A população brasileira é atualmente composta por aproximadamente 213,3 milhões de pessoas, segundo dados do IBGE em julho de 2021. De modo que dados extraídos do Observatório da Criança e do Adolescente, também no ano de 2021 ressaltam que deste número existem 9,1 milhões de crianças e adolescentes, na faixa etária de 0 a 14 anos de idade, vivendo em situação de extrema pobreza (renda per capita mensal inferior ou igual a um quarto de salário-mínimo) e 9,7 milhões em situação de pobreza (renda per capita mensal de mais de um quarto até meio salário-mínimo).
Estão em situação de rua no país, cerca de 70 mil crianças, deste número no recorte de raça, devido a grande problemática estrutural brasileira, a maioria delas é negra.
Em nossa legislação federal, os direitos das crianças e dos adolescentes estão descritos e resguardados, no artigo 227º da Carta Magna nacional a orientação é de que:
É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (BRASIL, 2010)
Sendo assim, nos questionamos de que modo poderão estas crianças que estão à margem da sociedade ter essa prioridade legal, em um país onde a injustiça social e a inequidade são parâmetros normalizados? Buscamos criticar a falta do engajamento e de políticas públicas e também o engajamento social que as abracem e as humanizem.
O feminismo e o antirracismo são ferramentas potentes para analisar essa problemática e trazer possibilidades no percurso da construção de uma sociedade que não exclua. Assim sendo, bell hooks em seu livro “O feminismo é para todo mundo”, pontua:
Dentro de culturas de dominação patriarcal capitalista de supremacia branca, crianças não têm direitos. O movimento feminista foi o primeiro movimento por justiça social nesta sociedade a chamar a atenção para o fato de que nossa cultura não ama crianças, continua a enxergar crianças como propriedade do pai e da mãe, para que façam com elas o que bem entenderem. (hooks, p. 110, 2020)
Desta perspectiva podemos levantar situações reais de nossa sociedade, primeiro, o contexto político social brasileiro, forjado e mantido dentro de uma lógica das estruturas patriarcais, colonialista e capitalista, não coloca a criança em prioridade, pois esta não é vista como um ser capacitado ao consumo e está à mercê de posturas patriarcais dentro e fora de seus lares.
Ficam subjugadas as violências que são criadas pelo capitalismo, sobretudo se esta está inserida nas camadas sociais menos favorecidas, ou seja, quando não integram famílias que estruturalmente se localizam em patamares de consumo e de poder. Muitas vezes fazem parte de um contexto familiar monoparental, onde seu sustento e criação se dão por uma mulher solo. Ficam ainda mais à margem quando estas fazem parte do grupo étnico que historicamente vem sendo propositalmente rejeitado á participação econômica, política e social, ou seja, quando são integrantes da comunidade negra.
A manutenção do liberalismo é imposta por uma pedagogia do individualismo, onde as pessoas cada vez mais se enclausuram em suas bolhas e perdem a visão holística de suas responsabilidades enquanto cidadãs e cidadãos. São bombardeadas de informações e formações que alienam o sentido de humanidade e o egoísmo fica a serviço dos propósitos acima citados, é um ciclo vicioso do poder.
Toda mudança social é concretizada também pela ação individual que reflete no macro, pois quando nos isentamos de nossas responsabilidades servimos de corpo massivo à opressão, de modo que temos nossos deveres tão bem registrados nos documentos legais quanto nossos direitos. Sendo assim, é correto normalizar
que enquanto algumas crianças fazem cinco refeições por dia, outras não tenham perspectiva de um pão para seu desjejum?
Sim é uma mazela da falta de redistribuição de renda, fruto das péssimas gestões governamentais. Mas é também responsabilidade social.
Você que está lendo este texto tem filhos, pensa em ter? Ou talvez seja de algum modo responsável por alguma ou algumas crianças? É certo que toda família que tenha crianças, penso eu, queira proporcionar o que for de teu alcance para
elas. Porém, quando ao passar por uma avenida, ou percorrer um trajeto de metrô, como se sente ao perceber que uma criança está em situação de risco e com seus direitos violados?
Perceba-se nesta situação, pensando que legalmente somos responsáveis enquanto cidadãos e cidadãs por estas crianças, o que você faz? Julga a família daquela criança? Se pergunta onde está a mãe? Julga a própria criança?
