas de açoites instituídas. A ausência da adoção de políticas públicas que garantissem a inclusão e proteção social nos mostra que cancelar a população negra é uma prática antiga, que não ocorre agora por meio de menos likes ou seguidores nas redes, os nomes das práticas mudam, mas a base estruturante é a mesma. E se for mulher, então…São esses os corpos tratados sem respeito, violados em seus direitos, em suas memórias e em seus feitos. Marielle, presente!

O racismo está posto, e segue evidenciando a sua plasticidade em todos âmbitos, desde as ações individuais,  se capilariza nas instituições e segue  para a manifestação na estrutura política e econômica, como bem analisa o Sílvio Almeida (2018). Quando a gente avalia esta perspectiva também presente nas discussões e ensinamentos de Luíza Bairros e Lélia González entendemos a indissobialibilidade de raça e gênero e classe para compreendermos a magnitude dos fenômenos sociais que recaem sobre os diferentes grupos populacionais e incidem diretamente sobre a sua condição de vida, adoecimento e morte. Assim, sistematizada pela Kimberlé Creskhaw (2004) e discutido por Carla Akotirene (2018), a interseccionalidade orienta as nossas análises e percepções, e nos faz atentar que raça indica classe, classe indica raça e ambas as categorizações estão atravessadas pela cisgeneridade.

Para pensar a elaboração e implementação de políticas públicas é importante considerar quem são os agentes envolvidos nas elaborações e para qual a população as políticas tem sido pensadas, compreendo assim, os efeitos da sua experiência interseccional. A partir destas respostas a gente entende o nível de implantação e implementação destas políticas e consegue entender a intenção de manutenção de uma conjuntura que sustenta privilégios para poucos e vulnerabiliza tantos outros. E aí temos um aspecto importante, quem são esses outros? 

No Brasil temos 55% composta pela população negra. Então, se o Estado adota uma postura negligente é essa população que fica desprovida. Não à toa é sobre essa população que recai diretamente os efeitos das políticas de austeridade. O congelamento no investimento na área da saúde, por exemplo, recai diretamente sobre esta população considerando o fato de além se ser a maioria da população corresponde a 80% da população usuária do Sistema único de Saúde (IBGE, 2010).

Quando falamos de Salvador, a cidade mais negra fora de África, tem- se 80% da sua população de cidadãos negros. Pensar políticas públicas é pensar a condição de vida e saúde para população negra, é pensar a condição das mulheres. 

Os efeitos da COVID-19 evidenciam que é a população negra que mais morre, por que? Porque não dispõe de uma condição de vida que lhe permita recuperação, ao contrário, é uma condição que lhe fragiliza em todos os sentidos, na sua condição de moradia, alimentação, transporte, educação e emprego. São corpos cercados em uma arena de subjugação de seus direitos, sem trégua. João Pedro estava cumprindo o isolamento social, mas foi morto pela polícia dentro de casa.

Caminhos e apontamentos da encruzilhada

O lugar da ocorrência também é o lugar de onde provém respostas. Em meio a encruzihada das opressões onde ocorre a coalisão das desigualdades, os desafios de enfrentamento, os instrumentos e as estratégias estão postos, no entanto, os gestores insistem no exercício de uma prática que se manifesta no fortalecimento do racismo institucional nas diversas áreas da gestão pública. 

Como exemplo, podemos citar, a atuação do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Gênero, Raça e Saúde (NEGRAS) que realizou uma pesquisa, por meio de entrevistas, para avaliar o conhecimento dos profissionais de saúde, gestores e usuários sobre a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra nos municípios de Salvador, Santo Antonio de Jesus e Cruz das Almas. Constatou- se no estudo o quanto a política é uma completa desconhecida dos gestores, profissionais de saúde e até mesmo pelos usuários, embora ela tenha completado 10 anos. Um processo em cadeia de fragilidade na formação, no planejamento em saúde, na garantia de direitos e de assistência., bem como do fortalecimento do controle social.

Os achados foram publicizados em todas as redes e em vários formatos e linguagens para que todos possam acessar e se informar, constituindo assim, uma fonte para que os Gestores e profissionais possam realizar uma prática de cuidado assertiva e os usuários possam defender seus direitos (NEGRAS, 2020). 

Em uma pesquisa realizada para compreender o padrão de distribuição e áreas de risco para ocorrência da Síndrome Congênita do Zika Vírus no Estado da Bahia considerando a abordagem interseccional das categorias de raça e classe se verificou que na cidade de Salvador, a maioria dos casos ocorreram na periferia. Embora as mulheres brancas estivessem nestas localidades, estas estavam nas áreas Índice de Condição de Vida (ICV) considerados alto e intermediário enquanto as mulheres negras estavam nas áreas com ICV baixo e muito baixo. Isso indica que estas detêm uma pior condição de moradia, educação, e acesso aos serviços de esgotamento sanitário e consequentemente de saúde. Evidenciando a importância da interseccionalidade para uma intervenção efetiva, haja visto que as condições que propiciam a atuação do agente transmissor e a ocorrência de novos casos persistem até os dias de hoje (SANTANA, 2020).

