Repensando a Interseccionalidade

Esse breve texto é organizado a partir do pensamento de três intelectuais negras que são fundamentais para a construção do meu conhecimento: Patricia Hill Collins, Sueli Carneiro e Luiza Bairros.

Por Winnie Bueno, do Medium 

 

Patricia Hill Collins (Foto: Evelson de Freitas/MEDIUM)

Patricia Hill Collins é a intelectual cujo o pensamento eu estudo com afinco já há três anos, sendo que sua principal obra foi objeto de estudo do meu mestrado. A partir do estudo da obra de Patricia Hill Collins minhas teorizações a respeito do feminismo se complexificaram e intensificaram. Os conceitos estabelecidos por essa autora me instigaram a tensionar ainda mais algumas questões que pareciam estanques na teoria feminista, aliás, parte significativa dos esforços em problematizar o conceito de interseccionalidade parte do pensamento de Collins, o qual ainda é meu alvo de estudo e sistematização.

Sueli Carneiro (Foto: Caroline Lima)

Sueli Carneiro é a mulher cujo o pensamento me resgatou para o feminismo. Quando eu conheci o feminismo, ainda no movimento estudantil, ele definitivamente não conversava comigo. Tudo que se dizia sobre feminismo, todas as leituras que eram feitas, se devam a partir de mulheres brancas da Europa e dos Estados Unidos. Era muita Simone de Beavouir para minha cabeça que não conseguia entender a dificuldade de mobilizar experiências locais para as acepções teóricas do feminismo. O texto Enegrecer o Feminismo: A Situação da Mulher Negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero me possibilitou entender o feminismo numa compreensão mais próxima de quem eu era e também me mostrou que meus incômodos não eram injustificados, ao contrário, meus incômodos com o feminismo branco da esquerda do movimento estudantil eram históricos.

Luiza Bairros (Foto: Elza Fiúza/Agência Brasil)

Luiza Bairros é aquela cuja a história e cuja a inserção política me inspirou e me inspira. Uma mulher negra do sul do Brasil, que saiu do Rio Grande do Sul para auxilar na construção coletiva de uma agenda política para o resgaste da humanidade de pessoas negras. A relevância de Luiza para as mulheres negras muitas vezes é ocultada pela maneira iconográfica que na contemporaneidade encaramos as figuras do feminismo negro. Luiza é lembrada muito mais por suas companheiras de ativismo do que por nós, que pouco lemos seus textos e que quase nada nos remetemos a seus escritos. Contudo, a forma com que Luiza se colocou enquanto uma figura política do movimento de mulheres negras me marcou profundamente. A trajetória e o ativismo intelectual de Luiza Bairros me é bastante caro e eu considero que são narrativas como a dela que permitem que mulheres como eu, negras, retintas, deslocadas da centralidade do eixo Rio — São Paulo, possam resistirem espaços institucionais marcados pelas dinâmicas do sistema de dominação que se sustenta ideologicamente em imagens de controle que são articuladas para naturalizar e justificar o complexo de violências e restrições de direitos que historicamente visam manter as mulheres negras em um status de subordinação.


Esse texto tem por objetivo promover um tipo de tensionamento a respeito do conceito de interseccionalidade, o qual é articulada aqui a partir de sua dimensão analítica, política e epistêmica. No que pese esse conceito ter sido inscrito no pensamento acadêmico pela jurista negra Kimberle Crenshaw, sendo um marco para identificar como a produção de normas informadas pela categoria gênero não necessariamente irão atingir o cômputo de mulheres , a prática interseccional é bastante anterior. Desde as resistências articuladas nas lutas abolicionistas e no processo de resistência as violências da escravização de pessoas negras ,mulheres negras tem centralizado como que as dinâmicas de raça, gênero e status de cidadania irão afetar a forma com que os sistemas de dominação se articulam para produzir violências e ideologias que são operadas para justificar o tratamento que mulheres negras recebem pelas instituições. A premissa acerca do conceito de interseccionalidade que apresento nesse texto compreende que esse conceito não é estanque, havendo uma certa inconsistência e ambiguidade que circundam o termo. Essas características não são vistas aqui como marcos negativos a respeito do conceito, ao contrário, considero que o conceito de interseccionalidade está alicerçado em uma construção emergente, que tensiona os limites e as possibilidades do mesmo, fazendo com que este termo seja extremamente vivo e pulsante, da mesma forma com que as práticas interseccionais também o são.

