“Posso até cantar um samba e canto mesmo – mas quando eu quiser cantar, não porque querem que eu cante”, situa Leila Maria em sentença lapidar do depoimento para o jornalista e historiador Ricardo Santhiago, autor do ótimo livro Solistas Dissonantes – História (Oral) de Cantoras Negras. Lançado neste mês de outubro, como resultado de um curioso trabalho de pesquisa desenvolvido pelo autor entre 2006 e 2009 para um trabalho de pós-graduação da USP, o livro traz à tona – através de relatos orais de 13 cantoras negras brasileiras – mágoas, devoções e crenças de excelentes intérpretes que desafiaram lei extra-oficial do mercado fonográfico que confina solistas negras aos guetos do samba, do funk ou de qualquer outro ritmo enquadrado no rótulo “negro”. Poucas cantoras, como a divina Elizeth Cardoso (1920 – 1990), conseguiram construir carreira regular fora desse enquadramento pautado por um racismo disfarçado. Saudada como referência pioneira pela maioria das entrevistadas, Alaíde Costa foi outra solista que, em pleno reinado branco da Bossa Nova, se impôs e pagou alto preço por isso. “Quando eu comecei a cantar (…), havia uma certa discriminação em relação à minha postura musical. Todos diziam: ‘É… Ela canta bem, mas canta difícil e escolhe músicas difíceis’. Difícil foi lidar com isso. Difícil foi vencer essa barreira”, pondera Alaíde, no último dos 13 depoimentos reunidos no livro, encerrado com brilhante texto em que o autor analisa as histórias colhidas sob perspectiva acadêmica e ressalta que o piano é o símbolo do status quase sempre negado a essas cantoras idealistas que recusaram ficar na cozinha da música brasileira. Mulheres que não jogaram o jogo do masculino meio fonográfico!!
Prefaciado por Cida Moreira com texto sensível em que a cantora expressa admiração pelas colegas negras, o livro é interessante porque são profundos alguns balanços pessoais feitos pelas treze solistas dissonantes, nascidas num país mulato em que as maiores estrelas da música são estranhamente brancas até no Estado mais negro do Brasil (a Bahia festiva de Daniela Mercury, Ivete Sangalo e Claudia Leitte). Projetada em 1988 no espetáculo Emoções Baratas, dirigido por José Possi Neto em São Paulo (SP), Adyel Silva abre a mente e o coração para contar sua história com a convicção de que o Brasil é, sim, um país racista. “Não quero ser magoada. Não quero ser raivosa. Não quero ser revoltada. Não quero nada disso… Tenho que começar a criar mecanismos de defesa para não criar um câncer dentro de mim. Perder espaço para uma pessoa que tem mais qualidade que você é bacana. Mas perder para alguém que não tem essa qualidade -mas tem a pele aceita, a cor do olho aceita, o tipo de cabelo aceito – é ruim. É muito ruim”, relata Adyel, em tom de desabafo. Seu relato é forte!!
Na sequência, Leila Maria também destila mágoas justificadas pela falta de oportunidade, fruto do que ela entende como resistência velada por causa de seu orgulho negro. “… Tenho medo de que as pessoas não entendam o que estou dizendo e não apenas me tomem como preconceituosa, mas achem que estou usando isso como um recurso para justificar porque não acontecem mais coisas na minha carreira. Talvez enxerguem como um tipo de dor de cotovelo… Então, não dá. Não falo sobre isso com ninguém, porque as pessoas não assumem nem o preconceito geral – imagine, então, o especificamente aplicado dentro da área musical”, pondera Leila, decepcionada pelo fato de seu segundo álbum – Off Key (2004) – não a ter (e)levado a patamar mais alto.
Menos ressentida, Virgínia Rosa – que começou carreira como vocalista de Itamar Assumpção (1949 – 2003), compositor negro que nunca fez a música que esperavam dele – dá depoimento mais leve em que, sem negar o preconceito, exalta a força transformadora da raça negra. Já Misty – outra voz dissonante projetada no espetáculo Emoções Baratas – rememora sua trajetória obstinada com o sonho de ainda gravar seu primeiro CD, Bessie in Bossa, com abordagem particular do repertório da cantora norte-americana Bessie Smith (1894 – 1937), pioneira do blues. Sobrinha de Dolores Duran (1930 – 1954), Izzy Gordon exala orgulho negro, apreendido com o pai. “Na música, a negritude não é nada menos do que um dom”, resume, com a mesma positividade detectada nos depoimentos de Graça Cunha e Arícia Mess. Na sequência, Ivete Souza retoma o discurso mais engajado e calejado pelos preconceitos sofridos ao longo da carreira – “Sou muito cobrada por ser negra e não cantar música negra. Já ouvi gente dizendo que eu canto essas canções para fugir das minha raízes! Mas não tem nada a ver com isso… Tem a ver com a escolha que eu fiz, com o que aprendi…” – enquanto Eliana Pittman fica na superfície, optando por rememorar momentos áureos da carreira (nos anos 70) e a projeção recente no musical 7, da dupla Charles Möeller & Claudio Botelho. Já o relato desencanado de Zezé Motta – cantora e atriz desde a década de 70, mas hoje mais atriz do que cantora – tem seu ponto nervoso quando a artista lembra a pressão que sofreu da gravadora Warner Music para gravar sambas em seu segundo disco, Negritude (1979), já que o primeiro, Zezé Motta (1978), não obtivera o resultado comercial esperado diante da exposição de Zezé como atriz no filme Xica da Silva (1976). “Esperneei, mas no disco Negritude topei gravar alguns sambas. Mesmo assim, sempre rejeitei o rótulo de sambista – não porque tivesse algo contra o samba, mas porque sabia que a gravadora queria que eu gravasse samba por ser negra. Eu achava isso, vamos dizer, meio estranho. Parecia uma ditadura com o artista negro”, lembra Zezé, superior.
Com sua crença espiritualista, Rosa Maria Colyn dilui os ressentimentos causados pelo preconceito racial, sofrido pela cantora fora e dentro do meio musical. “Ao longo da minha vida, recebi muitos elogios. Dizem que sou uma cantora maravilhosa, mas as oportunidades que tive como cantora não refletem isso. Se a escolha era entre uma negra que cantava bem e uma branca que era bonita, mas não cantava nada, a preferência era dela”, remói Rosa Maria, hoje dividida entre as funções de cantora e atriz de novelas. Na sequência, Áurea Martins recorda o boicote que afirma ter sofrido pela diretoria da RCA de 1972 – quando gravou seu primeiro LP – e manifesta seu orgulho pelo CD Até Sangrar (2008) enquanto sonha com uma música brasileira sem guetos.”…Fiquei numa situação difícil. O branco não me aceita por ser negra e o negro não me aceita porque diz que canto coisas elitistas, que estou no meio dos brancos… Assim fiz meu mundo: o bloco do eu sozinho”, se situa Áurea, sem deixar de exaltar o pioneirismo da antecessora Alaíde Costa, que deixa a habitual discrição de lado para relatar detalhes da infância sofrida no derradeiro e emblemático depoimento deste livro que descortina os bastidores do velado preconceito racial que limita essas vozes dissonantes que – com doses maiores ou menores de felicidade e mágoa – ousam desafinar o coro dos contentes no mundo musical.