Reverenc’Yás: memória, resistência e preservação

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O quilombo é um avanço, é produzir um momento de paz. Quilombo é um guerreiro quando precisa ser um guerreiro. E também é o recuo se a luta não é necessária. É uma sapiência, uma sabedoria.

A continuidade da vida, o ato de criar um momento feliz, mesmo quando o inimigo é poderoso, e mesmo quando ele quer matar você. A resistência. Uma possibilidade nos dias de destruição

 Maria Beatriz do Nascimento

 

 

Por Cássia Cristina – Makota Kidoiale e  Jair da Costa Junior, enviado para o Portal Geledés

Nas tradições de matriz africana, na cultura africana, e esta refletida na cultura afro-brasileira como herança de nossos ascendentes (ancestrais), bem como nas comunidades e populações afro-brasileiras, de maioria negra, as mais velhas e os mais velhos têm uma importância vital na transmissão e preservação de saberes e conhecimentos que estão sendo esquecidos ao longo dos anos e dos processos institucionalizados ou não, de invisibilização de nossas fontes existenciais. O projeto Reverenc’s quilombos BH nasceu no Kilombo Manzo Ngunzo Kaiango, diante da relevância conferida ás nossas mais velhas e mais velhos, bem como às nossas crenças nas entidades**, e a tudo que elas representam. Partindo do entendimento que elas representam fontes de vida e conhecimentos, bem como da força para preservação da própria vida numa sociedade que tende e anseia por nossa dizimação, reverenciar nossas matriarcas, mães e mais velhas tem um significado especial. Na cultura africana, de onde provém nossa fonte existencial primeira, as Iyá’s (IYÁ-M’BERÉ), que corresponde à grande Mãe, princípio criador, aquela que vem antes da criação do mundo material, ocupam um lugar de destaque. “Ancestral africano, símbolo da grande Mãe que é o princípio e o poder que cria a vida. Aquela que precede, o ponto de partida de um processo de criação que vai desenvolver-se, a causa primeira, a fonte de existência, a presença ancestral” (SIQUEIRA, 2010, p. 29). 

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Os quilombos, as vilas e favelas, que também são quilombos, os terreiros de umbanda e candomblé, em suas variações de nações, são espaços onde se convivem as formas mais tradicionais de conhecimentos do povo negro em diáspora, em comunhão com as formas mais contemporâneas desses conhecimentos. Nesse sentido, esses espaços, e também nossas mais velhas e mais velhos, como representantes e descendentes dos povos que construíram esse país, e deixaram uma robusta contribuição social, cultural e política em nossa história, carecem de cuidados que historicamente nos têm sido negados. A despeito do não reconhecimento conferido pelo Estado e a sociedade de modo geral, sempre tendo nossas matriarcas como uma fonte de força, conhecimentos e vida, vimos resistindo e preservando nossa história, cultura, modos de vida e nossas crenças. Estamos aqui e vamos permanecer, e nossas Iyás também. 

Ao longo de séculos, enfrentando uma sociedade colonial e, subsequentemente, uma sociedade regida por um Estado que segue os moldes de administração colonial,  através do qual, a necropolítica (MBEMBE, 2016) em seus dispositivos de racialidade/biopoder (CARNEIRO, 2005), prevalecem respaldados em mecanismo legislativos ou em formatos de políticas públicas na busca incessante de nossa dizimação, de forma dissimulada na diminuição de nossas expectativas de vida a partir da imposição de condições indignas e degradas de vida, ou, no recurso retórico que justifica o extermínio direto através da guerra contra as drogas, da pacificação e outros mantras com ampla divulgação para  “justificar” o uso da violência letal. 

