Resistir ao extermínio

Foto de 1943 mostra soldados alemães nazistas interrogando judeus após a Revolta do Gueto de Varsóvia - AFP

Os guetos concebidos pelo nazismo foram territórios dentro dos quais a anomia e a demolição de corpos foram a regra, e a regra, a anomalia

Por Roberto Bueno, do Brasil 247

Foto de 1943 mostra soldados alemães nazistas interrogando judeus após a Revolta do Gueto de Varsóvia – AFP

Há exatos 77 anos, no dia 19 de abril de 1943, foi empreendida ofensiva pelos oficiais nacional-socialistas contra o gueto de Varsóvia, espaço de confinamento da comunidade judia na capital polonesa. A política nacional-socialista era de reunir os judeus em guetos, e no caso de Varsóvia era crescente o número dos indivíduos que iam sendo aprisionados naquele minúsculo espaço urbano da cidade ocupada pelas forças armadas de Hitler.

Naquelas condições materiais as quais estavam expostos os indivíduos apenas uma única certeza estava em seu horizonte próximo, a morte. Tratava-se de um espaço de cultivo da destituição da dignidade humana, da cultura, mas também dos direitos, da personalidade, e após todos os vilipêndios, por fim, destruir os seus corpos já macerados, e assim entregá-los a alguma das múltiplas espécies de morte ali cultivadas. A comprovação objetiva desta política foi a redução de aproximados 400/500 mil habitantes para aproximados 100 mil na última etapa do gueto, o que traduz uma “eficiente” organização para o assassinato de ¾ de uma volumosa população e em período curto de tempo.

O espaço criado pelos alemães no gueto de Varsóvia era de anomia (jurídica) e amoralidade (eticidade) em estado bruto. Naquele espaço a luta pela vida já não era diária, mas um desafio a ser vencido a todo momento, fato recordado incessantemente pelas figuras desfalecidas às ruas, quando já não em estado de enrijecimento cadavérico, corpos vitimados por doenças várias e pela inclemente marcha do tempo que temperada pela quase absoluta desassistência, revelava-se associação funesta.

Situado em um setor de bairro pobre da capital polonesa, aquele pequeno espaço foi hermeticamente fechado com muros e toda a sorte de recursos militares para prevenir fugas, contando também com milícias judias desarmadas do lado de dentro que formavam uma primeira linha de contenção para desestimular tentativas de evasão. Era espaço urbano de pouco mais pouco menos de quatro quilômetros quadrados, nos quais paulatinamente foram aglomerados entre 400 e 500 mil pessoas a disputar os parcos recursos cuja entrada era admitida. Exceto pelas diferenças arquitetônicas no interior do espaço de confinamento, as condições para a existência humana no gueto de Varsóvia não eram visceralmente diferentes do que em outros espaços anômicos ferozmente criados pelo nazismo.

As duras restrições impostas à sobrevivência eram regra, e disto é prova a quantidade de alimentos que entravam no gueto de forma controlada e em quantidades absolutamente insuficientes em vista da massa ali residente. Obter a ração mínima de calorias diárias necessárias a um ser humano era algo extravagante naquele espaço infernal. Ali as restrições impostas não eram notavelmente inferiores às cenas descritas de Auschwitz, onde os ratos poderiam constituir-se em genuínas iguarias. No gueto de Varsóvia era comum a luta por encontrar espaços relativamente seguros nos esgotos para esconder-se das contínuas buscas das SS, sendo este mais um dos desafios diários a vencer na busca pela sobrevivência.

O grau de absoluta radicalização do mal e os recursos de perversidade aplicados pelo nazismo encontraram uma de suas manifestações na criação de conselhos de judeus, “técnica” nacional-socialista de mobilização judia também utilizada sob outras formas em campos de concentração, organizando-os para realizar tarefas operativas relativas a implementação do extermínio. A eles era atribuída tanto a responsabilidade de limpar e ordenar o gueto segundo os parâmetros impostos pelo regime, de exercer atividades de controle bem como de conduzir para o translado aos campos de extermínio os indivíduos previamente listados pela administração, sendo eventualmente compartilhada esta tarefa de seleção para o envio à morte certa. Deste modo foram deportados do gueto de Varsóvia para Treblinka aproximados 300 mil judeus.

