Reverenciando Sueli Carneiro: A contribuição de seus escritos para o Direito

FONTEPor Thula Pires, enviado para o Portal Geledés
Thula Pires (Foto: André Melo Andrade/Folha de S.Paulo )

No dia 15 de julho de 2020, nos encontramos para celebrar os 70 anos de Sueli Carneiro. Participaram desse encontro a própria Sueli Carneiro, Maria Sylvia Oliveira, Bianca Santana, Elaine Pimentel, Winnie Bueno e eu, Thula Pires. Tomamos o auditório virtual da Ordem das Advogadas de São Paulo, a convite de Maria Sylvia Oliveira, representando a Comissão da Igualdade Racial da OAB-SP¹.

Foi um momento de muita alegria, de celebração da vida e da possibilidade de agregar longevidade e continuidade, de reconhecer a importância e ao mesmo tempo de nos implicarmos com a trajetória de quem admiramos. 

Acompanho com emoção e aprendizado muitas das homenagens que os setenta anos de Sueli vem proporcionando a ela, e em nome dela a todas nós. O legado de Sueli é tão complexo e potente que não pode ser esgotado em um campo de conhecimento, em fronteiras de Estados Nacionais ou em um dado momento histórico. Por isso, agradeço especialmente à Maria Sylvia por nos possibilitar colocar em destaque a contribuição do projeto político-epistêmico de Sueli Carneiro para a área do Direito. Por ser uma esfera de ação contundente tanto em sua luta quanto na formulação da utopia que ela nos oferece, é nosso dever levar a sério nesse campo o que ela diz e faz. 

Pensando em como começar a falar do tanto que ela tem a nos oferecer, tomei emprestado o título que Sueli deu a um artigo convocatório para a Marcha das Mulheres Negras de 2015 e que fora resgatado pela igualmente gigante Conceição Evaristo no prefácio ao livro “Escritos de uma vida” (2018). É em LEGÍTIMA DEFESA que Sueli se apresenta, que ela nos convoca e nos alimenta. 

Uma característica marcante da Sueli Carneiro é a aguçada capacidade de percepção e crítica através da qual ela depreende a realidade e analisa conjunturas sem perder as continuidades. E é com essa mesma capacidade que ela provoca a comunidade jurídica em diferentes níveis, que serão aqui divididos em três dimensões:

(1) Uma primeira dimensão que leva em conta o processo de positivação e transformação de demandas políticas em normas jurídicas (seja no âmbito do direito interno ou internacional, seja no âmbito das leis ou das políticas públicas);

(2) uma segunda dimensão que se centra na determinação do conteúdo e do alcance das normas no seu processo de aplicação e, por fim;

(3) uma terceira dimensão que se relaciona mais amplamente ao processo de produção do conhecimento jurídico.

Eu só tinha dez minutos para falar, mas nem que eu fizesse uma tese inteira sobre as contribuições dos Escritos de uma Vida sobre o Direito, eu conseguiria esgotar todas as possibilidades que Sueli Carneiro nos oferece. No entanto, destaquei alguns desses caminhos que ela pavimentou para nós.

(1)Na dimensão que leva em conta o processo de positivação e transformação de demandas políticas em normas jurídicas (seja no âmbito do direito interno ou internacional, seja no âmbito das leis ou das políticas públicas) são muitos os exemplos em que a atuação de Sueli foi incansável e determinante. 

Ela começa sua defesa intransigente da democracia lutando contra a ditadura empresarial militar e com a mesma energia nos impulsiona a defender os direitos duramente conquistados nos últimos trinta anos frente à escalada neofascista.

O processo constituinte disputado para que a Constituição de 1988 pudesse representar as demandas organizadas pelos movimentos negros é rigorosamente reivindicado por ela em todas as oportunidades. Não apenas para que saibamos como foi possível imprimir no texto o esforço de articulação que se fazia nos corredores do Congresso Nacional e fora deles, mas principalmente para que as frequentes tentativas de supressão e, em alguns casos, a eliminação desses direitos e garantias sejam entendidas na exata medida de sua gravidade.

