Duas profecias foram cumpridas em solo brasileiro neste sábado (28). Ambas diziam que, depois de todo o suplício dos tempos escravocratas, uma majestade angolana atravessaria o oceano atlântico e visitaria seu povo em diáspora. Em sua primeira visita ao Brasil, o rei Tchongolola Tchongonga Ekuikui 6º, o 37º da sua linhagem, as declarou realizadas. “Tudo o que fizemos foi recomendado por nossos ancestrais”, disse.
Antes da realização, até o menos crente dos seres humanos podia sentir que algo extraordinário estava para acontecer no quilombo Cafundó, a cerca de 12 km do centro de Salto de Pirapora, no interior paulista, onde moram 135 quilombolas.
Eram 12h01 no horário de Brasília e 16h01 em Luanda, capital da Angola. Estava nublado e fazia 30°C.
Um grupo de 21 pessoas, entre brasileiros e angolanos, estava posicionado no topo da única descida de estrada de terra, com formato de “S”, que dá acesso à comunidade quilombola. A líder do local, Cintia Delgado, 36, tocava um chocalho. Três homens, cada um com seu berimbau, a acompanhavam entoando hinos de capoeira. Eles iriam recepcionar o rei.
Dizem que um monarca nunca se atrasa. Dessa forma, todos os súditos estavam uma hora adiantados para a visita agendada para as 11h. “É que o pneu da comitiva furou e foi preciso solicitar outro carro”, informou Isidro Sanene, artista e amigo do rei de 39 anos, responsável pela visita.
Os cantos e as conversas ficaram mais altos. Foi quando alguém do grupo anunciou “o rei está aqui”, às 12h17. Houve silêncio. Nem os ventos que batiam nas árvores pareciam ousar fazer barulho. Os olhares ficaram concentrados nos três carros pretos que traziam o Ekuikui 6º e sua comitiva.,
A artesã Regina Pereira, 64, outra liderança do Cafundó, fez as honras de apresentar o lugar. Ele contemplou a paisagem e disse: “a área é muito linda”. E o cortejo continuou.
As outras pessoas na comunidade prepararam uma guarda com espadas de São Jorge para receber o rei no final da descida. Entre elas estavam representantes de outros três quilombos: Brotas, Caxambu e Pilar do Sul, além de membros da etnia indígena guarani. Esse momento foi sonhado por Vó Efigênia, antiga parteira do Cafundó. Ela comunicou a profecia para Regina antes de morrer.
Angola é uma república, e o poder político e de estado é do presidente. No entanto o rei dos ovimbundus, etnia predominante no país, detém importância cultural e espiritual principalmente na região do Bailundo, no planalto central angolano.
É, portanto, símbolo de uma identidade que sobreviveu ao período colonial português e também uma autoridade religiosa, pois é o encarregado de ministrar bênçãos e levar conforto ao seu povo quando necessário.
Uma dessas bênçãos foi dada na capela que representa a origem do quilombo Cafundó. Ekukui 6º, como guardião vivo dos costumes, reconheceu o esforço dos quilombolas pela preservação de três elementos. A língua cupópia, variação do idioma ubuntu —o segundo mais falado em Angola, superado apenas pelo português—, a religião e o culto aos ancestrais. A ideia de tradição para africanos é algo que se transforma com o tempo.
O mestre em antropologia pela Universidade Federal do Paraná e quilombola, José Barbosa, 40, deu exemplo de como uma cerimônia chamada alambamento, o casamento tradicional em Angola, se modificou com as décadas.
Antes, o contato entre as famílias para acertar o noivado era feito sem a presença dos pretendentes, que em algumas ocasiões já mantinham uma relação de amor em segredo. Hoje, com a popularização do namoro, os noivos fazem parte da negociação que envolve troca de presentes entre os clãs.
A paixão pelo futebol também pode ser considerada um elo entre o rei e o quilombo. “Eu sou Corinthians”, disse Ekuikui 6º em entrevista para a Folha, um dia antes da visita.
Quando Barbosa soube da informação sobre o time do rei, sorriu. O antropólogo nasceu no primeiro quilombo urbano a ser reconhecido no Brasil, o Brotas, localizado em Itatiba (a 81 km de São Paulo). Ele disse que a maioria em sua comunidade e no quilombo Cafundó também torce para o time da capital paulista. Moradores mais antigos do agrupamento em Salto de Pirapora, Jovenil Rosa, 66, e Marcos de Almeida, 63, confirmaram a informação.
“Tem são-paulinos e palmeirenses. Mas quem domina são os corintianos”, afirmou Jovenil. Tanto ele quanto Marcos trabalharam na limpeza do quilombo por pelo menos três horas antes da chegada do rei. Marcos espera que a visita não vire “apenas uma estratégia de marketing”, mas leve autoridades brasileiras a preservarem o território Cafundó.
Ekuikui 6º, por sua vez, falou para a juventude negra ter esperança e sonhar com o fim do racismo.
“Também peço que a lei puna de forma exemplar quem comete esses crimes”, declarou o rei durante a homenagem que recebeu na Assembleia Legislativa de São Paulo, na sexta-feira (27).
O rei dançou, cantou, comeu e caminhou com os quilombolas durante sua visita, na qual elogiou a gastronomia brasileira e quilombola. “Só não choro agora porque o protocolo não me permite chorar quando estou trajado com roupas cerimoniais”, disse o governante com a voz embargada durante sua fala.
Apesar do momento simbólico, nenhum integrante do alto escalão do governo federal esteve presente no evento. Ekuikui 6º tem agenda no Brasil até dia 15 de novembro. Ele deve visitar Bahia, Rio de Janeiro e Santa Catarina.
O projeto Quilombos do Brasil é uma parceria com a Fundação Ford