Sob estas condições, quando era chegado o mês de abril de 1943, Heinrich Himmler ordenou a Jürgen Stroop que tudo fosse destruído, o que fatalmente implicaria na morte dos últimos milhares de indivíduos ali remanescentes. Sem embargo, como as ordens de transferência massivas emitidas pelo mesmo Himmler no mês de janeiro de 1943 já haviam despertado irresignação, a partir de então foi possível organizar grupos de resistência, de sorte que quando as tropas de Stroop entraram no gueto de Varsóvia no dia 19 de abril de 1943 depararam-se com inesperada resistência judia, fato inédito até então na Europa ocupada.

A tarefa de destruição fora encarregada para cumprimento em 3 dias, mas tardou improváveis 27 dias, prolongando-se até 16 de maio de 1943. Enquanto transcorria a luta o próprio inferno era o céu para aqueles que testemunhavam os cadáveres acumulando-se em série nas ruas. O enfrentamento transcorria sob agudas privações, sobretudo devido a destruição dos já escassos estoques de comida. O sobrevoo e final alvejamento do gueto com pesadas e fatais bombas antecipava a morte, ao passo em que suicidas e crianças já à beira da morte compunham a descrição de cenário que Dante hesitaria em escrever, pois mesmo a ficção deve respeitar certos limites para poder adentrar no campo do imaginário humano sem ferir o juízo de aderência ao real do leitor, razão pela qual em alguns destes espaços de anomia os próprios nazistas burlavam-se dos judeus de que acaso o improvável acontecesse e eles sobrevivessem, mesmo assim ninguém daria crédito às suas narrativas.

Os sobreviventes do levante do gueto de Varsóvia relatariam mais tarde o cheiro de cadáveres nas ruas, as bombas incendiárias, as mulheres com crianças nos braços saltando dos andares superiores de prédios em chamas bombardeados pela Luftwaffe. Somente muito tempo depois dos inicialmente 3 dias previstos – e após a data de 31 de abril com que deveriam presentear a Hitler em seu aniversário com o fim do gueto – é que, finalmente, em 8 de maio de 1943, os soldados alemães conseguiram vencer a heroica resistência judia, mas não sem contabilizar baixas jamais imaginadas naquelas circunstâncias. A resistência finalmente encontrou o seu derradeiro momento com o paradigmático incêndio da sinagoga do gueto, mas antes disto a luta foi prédio a prédio, porta a porta, corpo a corpo, até o último indivíduo.

A sangrenta derrota imposta aos judeus do gueto não foi surpresa, pois nunca estivera em perspectiva a consideração da vitória. Todos sabiam que não havia sequer chances ou, pelo menos, eram muito remotas, dada a diferença colossal entre os armamentos disponíveis para ambos os grupos, e se acaso alguma chance houvesse, dependeria da improvável interferência de algum fator externo. Sinteticamente, as partes enfrentadas eram a elite das SS bem armadas e alimentadas apoiadas pela Luftwaffe contra mal alimentados e muito mal armados resistentes. Sob tal cenário é preciso pensar o que levou aquele heroico grupo de homens à resistência, e a primeira pista que devemos levantar é que em nada se deveu a consideração do fator triunfo, mas sim foi centrado na afirmação da liberdade humana, em sua radicalidade, a saber, escolher a morte digna, lutando, antes de ser conduzidos pacífica e bovinamente ao abate.

O que estava em causa para todos os judeus naquele espaço de anomia jurídica e anomalia ética era afirmar a sua liberdade através da resistência, era escrever as páginas da história com os próprios punhos, ainda quando fora a sua derrota, mas em qualquer caso honradamente, lutando, antes que a fome e a peste os devorassem vivos, antes que fossem executados, ou enviados para a execução massiva a algum campo de concentração. Era uma resistência armada contra a certeza do massacre, uma luta em que a derrota era certa, mas também contra a ignominiosidade da morte. A opção pela dignidade era postergar o perecer, o que implicava afirmar a sua liberdade no ato da luta.