Para além do fato de contar ainda com um poderoso mecanismo simbólico que estabelece um consenso implícito e legitima tais preceitos de um Estado genocida, nos impõe barreiras, as quais tem sido duras de derrubar, porém, não impossíveis, levantadas pelo que denomino de “capital racial” (COSTA, 2018).  Capital racial, por sua vez, é o resultado prático da tradução da construção de um aparato ideológico social, cultural e político que mobiliza o sentido de pertencimento racial diferencial, levado a cabo ao largo do transcurso histórico do colonialismo aos dias atuais que impôs, como parte de nosso de código de linguagem, a representação inferiorizada das pessoas negras. Tal pertencimento tem na cor da pele e nos traços fenotípicos a identificação que remete às respectivas classificações raciais, as cujas, convergem com representações sociais conforme a estética fenotípica observada. Moore enfatiza, a partir da análise da literatura Árabe do primeiro milênio a.c., instrumento a partir do qual, poetas africanos se utilizam para se defenderem das acusações de inferioridade e outras classificações sociais pejorativas, o que torna possível perceber, a “associação, já admitida na época, entre a cor negra, a feiura e o estado de inferioridade” (2010, p, 90)

Segundo Hill-Collins (2019), trata-se de “imagens de controle”, uma vez que permitem associar as pessoas negras a uma série de rótulos sociais pejorativos de caráter inferiorizante impondo sérios limites ao acesso a bens, posições de prestigio social e reconhecimento social. Nesse sentido, nos mostra Fanon (2005, p. 58), “como que para ilustrar o caráter totalitário da exploração colonial, o colono faz do colonizado uma quintessência do mal”. O que tem se mostrado bastante efetivo até os dias atuais considerando as representações sociais que pesam sobre a população negra e seus territórios, e o consequente tratamento destinado tendo como justificativa toda uma ordem social de desmoralização que denota o não reconhecimento. Segundo o intelectual negro martinicano, Fanon (2005 p. 54), na política colonial, “o mundo colonial é um mundo compartimentado. Talvez seja supérfluo, no plano da descrição, lembrar a existência de cidades indígenas e cidades europeias, de escolas para indígenas e escolas para europeus, assim como é supérfluo lembrar o apartheid na África do Sul”. Sendo que o atributo primeiro e elementar de fragmentação do mundo é a raça. O fato de pertencer a uma espécie ou outra, consideradas como raças distintas, estabelece-se oposições de classificações relacionais como se fossem atributos raciais hereditários.   

A perspectiva da separação e da imposição de modo de vida e suas significações como um padrão de vida superior, e outro colocado como inferior, o que implica na fragmentação racializada do mundo, de forma binária e maniqueísta, pode ser vista também em Nego Bispo (SANTOS, 2018), que assim como Beatriz do Nascimento, é quilombola e intelectual. Vale fazer um parêntese para nos atermos à esta questão que nos é muito cara e remete à posse ou não de saberes e conhecimentos. Pois, nas sociedades ocidentais, o termo intelectual deve ser colocado em suspensão. Isso, em razão de ser considerada, a denominação de intelectual, uma categoria comumente reservada e associada à pessoa que teve uma trajetória acadêmica. 

Para tanto, nos mostra Hill-Collins (2019) e também González (2018), que o termo necessita de um urgente deslocamento tanto prático quanto semântico, uma vez que a capacidade de produzir conceitos ou pensamento crítico não é, nem nunca foi, garantido ou exclusividade de quem possui um diploma. Trata-se, em perspectiva crítica negra apurada, “de um conceito ideológico ou culturalmente construído, e não como algo natural ou simplesmente reflexo da realidade” (COLIINS, 2019, p. 52). Um conceito construído em oposição ás formas de produção e transmissão de conhecimentos detido pelos povos afro-pindorâmicos (SANTOS, 2015), bem como, de um lugar de produção de crítica social e política que desafia e coloca em suspensão todos os pressupostos hegemônicos de manutenção de uma falaciosa superioridade de alguns povos em relação à outros. 