Já percebeu como estas crianças são até mesmo tratadas como se não compusessem o grupo da infância, ou seja, são tratadas como adultas?
Mas e os direitos delas, quem irá reivindicar?
Uma criança pode estar inserida em diversos contextos diferente e sofrer influências diversas, ainda assim ela será uma criança e deve ter seus direitos resguardados. Um conceito que bell hooks nos traz em seu livro “ Teoria Feminista da Margem ao Centro” é o de cuidado parental comunitário, o que lembra muito uma percepção não ocidental que relata Sobonfu Somé em seu livro “ O espírito da intimidade”, dizendo que em uma comunidade tradicional em Dagara, no continente africano, as crianças são responsabilidades de todas e todos, aprendendo a respeitar e conviver com todos e todas pessoas adultas e outras crianças como uma grande família e são estes responsáveis uns pelos outros.
As duas ressaltam a importância de se ter afeto e cuidado por crianças, independentemente desta ser de sua consanguinidade ou não. Percebam que este laço está relacionado a ideia da continuação da prole, que por sua vez está relacionada a um conceito capitalista de preservação das propriedades e acúmulos.
Colocamos a criança no centro de nossa discussão, contudo o que atravessa esse cuidado ou a falta dele está associado à manutenção de uma lógica social excludente. Quando olhamos para essa situação como uma problemática social e não individual, podemos perceber como o patriarcado, o colonialismo e o capitalismo criam emaranhados do micro para o macro social, perpetuando moléstias que não cessam ao longo dos anos, ainda que tenhamos leis e algumas políticas públicas que serviriam para minimizar estas dificuldades.
Para que uma criança tenha seus direitos assegurados, elas precisam que seus cuidadores e responsáveis também tenham dignidade social, ou seja, condições básicas de manutenção para si que não venha afetar no cuidado infantil, sobre isso ainda hooks diz: “Todos devem estar dispostos a aceitar que a parentalidade isolada exercida por mulheres ou homens não é a melhor forma de cuidar de crianças e de ser feliz como mãe ou pai.” (hooks, p.212, 2019)
A visão de responsabilização coletiva efetiva dos cuidados infantis, para estas duas teóricas, é algo positivo, pois gera na comunidade e também nas crianças um senso de cuidado e pertencimento mútuos, isso irá beneficiar a maneira como se dão os relacionamentos e a perspectiva de comunidade, para, além disso, a garantia dos direitos básicos das crianças seria assegurada coletivamente, não apenas aguardando milagrosas ações do Estado.
Podemos também trazer a problematização da sobrecarga imposta, sobretudo, às mulheres que são mães solo, pois estas são responsabilizadas, julgadas e sofrem danos em sua condição de indivíduo.
Outro caso em que este modelo de cuidado parental comunitário poderia influenciar beneficamente, seria às famílias que optam pelo isolamento parental, pois uma criança que cresce incluída de maneira integral na diversidade de suas comunidades, criarão laços amistosos com as diferenças, o que terá boas chances de fazê-la um adulto ou adulta mais afetuoso e compreensível com a diversidade social.
Obviamente para que essa proposta vingue, é necessária uma revolução no pensamento em relação ao cuidado infantil e de fato uma compreensão dos direitos e deveres sociais. A política feminista, sobretudo na ótica de bell hooks, visa que a transformação da dominação só é possível através do amor. “Escolher políticas feministas é, portanto, escolher amar” (bell hooks, p. 150, 2020)
Estamos prontos e prontas para disseminar o amor por essas crianças que foram colocadas à margem da sociedade?
REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.
HOOKS, Bell. O feminismo é para todos. Rio de janeiro, Rosa dos tempos, 2020.
HOOKS, Bell. Teoria Feminista: da margem ao centro. São Paulo: Perspectiva, 2019.
MIRANDA, Caroline Rodrigues e João Pedro S Cintra. Observatório da Criança e do Adolescente. São Paulo: Fundação Abrinq, 2021.
SOMÉ, Sobonfu. O espírito da intimidade: ensinamentos ancestrais africanos sobre maneiras de se relacionar. São Paulo: Editora Odysseus, 2007.
*Paula Anunciação- professora da rede estadual de São Paulo, mestra em Educação
Ações Afirmativas como ferramenta de reparação educacional
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