Segundo Patricia Hill Collins é possível compreender a interseccionalidade enquanto uma marco teórico crítico, enquanto uma ferramenta analítica para analisar identidades, enquanto contribuição teórica e enquanto paradigma de conhecimento. Também podemos compreender a interseccionalidade enquanto perspectiva ,enquanto conceito e enquanto método. Ou seja, há inúmeras construções a respeito de interseccionalidade, e reduzi-la a ideia de uma vertente feminista ou a partir de uma noção que compreende a interseccionalidade como uma forma de identificar como as opressões se aprofundam em determinadas experiências é reduzir o potencial político e crítico que a interseccionalidade apresenta. Aliás, ao controlar o processo de conceituação da interseccionalidade e entregar esse conceito a um nome, a academia controla também a forma com que intelectuais ativistas negras podem ou não inscrever suas narrativas no cânone acadêmico.

A perspectiva que adoto aqui para falar de interseccionalidade compreende a mesma enquanto um conjunto de ideias e práticas que sustentam que gênero, raça, classe, sexualidade, idade, etnia, status de cidadania e outros marcadores não podem ser compreendidos de forma isolada, sendo que estes articulam dinâmicas de poder que produzem realidades materiais desiguais e experiências sociais distintas coletiva e individualmente. Nesse sentido, o pensamento de mulheres negras irá promover uma revolução paradigmática sobre a forma com que pensamos sobre relações de poder, especialmente no que diz respeito as injustiças sociais que são articuladas a partir dessas relações. Aliás, os contributos intelectuais e ativistas de mulheres negras nas últimas duas décadas foram fundamentais para visibilizar a dimensão global do racismo, algo que Luiza Bairros aponta no ensaio que abre o Dossiê sobre a Conferência de Durban publicado na revista Estudos Feministas em 2002.Para Luiza, o racismo é uma construção histórica que vem influenciando o modo como a riqueza e o poder distribuem-se, tanto no interior das sociedades como entre as nações.

Importa dizer que a emergência da interseccionalidade no cânone acadêmico significou muitas vezes um esvaziamento do sentido político desse termo. Esvaziamento este que muitas vezes significou uma série de eventos, estratégias e práticas que eram nomeadas como interseccionais mas que apagavam e invisibilizam o protagonismo de mulheres negras . Não é por acaso que é bastante usual encontrarmos feminismos interseccionais que reverberam apenas o pensamento de mulheres não negras e/ou que citam mulheres negras apenas como experiências vividas de dor e opressão que se vocalizam em discursos que aparentemente apresentam uma certa empatia, mas que em última análise promovem o ocultamento dessas mulheres enquanto produtoras de conhecimentos e saberes. Um feminismo interseccional em que mulheres negras são lembradas apenas para mencionar números de violências, o que também constitui-se enquanto uma prática racista e sexista que mobiliza-se a partir da nomeação da experiência do outro por aqueles e aquelas que historicamente detém o poder de nomear :pessoas brancas.

Ao reposicionar as relações de poder e resistência a partir da interseccionalidade enquanto ferramenta analítica, o pensamento político de mulheres negras historicamente irá levar em conta a agência individual e coletiva das mulheres negras. Os debates epistemológicos continuados a respeito da dinâmica de poder que indica o que conta como conhecimento também é um marco importante nesse sentido. É por isso que iremos rearticular, por exemplo, a forma com que mulheres negras empregadas domésticas são lidas. Essas mulheres produzem um conhecimento ativo que possibilita que a cada nova geração a consciência a respeito da naturalização inscrita em imagens de controle que permeiam a mídia e colocam a mulher negra sempre no lugar marcado de uma Tia Anástica contemporânea é ideologicamente organizada para que mulheres negras permaneçam em trabalhos precários e longe da disputa do mercado de trabalho em que figuram homens e mulheres brancas medíocres que ocupam cargos de prestígio não pelo seu brilhantismo, mas pela forma com que os sistemas de dominação reservam posições de poder para manter a estrutura de dominação. Aqui apresenta-se uma relação dialética que conecta ativismo e opressão, onde, sobretudo, compreendemos como grupos com mais poder oprimem grupos com menos poder. É assim que conseguimos compreender como por exemplo mulheres brancas tão facilmente são capazes de questionar quando produzem-se eventos sobre justiça criminal onde apenas homens brancos são painelistas mas, essas mesmas mulheres, confortavelmente sentam-se em eventos que falam sobre decolonialidade com apenas outras mulheres brancas ocupando a mesa, estando as mulheres negras como notas de rodapé que aparecem de maneira muito tímida em suas falas. Dessa forma, conforme Sueli Carneiro “as vozes silenciadas e os corpos estigmatizados de mulheres vítimas de outras formas de opressão além do sexismo, continuaram no silêncio e na invisibilidade.”