Dito de outra forma, uma concepção ideológica forjada também sob o crivo das distinções raciais, que visa, sem claudicações, estabelecer diferenciações associadas diretamente às dimensões culturais, biológicos ou ambas. Porém, tendo como recorte de reconhecimento em cada um dos polos, os quais sejam, detentores de conhecimentos em oposição aos meros operadores braçais, a estética remetente à identificação racial. Estratégia ardilosa colonialista identificada e criticada por Gonzalez (2018), uma vez que acredita ser mera reprodução de um discurso pretensamente revolucionário, no entanto, mostra sua gênese fundada no paternalista/liberalismo racial e “aponta-nos para o modo não-consciente de perpetuação dos mecanismos de dominação utilizado pelo sistema que combate. E na medida que um discurso não é consciente de seus fundamentos e seus efeitos, ele não pode se dizer científico” (GONZALEZ, 2018, p. 102), ou em congruência a este, não pode se dizer intelectual. Ainda, segundo a intelectual negra brasileira, Gonzalez, trata-se de um racismo disfarçado que tende a cimentar, ou seja, naturalizar o racismo em nossas relações, e, sobretudo, em convergência às correntes conservadoras, obviamente, pretendem manter seus privilégios intocáveis. 

Em todo esse contexto social, cultural e acima de tudo político, que de várias maneiras nega a existência do racismo e, notadamente, do racismo enquanto estrutura, a ideologia da democracia racial tenta se perenizar nas relações, incluindo, produzir impactos subjetivos entre a população negra. A ideologia da democracia racial buscou e ainda busca se dissimular ou naturalizar o racismo como um traço normal e aceitável nas relações sociais e institucionais no Brasil. Um projeto de sociedade que almeja se sustentar em tais bases, nitidamente, visa, como continuidade do colonialismo, a exploração, em seus vários aspectos e dimensões, desde as materiais às subjetivas, de um grupo sobre outros (especificadamente, negros e indígenas). 

Para tanto, é no contexto histórico, cultural e político de uma sociedade fundada na mais vil experiência colonial, que um projeto como o Reverenc’Yas se insere como uma poderosa ferramenta de produção de reconhecimento identitário e legitimação de saberes e conhecimentos que, segundo a lógica hegemônica imposta, não seriam assim considerados. Muito embora sejam estes saberes e conhecimentos as bases de todo saber erigido nas sociedades ocidentais, outrora expropriadas e apropriadas pelo colonialismo/capitalismo/moderno/patriarcal/eurocentrado. A lógica hegemônica ambicionou desassociar todo tipo de conhecimento dos povos afro-pindorâmicos, impondo seus representantes, homens brancos burgueses, como os únicos detentores legítimos, ou até mesmo, por possuírem atributos questões hereditárias que os dotavam de capacidade para produção de conhecimentos. 

 

Reverenc’Yás: um projeto de empoderamento

 

Quando um projeto se torna uma estratégica de resistência e reconhecimento identitário de um povo no interior de um sistema que busca há séculos, sua extinção, porém, o financia*** a partir de políticas ditas igualitárias, ele propõe uma espécie de implosão do sistema que tem buscado a desarticulação objetiva e simbólica da população afro-brasileira. O projeto Reverenc’Yás proposto pelo kilombo Manzo Ngunzo Kaiango, poderia ser visto meramente como mais um projeto de fortalecimento cultural, que simplesmente ofertaria oficinas e palestras. Porém, quando ele tem como finalidade agregar mais de uma pessoa negra, passa a ser uma estratégia para aquilombar. Transforma-se então, em uma potente estratégia para o povo preto enfrentar o racismo, o preconceito e agrupar os ditos excluídos de uma sociedade colonial, usurpadora e capitalista, que em razão de um histórico de exploração legou ao seu povo os lugares marginalizados nessa sociedade. 

Reverenc’Yás nada mais é que a forma como reverenciamos de fato as nossas mais velhas que sempre estiveram a frente de uma governabilidade comunitária. Reverenc’Yás é nosso modo de aprender e dizer ao matriarcado o quanto honramos toda história de luta e de resistência delas para que fizesse de cada um de nós, a importância de sermos humanos, aprendendo as práticas culturais, as rezas, a diversidade, para que a exclusão, o racismo e o preconceito ao qual somos expostos não solape nossas identidades e nossos corpos, não extinga de vez nossa subjetividade. 