A fundação do GELEDÉS Instituto da Mulher Negra,  em 30 de abril de 1988, pode ser entendida como uma das representações de seu engajamento com o processo constituinte, no seu sentido político e filosófico mais amplo. 

É possível relacionarmos muitas das reivindicações iniciadas naquele período  com a missão institucional de defesa de mulheres e negros frente às desvantagens e discriminações no acesso às oportunidades sociais em função do racismo e do sexismo vigentes na sociedade brasileira, bem como a postura de enfrentamento a todas as demais formas de discriminação que limitam a realização da plena cidadania, tais como: a lesbofobia, a homofobia, os preconceitos regionais, de credo, opinião e de classe social. Mas, sobretudo, é possível percebermos na sua atuação junto a GELEDÉS que o processo constituinte iniciado em 1986 foi permanentemente disputado e continuará a sê-lo enquanto houver racismo e sexismo, em qualquer de suas manifestações.

Outro momento que marca muito essa dimensão é aquele que ocorreu nos anos 2000 e 2001, e que a filha de Ogun se refere como a “Batalha de Durban”. Nesse momento, a comunidade internacional foi confrontada com questões étnicas, raciais, culturais e religiosas em todos os seus desdobramentos (racismo, discriminação racial, xenofobia, exclusão e marginalização social de grandes contingentes humanos), esgarçando seu potencial para polarizar o mundo contemporâneo (CARNEIRO, 2018, p. 190). 

Articulada a outras mulheres negras amefricanas e africanas desafiou o colonialismo jurídico ao postular o reconhecimento da escravidão africana como o crime de lesa-humanidade que foi e, a partir daí, subsidiar demandas por reparação contra os países que se beneficiaram direta ou indiretamente do tráfico negreiro, da exploração da escravidão e das riquezas do continente africano. 

Nessa batalha pela afirmação de uma existência plena, Sueli Carneiro destaca como principais vitórias: a) a incorporação do termo “afrodescendente” para designar um grupo específico de vítimas do racismo e da discriminação; b) as exigências para que os Estados alterem o padrão de desigualdade nos índices educacionais entre negros e brancos, para que sejam redesenhadas as políticas de saúde de forma a permitir a equalização da expectativa de vida entre brancos e negros, a promoção do acesso racialmente democrático ao mercado de trabalho, à terra, à moradia e ao desenvolvimento cultural e tecnológico. (CARNEIRO, 2018, p. 190)

(2) Uma segunda dimensão que gostaria de destacar se centra na determinação do conteúdo e do alcance das normas no seu processo de aplicação. 

A gente sabe que o conteúdo de uma norma é determinado não apenas no momento de sua transformação em documento legal, mas principalmente no momento de sua aplicação. E sabemos ainda que mesmo quando ultrapassamos a primeira barreira e conseguimos positivar demandas políticas, o racismo e o sexismo de todos os órgãos do Sistema de Justiça se encarrega de manter o pacto narcísico incólume, garantindo a fruição da legalidade e da liberdade como atributos exclusivos da zona do ser. Ou, nas palavras de Sueli Carneiro: “talvez para que lembremos, negros e negras que a plena cidadania não se destina a descendentes de escravos” (2018, p. 230).

A despeito disso ou em virtude disso, é preciso reconhecer a importância de Geledés para a institucionalização do movimento de mulheres negras no terceiro setor e, com isso, para a consolidação de uma agenda pública afinada com a defesa dos direitos humanos e com a ação política das mulheres negras. Essa incidência é fundamental para que as normas jurídicas possam promover as proteções a que se destinam. 