Portanto, uma reivindicação da interseccionalidade que não apresente a forma histórica com que mulheres negras sempre localizaram suas experiências para demonstrar como que as dinâmicas sociais produzem opressões e violências que são articuladas a partir de sistemas interconectados que produzem uma matriz de dominação específica que é mobilizada para o controle de corpos negros, o que se está produzindo é uma outra lógica de opressão e silenciamento que podemos considerar enquanto opressão epistêmica. Em sua tese de doutoramento, Sueli Carneiro desdobra o conceito de epistemícidio, que emerge da articulação do dispositivo de racialidade ao biopoder. Segundo Sueli Carneiro o epistemicídio consiste nas estratégias de inferiorização intelectual do negro ou sua anulação enquanto sujeito de conhecimento, ou seja, formas de sequestro, rebaixamento ou assassinato da razão. Ao mesmo tempo, e por outro lado, o faz enquanto consolida a supremacia intelectual da racialidade branca. Sueli ainda destaca que o epistemicídio tem se constituído no instrumento operacional para a consolidação das hierarquias raciais por ele produzidas, e a partir desse diagnóstico é possível compreender como que o esvaziamento político e racial da categoria de interseccionalidade também corresponde a uma lógica que determina quem e como o conhecimento pode ser produzido e articulado.

Essas hierarquias raciais , no que diz respeito ao pensamento feminista, podem ser operadas não a partir de uma categorização direta, mas a partir de uma categorização indireta inscrita nos processos de universalização das experiências vividas de mulheres. Em Nossos feminismos revisitados, Luiza Bairros destaca como que as tentativas de universalização das experiências de mulheres, sobretudo no que diz respeito a sexualidade e a maternidade, acabaram por mobilizar uma aceitação acrítica a respeito dos sistemas de dominação de raça, gênero, classe e sexualidade. Nesse sentido, a autora destaca como que as teorias do ponto de vista, as quais estão imbricadas na interseccionalidade enquanto campo de conhecimento, foram fundamentais para que possamos compreender como que raça, gênero, classe, sexualidade se reconfiguram mutuamente. É importante destacar que, conforme Patricia Hill Collins, as opressões não são compreendidas meramente no pensamento, elas são sentidas no corpo de diversas maneiras. De maneiras que inclusive, muitas vezes, afastam meninas negras do pensamento feminista porque estas estão exaustas de serem silenciadas por um feminismo que lembra de mulheres negras apenas para se comover com histórias de terror racial e de gênero que podem fazer com que essas mulheres brancas se sintam menos responsáveis pela sua posição no sistema de dominação. A comoção que se estabelece a partir de lágrimas e falas que reconhecem a dor de mulheres negras, muitas vezes, serve apenas para que mulheres brancas possam deitar suas cabeças tranquilas em seus travesseiros sem refletir onde que a sua posição de pessoa branca lhe mobiliza privilégios que produzem as violências com as quais elas se comovem nos relatos de mulheres negras.

O pensamento de mulheres negras é, portanto, o centro da interseccionalidade. São as contribuições teóricas e práticas dessas mulheres que são capazes de dar tônus a este conceito, que é frágil e inócuo se ausentes as perspectivas dessas mulheres. A interseccionalidade, para nós, não é uma mera categoria conceitual, é uma perspectiva histórica de luta,que nem sempre foi assim nomeada, de afeto e de encontros intergeracionais mobilizados pelo respeito, pelo reconhecimento e sobretudo pelo amor que construímos a partir de relações cunhadas nos espaços seguros mobilizados por mulheres negras. Enegrecer o feminismo não é um convite, também não é uma palavra de ordem vazia, Enegrecer o feminismo é uma mudança de paradigma que ainda está em curso, e que só é possível a partir do compartilhamento crítico de múltiplas perspectivas do pensamento de mulheres negras, as quais não devem ser cerceadas, controladas ou hegemonizadas por ninguém.


Reprodução Twitter

Winnie Bueno é Iyaloríxa, Mestranda em Direito Público pela Unisinos/RS.

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