Todo este significado observamos de forma prática em nosso cotidiano, e na luta que essas matriarcas vêm enfrentando na defesa de suas famílias, de seus filhos e filhas e seus territórios. Como se não bastasse as ameaças históricas, não somente ou simplesmente pela cor de nossa pele, mas por herdarmos todas as tecnologias que contribuíram para construir um país que foi invadido pelos sentimentos e propósitos mais vis que podemos elencar: o machismo, a ganância de apropriação de terras alheias, deste que de fato sempre foi um território de tradição, porém indígena. Reverenc’Yás nada é mais que para nós do Manzo, dizer que aqui quem faz e a gente, porque um descendente indígena nós permitiu fazer, é dizer que nossa cultura Eduka profissionaliza, agrega, e reconhece cada um em suas especificidades. 

Sabemos que temos algumas dificuldades de compreender essa linguagem que nos lembra a escravidão mesmo sem ter vivenciado esse processo desonesto, mas que ainda persiste em nos explorar, até mesmo nos territórios que sempre foram demarcado pelas nossas práticas e pelo modo de fazer e viver, onde o nós e por nós mesmos. A escrita foi uma das formas de imposição violenta que “justificou” a usurpação das terras, tanto dos povos afro-pindorâmicos no Brasil e outras em outros continentes. Como nos explica Santos (2018), 

o poder quilombola sobre as terras é um poder baseado na palavra, na atitude, na relação – e não na escrita […] A maioria das terras das comunidades tradicionais no Brasil são consideradas espólios, pois ninguém fez escritura […] O nosso povo, por não saber ler, não sabia como funcionavam as escrituras, perdendo assim muitas possibilidades de viver nas suas terras 

 

Nesse sentido, a escrita foi inserida como um mecanismo de dominação e exploração, a partir do qual, se inferia um nível de civilidade e inteligência, mas, no entanto, carregava a gênese da violência colonial uma vez que era utilizado tanto como ferramenta usurpação e imposição de um padrão cultural de conhecimento, ao mesmo tempo, buscava se legitimar como instrumento de coação; considerando que, “quem mais ameaça hoje o sistema são os povos e comunidades tradicionais, pois somos donos de um saber transmitido espontaneamente pela oralidade, sem cobrar nada por isso” (SANTOS, 2018). Assim, a escrita se insere neste contexto social a fim de soterrar tais formas de produção e transmissão de conhecimentos, atribuindo-lhes o rótulo de obsoletos, sob a ótica da modernidade. Segundo Boltanski (1979), essa perspectiva demonstra como a passagem de uma economia natural a uma economia de mercado se tornou eficaz considerando sua legitimidade social na aceitação do especialista e diplomado. 

O conhecimento reconhecido pela técnica da escrita tornou-se moeda com a finalidade de assegurar a distinção entre seus detentores e os outros que não a dominava. Ao passo que os detentores de tal técnica, adquirido através do capital escolar, em escolas organizadas seguindo os modelos europeus e norte-americanos, das quais os povos afro-pindorâmicos e seus descentes foram excluídos, serviram também como requisito de seleção para ocupação dos postos de privilégio e prestígio social. Com isso, seguiu-se ao proposito original de deslegitimar e tornar sem valor o vasto arcabouço de saberes e conhecimentos detidos pelos povos afro-pindorâmicos. Como propósito paralelo, estabelecer através do ensino de base euro-americana, a dominação da subjetividade visando a adesão, total ou parcial, aos preceitos culturais europeus. O produto dessa relação de dominação intersubjetiva é a destituição identitária que procede do próprio mecanismo e das metodologias pedagógicas, bem como de seu conteúdo, que seduz e induz a acreditar em uma superioridade cultural a fim de incitar no educando a vontade de pertencimento àquela cultura em detrimento da sua.  