Os termos e condições da barbárie que animaram ao levante do gueto de Varsóvia não vieram a ser conhecidos em seus pormenores senão logo após o fim da guerra. Durante o Julgamento de Nuremberg vieram à pública as primeiras e chocantes imagens dos campos de concentração realizadas no momento da libertação, quando o mundo finalmente começou a ser informado dos (sórdidos) detalhes que os degenerados eram, e profundamente, os membros da elite nacional-socialista e seus postos de mando em diversas hierarquias, e nunca a libertadora arte dos judeus. Esta intensidade e densidade levaram a que, em verdade, Auschwitz e todos os demais campos, e também o gueto de Varsóvia, fossem libertados, mas que os indivíduos que por eles passaram jamais realmente pudessem sê-lo, pois profundas foram as marcas impressas nos que lá estiveram, e permaneceram imersas em suas subjetividades, a ferro e fogo inscritas para muito além da pele pelos executores do mundo anômico em que a única regra era a perversidade.

O horror praticado nos territórios de triunfo da anomia e superlativa perversidade ficou marcado na história mas não terminou de ser incorporado pela cultura das gerações subsequentes. O acúmulo de horrores não ficou suficiente e eficientemente marcado, a ponto de tornar-se capaz de interditar a eventual retomada daquele nível de barbárie em que o outro é mero espaço físico para a realização da crueldade em estado puro sob pretextos ideológicos vários, restando todavia para além da compreensão que decorridas tantas décadas ainda não tenha sido incorporado que o próprio perpetrador ao deteriorar a integridade do outro deteriora a sua humanidade. Nunca houve e nunca haverá um regime bárbaro sem que conte com grupos de perpetradores dispostos a seguir ordens. Os bárbaros necessitam de submissos e covardes cumpridores de ordens para que o horror seja transferido das profundezas obscuras de quem o pensou para a concretude dos corpos vitimados.

Os heroicos que promoveram o levante do gueto de Varsóvia contra o totalitarismo alemão legaram a compreensão de que mesmo quando a derrota é mais provável, a morte não é a pior senão a única forma decente e honorável de enfrentar-se com o inevitável. O levante do gueto de Varsóvia deu mostras de que há dias e tempos em que não há opções senão arriscar a vida para evitar a indecência; de que há dias e tempos em que a falta de coragem equivale não apenas ao perecimento senão muito mais, é o comprometimento da memória, manchada pelo legado da omissão associada a covardia encarnada na falta de decisão de empreender a luta pela manutenção do marco libertário que nos cabe transmitir à descendência. No gueto de Varsóvia não havia opção para além da morte certa e imediata ou a morte diferida por breves instantes até que a resistência fosse interditada ante a avassaladora superioridade bélica das forças armadas nazistas.

Sempre há razões e motivos últimos para que determinadas opções pessoais justifiquem certos atos reprováveis a posteriori, quando pedidos de desculpas e constrições de duvidosa sinceridade não são raros, mas então muitos já se foram. Nestes tempos graves também o gesto e o silêncio podem ser comprometedores. As escolhas, quaisquer que sejam, nunca são suficientemente dramáticas quando uma delas é a consecução da barbárie. Os heroicos do gueto de Varsóvia compreenderam que a resistência ao bárbaro é um direito enquanto legítima defesa, mas também um dever, posto que cada geração deve entregar liberdade aos seus descendentes tanto quanto higidez política.

A consolidação dos direitos humanos e efetivação da garantia à vida é algo que depende das intervenções de todos nas disputas ordinárias. Os guetos concebidos pelo nazismo foram territórios dentro dos quais a anomia e a demolição de corpos foram a regra, e a regra, a anomalia. O levante do gueto de Varsóvia explicitou que mesmo a mais dura das derrotas tem a força de que a omissão está destituída, a de penetrar nas mais gloriosas páginas da história como bela lição para a contenção do mal que a tantos pode vitimar.

 

*Roberto Bueno: Doutor em filosofia do direito e colunista do blog Cartas Proféticas

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