A relatora especial da ONU sobre racismo, Ashwini K.P., afirmou que está “extremamente preocupada” com o avanço de grupos neonazistas, especialmente na região de Santa Catarina. Numa coletiva de imprensa no Rio de Janeiro nesta sexta-feira (16), ela alertou que, de forma geral, as medidas adotadas pelo governo brasileiro para combater o racismo são insuficientes e os avanços são lentos.
Ela concluiu nesta semana uma missão ao país, onde examinou o progresso e os desafios para alcançar a igualdade racial e eliminar a discriminação racial, incluindo o racismo sistêmico.
“Estou chocada por saber da presença de grupos neonazistas disseminando discurso de ódio e crimes de ódio, e também preocupada com relatos de islamofobia direcionados a migrantes, incluindo pessoas refugiadas e solicitantes de asilo, particularmente em Santa Catarina”, afirmou.
Segundo ela, esses grupos extremistas representam uma “ameaça” ao tecido social e “alimentam” o racismo e a ódio. A relatora afirmou que pediu ao governo federal que intensifique o combate a essas ideologias e alertou para a falta de dados desagregados para saber a dimensão do fenômeno. Para a relatora, porém, as leis em Santa Catarina ainda são falhas no sentido de combater essas expressões de racismo.
Um dos maiores problemas, segundo ela, é a baixa taxa de processos judiciais e condenações. Para a relatora, isso abre uma cultura de impunidade. “O racismo sistêmico está profundamente enraizado”, disse a relatora.
Ela também pede que o governo e as autoridades atuem para garantir que, para as eleições municipais, haja uma proteção suficiente para candidatas e candidatos que representam minorias.
O relatório completo de sua missão será apresentado aos demais governos no Conselho de Direitos Humanos da ONU em julho de 2025. Mas, ao concluir a viagem, ela apresentou os resultados preliminares.
Combate ao racismo ainda insuficiente
De acordo com ela, apesar de o governo brasileiro reconhecer os problemas do racismo e sua existência, “o ritmo das reformas não atende a urgência” da situação. Para ela, os grupos afetados pelo racismo “esperaram muito tempo” e é o momento é o de pensar numa justiça reparatória.
Sua constatação é que o Brasil precisa “desmantelar o racismo sistêmico persistente”, solicitando ações “ousadas e transformadoras” para enfrentar a questão.
“Pessoas afrodescendentes, povos indígenas, comunidades quilombolas, pessoas romani e outros grupos étnicos e raciais marginalizados no Brasil continuam vivenciando manifestações multifacetadas, profundamente interconectadas e difundidas de racismo sistêmico, como legados do colonialismo e escravização”, disse.
Para ela, o racismo sistêmico tem “perdurado desde a formação do Estado brasileiro, apesar dos esforços contínuos e corajosos de incidência de grupos étnicos e raciais marginalizados”.
Segundo ela, apesar dos esforços do governo, “as vidas das pessoas afrodescendentes, indígenas, quilombolas e romanis são frequentemente marcadas, em muitos casos de forma irreparável, pela violência racializada endêmica e pela exclusão”, disse a especialista. “Isso toma várias formas, inclusive incessantes violações de direitos dos povos indígenas e quilombolas à terra e ao território, profunda exclusão social, econômica, cultural e política, racismo ambiental, encarceramento em massa em condições desumanas e a brutalidade policial racializada”, disse Ashwini K.P.
“A gravidade da situação demanda urgência máxima. Ações ousadas e transformadoras para desmantelar o racismo sistêmico não podem esperar”, disse ela.
A especialista observou que o ritmo das mudanças não corresponde à urgência da situação dos grupos raciais e étnicos marginalizados no Brasil. Ela apontou lacunas significativas na implementação e alcance das leis e políticas, e disse que o progresso em questões chave de justiça racial tem sido lento.
“Pessoas de grupos raciais e étnicos marginalizados já esperaram tempo demais por justiça e igualdade”, disse ela. “Vidas dependem de ações mais ousadas e imediatas”.
Ela fez um apelo para que o governo “reconheça, enfrente e repare” as causas, fatores históricos e desequilíbrios geográficos no combate ao racismo. Ela também insistiu que o Brasil dedicasse significativamente mais recursos para esforços de combate à discriminação racial, para acelerar o ritmo de mudança.
A relatora também criticou o uso endêmico da força por parte da polícia e forças armadas em operações em favelas. Para ela, há uma “normalização de atrocidades” e pede ação para lidar com a “brutalidade das polícias”. Ela sugere o uso de câmeras por parte dos policiais.
Em suas conclusões preliminares, ela denuncia a prisão em massa, especialmente de afrobrasileiro.
A intolerância religiosa também foi destacada pela relatora, que apontou para os ataques contra terreiros e centros comunitários.
Indígenas: centenas de anos para completar demarcação
Outra crítica da relatora se refere à situação dos indígenas. Segundo ela, ainda que o processo de demarcação tenha recomeçado com o governo Lula, ele é “lenta”. “No atual ritmo, seriam necessários séculos para completar a demarcação”, afirmou.
A representante também denunciou a tramitação do projeto de lei sobre o marco temporal e pediu que o governo Lula a rejeite.
Ela ainda se disse “chocada” em ouvir o grau de violência contra ativistas de direitos humanos, em especial mulheres negras e indígenas.
Relatora cobra Lula por taxa de feminicídio
A relatora também criticou a falta de ações mais enfáticas do governo Lula para garantir a proteção de mulheres, em especial diante das taxas elevadas de feminicídios.
Para ela, existe um “nível chocante de feminicídio no Brasil”. De acordo com uma pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública entre 2015 e 2023, 10.600 mulheres foram vítimas, incluindo aquelas que foram mortas no contexto de violência doméstica.
“Vários relatos que recebi durante minha visita indicaram que as mulheres afrodescendentes compõem a maioria dos casos de feminicídio, sendo que aquelas que fazem parte da comunidade LGBTQIA+, incluindo mulheres lésbicas e transgênero, muitas vezes são particularmente vulneráveis”, disse.
“O feminicídio entre mulheres brancas está diminuindo, enquanto o feminicídio entre mulheres afrodescendentes aumenta. Preocupa-me também os altos índices de feminicídio contra mulheres Indígenas e meninas adolescentes, particularmente em Mato Grosso do Sul, bem como os casos de feminicídio contra mulheres quilombolas”, afirmou.
Ela também destacou como a violência sexual e o estupro são formas “preocupantemente prevalentes de violência contra mulheres de grupos raciais e étnicos marginalizados no Brasil”.
“As informações que recebi sugerem que em 2023 registrou-se o maior número de estupros já registrados, com 83.988 casos em que mulheres afrodescendentes, especialmente meninas, foram significativamente afetadas de forma desproporcional, de acordo com esses dados”, disse.
“Observo que o presidente Lula afirmou que a violência contra a mulher é uma prioridade para seu governo e ouvi sobre as iniciativas que estão sendo tomadas pelo Ministério da Saúde e pelo Ministério da Mulher para enfrentar esses fenômenos perturbadores. Saliento, no entanto, a necessidade de uma ação mais urgente e eficaz contra todas as formas de violência contra as mulheres de grupos raciais e étnicos marginalizados”, cobrou.
“Também peço medidas específicas para garantir que as disposições do código penal e da Lei Maria da Penha sejam aplicadas de forma que as formas de violência contra mulheres de grupos raciais e étnicos marginalizados sejam punidas e remediadas, para enfrentar a aparente impunidade por tais crimes”, completou.