E nessa perspectiva que, Reverenc’Yás significa também dizer a essa sociedade, que aqui no kilombo ninguém quer ser doutor. Temos outras opções que nos contempla de forma a manter nossas identidades. Queremos, em nossa grande maioria, sermos mestras e mestres, a espelho de nossa matriarca, por conselho de Pai Benedito, e preservar nossos conhecimentos e saberes como experiência e também resistência. Em última instância, são as práticas oriundas desses saberes e conhecimentos que nos atende em nossas especificidades existenciais: culturais, sociais e religiosas. Eles compõe nosso código existencial, o que nos nutre de sentido para a vida e nos fortalece na dimensão individual e coletiva. Significa, grosso modo, manter o que é nosso entre nós e os nossos, ao invés de repetir a história e negar tudo que esteja ligado aos povos dos quais somos descendentes. Com isso, obstruindo as bechas para a continuidade da expropriação e a subsequente apropriação pelos colonizadores/capitalistas e a obtenção de lucros, econômicos e simbólicos na exploração dessas matrizes e nossos corpos. 

Reverenc’Yás, e mesmo que ainda for muito difícil um preto confiar em outro preto, um kilombo se juntar a outro kilombo, ainda sim a gente reverencia. Reverenc’Yás, é receber um negro cadeirante capoeirista, artistas plástico que produz um instrumento sagrado, produto de uma confluência afro-indígena, o caxixi. Carrega as lágrimas de nossa Senhora, e seu som nos leva em comunicação aos ancestrais. Os caxixis são usados em vários ritos, manifestações culturais e religiosas, tanto indígenas quanto afro-brasileiras. Rituais de curas ou festivos. As contas, para os indígenas são usados como colares que espantam os espíritos do mal na terra. Até na irmandade conga, encontra-se as contas em seus terços, usados atravessados nos corpos dos congadeiros. Sem mencionar que essa semente também é a base das contas dos pretos e pretas velhas. Reverenc’Yas, é tanto saber quanto ensinar a construir um berimbau e com ele trazer e ressignificar em melodias toda a dor causada pelo racismo, seja ele humano ou estrutural, mas também é cantar a gratidão de estarmos aqui como herdeiros de uma cultura criada pelas referências que trazemos dos guerreiros e guerreiras africanas. 

E cantar o amor e o reconhecimento por uma terra vivida em nossas lembranças ancestrais. É também cantar em um círculo, onde todos somos diferentes, mas que podemos lutar pelo mesmo objetivo, a união de todos os povos e a extinção das opressões. Como nos ensina Beatriz do Nascimento (2019, p. 190), 

o quilombo nunca foi discriminatório, tem sido assim. Jamais uma favela rejeitou um branco nordestino, um mineiro. E ali a maioria é negra. Mas ela não rejeita porque a favela é o lugar do homem sem-terra. O quilombo da favela é forte porque ele é a união do homem que se apodera de um pedaço de terra e divide essa terra com vários outros. 

 

Reverenc’Yás, é sempre compartilhamento. É saber e ensinar a construir um tambor e dizer que não vamos nos calar, é dizer que podemos ocupar as ruas, podemos fazer ecoar nossa história em forma de som e memórias, expor nossos corpos e chamar nosso povo, seja para dançar, cantar ou orar pedindo força aos nossos Nkissi, Orixás e Tupã. Reverenc’Yás é trazer uma mulher negra da quebrada pra atravessar a comunicação e não quebrar os protocolos ditos como regra de gente branca, as burocracias criadas como obstáculos que selecionam os que acessam. É trazer uma negra lésbica para ensinar percussão e dizer que lugar de mulher preta vai além de onde ela quer. É trazer dois homes negros que sempre estiveram as ruas defendendo nossa cultura, produzindo instrumentos e propondo projetos de valorização e de transformação do papel do negro na mídia. 

