Resistir ao racismo é resistir à tripla morte: Marielle, presente

FONTEPor Allyne Andrade, Do Carta Capital
(Vladimir Platonow/Agencia Brasil)

Durante muito tempo, eu me neguei a falar publicamente ou dedicar parte dos meus estudos sobre a morte, sobre extermínio e o encarceramento da juventude negra. Preferia chorar meus mortos, meus medos somente entre os meus, velar meus corpos, rememorar histórias e me manifestar publicamente nas passeatas, resignada e triste.

Em luto, porém, nutrindo esperança por saber que mortes de corpos negros ainda nos mobilizavam, com um fio de esperança por encontrar mais alguém que se importasse, por ver outros dos meus vivos e com voz.

Entendam, não era falta de consciência dos dados de desigualdade, de encarceramento e homicídio, feminicídio que, infelizmente, também demarcam a experiência negra no Brasil.

Essa contagem diária de ausentes, entretanto e sobretudo, o exercício de teorizar sobre essa realidade amarga me tiravam as esperanças de um futuro possível. Preferia falar sobre as possibilidades de educação, trabalho, emprego, vida e suas potencialidades.

Preferia falar sobre nossa resistência e cantar nossos cantos de resistências.

Não é trivial explicar para quem nos mata o porquê e como morremos, porque choramos e nos indignamos, como me disse Felipe Freitas [1]. É a esse esforço cognitivo que somos submetidos quando somos chamados a público a explicar e aprofundar a realidade do nosso extermínio exposta em dados: recontar nossos mortos e transformar a dor em palavra capaz de apreensão pelo outro, geralmente, insensível a nossa dor.

A elevação de consciência é um caminho sem volta, entretanto. Não era mais possível aprofundar o debate dos significados da experiência da negritude no Brasil sem tratar também dessa dimensão das mais duras: o nosso extermínio.

Ato Marielle em 18/03/18 • São Paulo, SP. (Foto: Eduardo Figueiredo / Mídia NINJA)

Quando dizemos do genocídio do povo negro, falamos de uma tripla morte. Em primeiro lugar, falamos da nossa morte física resultante da violência obstétrica, da negligência do acesso à saúde e à justiça, dos altos índices de mortalidade materna por causas evitáveis, da violência contra a mulher, do homicídio, da tortura etc.

Falamos também da violência simbólica na nossa invisibilidade ou estereotipação na mídia, nos comerciais, nas novelas, nos locais de mando e decisão, no cinema, no teatro, enquanto professores universitários e tantos outros.

Há ainda uma terceira dimensão dessa morte, a das nossas consciências, da nossa memória, do legado deixado pelos nossos. Não raro nos deparamos na mídia, nas comunidades, nas redes sociais com notícias caluniosas sobre jovens, homens e mulheres negras assassinados.

São essas as mortes as quais resistimos: a morte em vida, a morte físicae  a morte espiritual do legado de nossos mais jovens e mais velhos. Todas são mortes “matadas.” É disso que falamos quando gritamos genocida não somente do Estado, mas da sociedade brasileira.

Aproveito aqui para falar de Marielle Franco, vereadora do Rio de Janeiro, negra e mulher. Marielle foi morta dia 14 de março, junto com Anderson Gomes. Uma outra passageira, assessora da vereadora, foi atingida por estilhaços.

Não bastou a essa sociedade ver a vida dessa mulher negra, vereadora, militante de direitos humanos assassinada. Era preciso destruir seu legado, silenciar os ecos de sua voz. Uma enxurrada de calúnias inundou as redes sociais tentando justificar o injustificável: o homicídio de Marielle.

As fake news, as calúnias e difamações que têm circulado são uma das fáceis cruéis do racismo: o esforço constante de diminuir a importância da trajetória de negras e negros no Brasil, de negar a universalidade de das lições de resistência que ela deixa para sociedade brasileira.[2]

Desde a morte da vereadora, não nos foi possível viver o luto e digerir o significado da morte de uma mulher, negra, pobre, favelada, bissexual, defensora de direitos, acadêmica. Marielle era também uma esperança política para parte de um Rio de Janeiro tão cansado de lideranças que destoam das pautas prioritárias para os movimentos sociais.

Não nos foi possível ir às ruas chorar uma das nossas, um dos nossos e reconstruir nossas esperanças com àqueles que também se indignaram. Foi preciso realizar uma disputa pública sobre o significado da morte de sua morte e sobre a sua trajetória. Sua assessoria, sua família, as pessoas que a amavam e admiravam precisaram em meio ao luto se organizar para a preservação da sua memória.

A desumanização provocada pelo racismo permite que parte da sociedade brasileira se sinta no direito de nos negar até mesmo o que há de mais comum entre nós: o luto e as reflexões sobre o significado da vida e da morte.