A capacidade de monitoramento e fiscalização do cumprimento das normas protetivas, bem como seu desdobramento no âmbito das políticas públicas é absolutamente crucial no processo de atribuição de sentido às normas. Como exemplos importantes dessa forma de atuação desenvolvidas através do Geledés, sublinharia 3 projetos: 

  1. O SOS Racismo – com a assessoria jurídica para casos de Discriminação Racial e violência doméstica e sexual, criado em 1992;
  2. a forte atuação em litigância internacional, incidência junto aos mecanismos internacionais de proteção de Direitos Humanos, como a CIDH – Comissão Interamericana de Direitos Humanos (OEA). 
  3. Sabedora das artimanhas que o colonialismo jurídico, através do racismo, do sexismo e da heteronormatividade é capaz de impor aos que habitam a zona do não ser, suas estratégias de atuação não se endereçam apenas aos órgãos do Sistema de Justiça. Além de todo o aprendizado que o ativismo antirracista promove, há processos de formação política como os desenvolvidos no âmbito de projetos como os das  Promotoras legais populares que ampliam sobremaneira a nossa capacidade de incidir sobre a promoção de direitos. Em 20 anos de execução, o projeto PLPs tem contribuído para o fortalecimento de mulheres na busca pela efetivação de direitos, no combate a todas as formas de discriminações, na promoção da solidariedade e no empoderamento de outras mulheres. 

Por fim, sublinharia a participação de Sueli Carneiro na Audiência Pública da ADPF 186 DF (STF, 2012)  como um dos mais emblemáticos exemplos de sua participação em todos os processos de construção normativa. Ao defender a constitucionalidade do sistema de cotas ela estava ali reafirmando o compromisso com a construção de um projeto de nação comprometido com o futuro, acreditando que:

 “as condições históricas que nos conduziram a um país em que a cor da pele ou a racialidade das pessoas tornou-se fato gerador de desigualdades foram produto da ação ou inação de seres humanos e, por isso mesmo, podem ser transformadas intencionalmente pela ação dos seres humanos de hoje”. (2018, p. 288).

 

(3) a terceira e última dimensão que pretendo destacar se relaciona mais amplamente ao processo de produção do conhecimento.

Sueli Carneiro coloca a desnaturalização da cisheteronormatividade, da hegemonia masculina e da supremacia branca como uma “exigência ética, um pressuposto para a consolidação da democracia e condição de reconciliação do país com sua história, no sentido da construção de um futuro mais justo e igualitário para todos” (CARNEIRO, 2018, p.138).

Enegrecendo o feminismo ela nos oferece a possibilidade de perceber violências e resistências que tem como corpo prioritário de vilipêndio e de afirmação o das mulheres negras. Com isso, amplia o vocabulário político conceitual que podemos mobilizar para oferecer respostas concretas a problemas do tipo nosso.

A filósofa reverte as leis da física e nos exige que a cada violência sofrida haja uma reflexão e medida de enfrentamento em sentido contrário e de dupla intensidade. A nossa reação não pode ser apenas em sentido contrário e de mesma intensidade, é preciso que cada ação genocida seja por nós combatida de forma pensada, estratégica e capaz de minimizar os efeitos daquela violência e dificultar a renovação permanente do racismo.

É também enegrecendo o feminismo que ela redimensiona a afirmação plena de nossa igual humanidade. Ampliando a capacidade de percepção dos desafios do não-ser e amplificando a nossa indignação frente aos desafios do não lugar, somos levadas a desafiar radicalmente todas as formas de desumanização que são impostas no mundo que herdamos.

Como ela nos disse recentemente: 

“o que nos move a denunciar, o que nos move a lutar,  a escrever é a indignação diante da injustiça e da opressão, são as vivências cruéis que as pessoas negras experimentam nessa sociedade e contra as quais têm que estar sempre alertas, sempre em legítima defesa. E é essa indignação que reafirma a nossa humanidade e é o combustível da nossa resistência. A nossa escrevivência insurgente clama por um novo pacto racial e de gênero que desalojem todas as hierarquias produzidas pelo racismo e pelo sexismo. Esses sonhos libertários conformam uma nova estética social, fundada noutra ética em que a diversidade humana se constitua no mais belo espetáculo da natureza a ser preservado. Essa missão civilizatória é talvez o ponto mais alto e mais importante da agenda que nos impulsiona” (CARNEIRO, 2020).