É dar visibilidade às mestras e mestres, porque respeitamos as gerações; de um pai que repassou para o filho, e esse repassando ao filho e neto, em uma única roda, nos ensinando que nossa roda é viva e continua. Que nossos modos de vida e pensamento é circular e contínuo, onde todos se vêm de um mesmo ângulo, o que dissipa hierarquias. Que nossos saberes e conhecimentos, a partir de uma relação dinâmica e orgânica, não requisita, aliás, rejeita a relação capital/conhecimento, uma vez que entendemos e concebemos que todo conhecimento é fruto de uma vivência e uma prática cotidiana. O que exclui a relação de produto passível e disponível no mercado para coloca-lo como algo acessível a todos, perfazendo uma lógica em que todos possam acessar, aprender e repassar. 

É dizer paro o negro que é produtor, que ele também pode e ser o vendedor, sem nenhum atravessador, e sair do anonimato. É dizer a um zelador, que prestar conta é o que ele faz melhor, afinal ele está sob os olhos de seus ancestrais. Reverenc’Yás, e trazer um padre negro que, consciente da história e da trajetória de espoliação vivida por seu povo nessa sociedade, funda e mantém um museu dedicado ao resgate e preservação da memória longínqua e recente dessa cultura. Reverenc’Yás é trazer um jovem negro ex presidiário porque o estado corrompeu toda sua infância, e lhe proporcionar o direito de participar com seus iguais de uma proposta de ressignificação da própria experiência e seu olhar sobre si e sua cultura. Reverenc’Yás, é juntar a família que foi educada, akilombada em uma senzala de um preto velho, construída e mantida pela matriarca.  Reverenc’Yás, é encontrar alguém que em algum momento quase comprou a lógica hegemônica como sua cultura, um descendente afro-indígena, que segurou em minhas mãos, ouviu minha história e disse, a gente vai junto, e juntos a gente vai akilombar nessa senzala porque não queremos botar fogo onde o negro apanhou, não queremos queimar o lugar onde o negro criou resistência e estratégias para romper as correntes. 

Se memória tem cor, Reverenc’Yás se coloca como uma das estratégias de preservação dessa memória através das práticas ancestrais de transmissão de conhecimentos, a oralidade. Dessa forma, Reverenc’Yas se coloca na luta por reconhecimento e produção de um sentimento de reconhecimento identitário entre as pessoas negras, sobretudo, a partir das experiências em comum e de um lugar social do qual almejamos transformar. Entra, em contraposição contundente, ao extermínio de nossa juventude, nossas crianças e nossas mais velhas e mais velhos. Pois, a lógica do genocídio, é, antes de tudo, um projeto político de eliminação da nossa memória, de eliminação da nossa história das nossas produções e dos nossos conhecimentos e saberes. Um projeto que vem sendo gestado há séculos e que, embora não alcance êxito total, tem provado sérios danos aos nossos. 

A exemplo da sociedade colonial, que ao separar nossas famílias, nossas tribos, nossas diversas etnias também buscou uma desarticulação identitária, uma desarticulação da história e da memória do que torna um povo unido a partir de um sentimento de reconhecimento entre os seus iguais. Desarticular simbolicamente, implica, como consequência adicional, dentro da lógica das sociedades capitalistas, desarticular objetivamente na dimensão material da vida cotidiana. O que termina por ser visto como algo desvalorizado socialmente. 

É nesse sentido, portanto, que Fanon nos indica, assim como o Chico Science, que para nos organizarmos é necessário desorganizar. Em outras palavras significa, de forma prática, explorar a desorganização do sistema, da forma como se encontra conformado desde o colonialismo, para nos (re)organizarmos enquanto grupos e povos diferentes, e nos situarmos em relação a nós mesmos e conseguimos operar a descolonização dos espíritos, a princípio, dos nossos com pretensões de repercussões nos outros. Reverenc’Yás é o reconhecer nossas matrizes existenciais, o que nos manteve de pé e fortes ao longo dos séculos, como fonte de força para perseverar e preservar nossas identidades e, como nos sugere nosso amigo quilombola e intelectual, Nego Bispo, trata-se de  um projeto de “contracolonização”, das mentes, dos corpos e dos espíritos.    