Exemplo disso, foi o editorial do jornal O Globo tentando atribuir significado a morte de Marielle Franco. Destaco o trecho de maior insensibilidade:

“Também precisa ser relativizada a questão de a vereadora representar o trinômio “preta, mulher, favelada”, tão usado em proselitismos. Importa é que bandidos, com esse assassinato, buscam sinalizar que o poder é deles. Fosse Marielle “branca e rica”, a execução precisaria provocar a mesma reação do Estado e na sociedade. A morte de Marielle não pode ser apropriada por interesses partidários ou sectários.”

O texto revela, no fundo, o incômodo desse veículo quando vidasnegras importam, quando nossas mortes mobilizam para além dos movimentos sociais negros, para além de nós mesmos e dos nossos.

Revela que aos grandes veículos de comunicação não basta nossa inviabilização diária em seus canais,  e faz-se necessário arvorar-se até no direito de definir o que nossas mortes significam. Até quando vocalizamos nossas dores, esses veículos acreditam que podem falar por nós e definir que significado essas têm.

Infelizmente, Marielle não foi a primeira e não será a última

Já chamamos e choramos por Claudia Silvia, por Alyne Pimentel, pelos 5 mortes dos jovens de Costa Barros, por Maria Eduarda, pelo estupro coletivo sofrido pela adolescente em comunidade do Rio de Janeiro, por Luana. Já nos indignados com a tortura sofrida por Verônica Bolina, pela prisão injusta de Rafael Braga e, em tantos outros casos que não consigo nomear em um único artigo. A muitos desses casos cruéis seguiu-se uma intensa campanha de difamação para justificar as violações cometidas.

Não é possível imputar aos defensores de direitos humanos e, em especial aos movimentos negros – grupo no qual eu me insiro – de sectarizar nossas mortes ou de usar proselitismos.

Ser “preta, mulher e favelada “ está na essência da violação que sofremos, mas também das nossas possibilidades de sobrevivência. Não são meros adjetivos, são determinantes da forma de viver e apreender o mundo, para o bem e para o mal.

Para os movimentos sociais negros, perder uma vida nunca foi sinônimo de “menos uma”. Nosso lema sempre foi “nenhuma vida a menos”, o que não nos impede de ver que essas umas tem cor, tem classe, tem nome e tem história.

É a grande mídia brasileira que não chora, nem se comove pelas mortes dos negros (as), pobres, favelados (as) e que faz uso das nossas trajetórias e tragédias para retroalimentar seus privilégios, para barbarizar nossas dores em seus telejornais e novelas.

Cresci ouvindo minha mãe, Vera Lúcia Andrade da Silva, me contar de meu avô José Gonçalves da Silva, o seguinte aprendizado: “a gente precisa preservar nosso nome porque a única coisa que preto tem é o nome”. Nunca me foi tão explicativa de nossa realidade essa frase.

Preservemos o nome e o legado da Marielle.  Uma dimensão especial de nossa resistência e a preservação de nossa memória. Como nos ensina, Haile Garima[3]

“Para mim genocídio não é apenas quando você é fisicamente assassinado. O genocídio também acontece quando você é roubado de sua memória. Porque você nunca pode encontrar uma resposta para circunstâncias atuais, que são processadas pelas experiências do passado. (..) nós temos uma arma poderosa que é a memória, uma possibilidade de salvação não somente para nós, mas para o mundo. Porque a nossa experiência assim o determina.”

Combater o racismo é também não permitir que arranquem de nós a memória dos nossos.

Allyne Andrade é Pesquisadora e membro da Articulação Justiça e Direitos Humanos.


[1] Felipe Freitas, além de amigo e companheiro para interpretação do mundo contemporâneo é autor da dissertação “Discursos e práticas das políticas de controle de homicídios: uma análise do “Pacto pela Vida” do estado da Bahia (2011 – 2014). 2015. 159 f., il. Dissertação (Mestrado em Direito) —Universidade de Brasília, Brasília, 2015.”, cuja leitura eu vividamente recomendo.

[2] Essa reflexão da universalidade das histórias de resistência da população negra para o país e para o mundo, sobre as conquistas históricas obtidas por mulheres e homens negras e negras é parte da fala de Edson Cardoso, no filme “Para além do espelho” de Ana Flauzina. O documentário me influenciou profundamente ao longo dessa semana e aproveito para agradecer publicamente a Ana por compartilhar conosco essa parte de nossa história comum. O filme conta com a participação de dois personagens da diáspora negra, o jornalista brasileiro Edson Cardoso, e o cineasta etíope Haile Gerima.

[3] Fala do Haile Garima no filme “Além do Espelho”, dirigido por  Ana Flauzina

 

 

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