Continuando a abordagem sobre território, condição de vida e repercussão na saúde é importante salientar que o Plano de Desenvolvimento Urbano de Salvador tem sido extremamente questionado pelos movimentos sociais, por meio de manifesto contra um PDDU racista e higienista, por desconsiderar o Estatuto das Cidades, privilegiar a especulação imobiliária potencializando um processo de urbanização que favorece a segregação no território e cercear a participação efetiva da população. O caso da instituição do Veículo Leve sobre Trilhos (VLT) é um exemplo decorrente deste descaso. Uma proposta que deixa desassistida a população do subúrbio de Salvador que depende do serviço ferroviário, cuja valor vai ser dispendioso para a maioria das famílias. Assim, voltamos para as questões norteadoras que nos fazem compreender o processo de implantação e implementação de políticas públicas: a quem vai servir esse projeto? Quem pensa a mobilidade urbana de Salvador? E pensa para quem? 

O Estatuto da Igualdade Racial destinado para garantir a igualdade de oportunidades para a população negra e assegurar seus direitos é um documento importante para consultado pelos gestores para ordenar a elaboração das políticas públicas, como também, para a viabilizar a implementação assertiva daquelas que já existem (BRASIL, 2010).

Essas breves citações tentam reforçar a compreensão de que os elementos capazes de contribuir para a adoção de políticas públicas inclusivas estão disponíveis e muitos destes subsidiados pela atuação e ensinamentos dos movimentos sociais, sobretudo dos movimentos de mulheres negras, evidenciando a potência destes movimentos para as conquistas sociais. Exemplo disso, são as ações desenvolvidas pelos movimentos sociais nos bairros periféricos, a quantidade de arrecadação e de suporte que foi viabilizado, sobretudo no período da pandemia, tem muito a ensinar aos gestores sobre gestão inclusiva. Por isso, é importante falar de representatividade política e atuante, visando a ocupação dos espaços de poder de forma propositiva, de modo a garantir a pauta na agenda política e a escuta dos movimentos sociais. 

A marcha se faz urgente, e como disse Emicida:“é tudo pra ontem. E tudo, tudo, tudo, tudo que nós tem é nós.” Que possamos nos apropriar do nosso poder de construção e reconstrução para que juntos, juntas e juntes possamos construir a sociedade mais equânime que tantos almejamos. 

 

REFERÊNCIAS 

ALMEIDA, S.L. O que é Racismo estrutural? Belo Horizonte: Letramento, 2018.

AKOTIRENE, C.O que é interseccionalidade? Belo Horizonte:Letramento, 144p, 2018.

BRASIL. Estatuto da igualdade racial. – Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2010. 33 p.

CRENSHAW, K.W. A interseccionalidade na discriminação de raça e gênero. In: VV.AA. Cruzamento: raça e gênero. Brasília: Unifem, 2004.

IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil. Estudos e Pesquisas • Informação Demográfica e Socioeconômica. n.41, 2019. Disponível em: https:// biblioteca .ibge.gov.br /visualizacao/ livros /liv101681_informativo. pdf . Acessado   em 26 de fevereiro de 2021.

MANIFESTO CONTRA UM PDDU RACISTA E HIGIENISTA. Manifestado elaborado por movimentos sociais de Salvador, lido na 9ª audiência pública da elaboração do PDDU de Salvador, 2015. Disponível em https://passapalavra.info/2015/10/106246/. Acessado em 09 de julho de 2020.

NEGRAS. Núcleo de Estudos e Pesquisas em Gênero, Raça e Saúde. Atenção à saúde e a política nacional de saúde integral da população negra: pesquisa realizada em Salvador, Santo Antônio de Jesus e Cruz das Almas. E-book. 2020, 27p. Disponível em: https://www.negrassalvador.com.br/. Acessado em 26 de março de 2021.

SANTANA, K.S.O. et. al. Analysis of the socio-environmental vulnerability of black and Caucasian pregnant women in Salvador, Bahia, Brazil to the occurrence of microcephaly associated with the congenital syndrome of zika virus. Geospatial Health, v. 15, n. 1, 2020.

 

Karine de Souza Oliveira Santana, Sanitarista, Doutora em Medicina e Saúde, Docente na Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública, Pesquisadora no Núcleo de Estudos e Pesquisas em Raça, Gênero e Saúde (NEGRAS)

 

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 
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