O epistemicídio que ela denuncia (CARNEIRO, 2005) responde também pelo encobrimento de uma de suas principais contribuições para a área do direito, a meu ver. Na sua tese de doutorado ela nos ensina sobre os processos de apagamento e invalidação dos saberes produzidos por grupos subalternizados, destituídos de sua história, racionalidade, cultura e civilização. 

E nos ensina muito mais. Ela demonstra a existência de um dispositivo de racialidade/biopoder operando na sociedade brasileira como instrumento articulador de uma rede de elementos definida pelo Contrato Racial que define as funções (atividades no sistema produtivo) e papéis sociais. 

Sua contribuição permitiu dar ao arcabouço conceitual foucaultiano aquilo que lhe faltava para ler a realidade brasileira, ao redimensionar o papel do racismo na conformação do Estado, no funcionamento de suas instituições e influência nas relações intersubjetivas. Os usos que se fez largamente da noção de biopolítica acumpliciadas com os epistemicídios e, portanto, com o descarte de leituras como as de Sueli Carneiro, fez com que sua mobilização fosse incapaz de explicar as violências e mais distintos processos de controle impostos à mais da metade da população brasileira.

É curioso que hoje em dia o termo “necropolítica” esteja sendo utilizado nos mais variados espaços da comunidade jurídica. Os mesmos que ignoram pelo menos desde 2005 a produção teórica de Sueli Carneiro, agora se utilizam do termo necropolítica a torto e a direito. Muito mais a torto do que a direito diga-se de passagem.

É curioso não porque a noção de necropolítica não se adeque a muitos dos processos que ocorrem na sociedade brasileira, mas porque essa categoria opera no modelo biopolítico foucaultiano um movimento equivalente ao que foi realizado por Sueli – e com a vantagem da tese de Sueli Carneiro estar diretamente relacionada aos processos históricos, políticos, raciais, sexuais, econômicos e culturais de produção de nossa inviabilidade. 

Mas, se for para obra de Sueli Carneiro passar a ter apreensões que a simplifiquem, que façam com que suas ideias sejam desenraizadas das práticas políticas que as fundamentam e usadas como escudos para manutenção das hierarquias de humanidade entre nós, como tem ocorrido com alguns usos banalizados da noção de necropolítica, que preservemos a integridade de seu pensamento. A preservação da integridade de seu pensamento impede que ele continue encoberto, mas exige que seja mobilizado com o rigor e a responsabilidade política com que foi desenvolvido.

Que sejamos dignas de olhar nos seus olhos, Sueli Carneiro, com a certeza de que o seu legado é elevado à máxima potencialidade em cada uma de nossas intervenções. Essa missão não é simples, não é trivial, mas é a única que podemos assumir em sinal de respeito a você, em respeito ao ferro que lhe forjou e em nome de nossa legítima defesa. Ogunhê.

Olorum Modupé por partilhar de sua caminhada no Àiyé. Obrigada por existir, exigir e inspirar. Vida longa! Salve Sueli Carneiro!

Rio Seco, 14 de agosto de 2020.

Thula Pires

 

Referências:

CARNEIRO, Aparecida Sueli. A Construção do Outro como Não-Ser como fundamento do Ser. Feusp. Tese de doutorado. 2005.

CARNEIRO, Aparecida Sueli. Escritos de uma vida. Belo Horizonte: Letramento, 2018.

CARNEIRO, Aparecida Sueli; RIBEIRO, Djamila; SANTANA, Bianca. Feminismos Negros: uma Homenagem aos 70  anos de Sueli Carneiro. Mediação: Flavia Oliveira.  Disponível em < https://www.youtube.com/watch?v=2mmuyRXHHg0&t=2865s>, acesso em 12 de julho de 2020.

STF, ADPF 186 DF, Relator: Ministro Ricardo Lewandowski. Data de julgamento: 26/04/2012.

 


¹ Vídeo completo do evento disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=enrVr-M6oj8&t=73s>, acesso em 14 de agosto de 2020.


** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 
-+=
Sair da versão mobile