Precisamos, portanto, estarmos atentos a todo tipo de estratégia de dizimação que possa incidir sobre nossos corpos. Estamos atravessando, em nível mundial, uma pandemia de proporções ainda desconhecidas no Brasil. Contudo, sabemos que para alguns cuidados e diante da força do coronavirus (COVID-19), as populações historicamente desassistidas pelo Estado e vulnerável economicamente, se tornam ainda mais propensas a sentir o peso dessa pandemia. Pois, diante de situações como está é que percebemos como a necropolítica, através dos dispositivos de racialidade/biopoder se mostram eficazes. 

Ao remontarmos à sociedade colonial, perceberemos algumas similaridades, pois, foi através de doenças entre outras estratégias que também se operacionalizou a dizimação massiva das comunidades indígenas. Não nos cabe aqui discutir, não nesse momento, a origem de tal vírus, se oriundo da natureza, como alguns querem acreditar ou se uma ameaça biológica fabricada para um fim específico. Por outro lado, considerando o contexto histórico social e político atual, vale pensarmos coletivamente em estratégias de proteção comunitária, especialmente de nossas Iyás, uma vez é o grupo mais vulnerável diante dessa ameaça. 

Vai ser necessário mobilizarmos todos os recursos disponíveis e imagináveis para enfrentarmos este momento e mantermos nossas matrizes. Desde orientações e auxilio nas esferas do direito, especialmente os trabalhistas, visando garantir o distanciamento e, sobretudo, de estratégias que assegurem nossas Iyás em locais livres ou com chances mínimas de contato com o vírus ou pessoas que estejam com suspeitas de contaminação. É hora de nos aquilombarmos. Em outro tempo histórico, mesmo sem o recurso da internet, e com distâncias geográficas e culturais enormes, nossos antepassados organizaram grandes movimentos contra o sistema que os oprimiam com a finalidade de garantir a sobrevivência e alcançar a liberdade.  

Conceição Evaristo já prenunciava: “é tempo de nos aquilombar”. Aquilombar é reconhecer-se no outro, compreendendo que cada um com suas forças e capacidades podem dar sua contribuição, todo tipo de conhecimento e habilidade conta, e pode auxiliar em alguma medida. E todas as medidas são indispensáveis. Aquilombar é nos fortalecermos mutuamente. É reconhecer-se como aliado e em seu aliado no quilombo. O quilombo é o lugar seguro. É desse lugar que levantaremos as possibilidades de proteção e sobrevivências nesses dias em que nos parece que os mecanismos de destruição foram potencializados.

 

*Afro-brasileira, quilombola, de terreiro e intelectual.

*Afro-indígena-brasileiro, quilombola e intelectual.

**Na cultura afro-brasileira, como herança das matrizes africanas, as entidades representam pessoas que passaram por essa terra e entre nós, parentes ou não, e que de outras dimensões da vida espiritual nos protege e nos auxiliam em nossa trajetória na vida terrena.

*** projeto foi aprovado na Lei Municipal de Incentivo a Cultura (LMIC) 2018-2019, e conta com recursos oriundos do Fundo Municipal de Incentivo a Cultura (FMC) para sua execução.

 

Referências 

 

@reverencyas

http://www.kilombomanzo.org/

 

BOLTANSKI, Luc. As classes sociais e o corpo. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.

 

CARNEIRO, Aparecida Sueli. A construção do outro como não-ser no fundamento do ser. 2005. 339 f – Tese (doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005.

 

COLLINS, Patrícia Hill. Pensamento feminista negro: pensamento, conhecimento e a política do empoderamento. São Paulo: Boitempo, 2019. 

 

COSTA, Jair. Genocídio: o apagamento de uma identidade. 2018. 473 f – Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2018.

 

FANON, Frantz. Os condenados da terra. Juiz de Fora: UFJF, 2005.

 

GONZALEZ, Lélia. Primavera para as rosas negras. UCPA, Diáspora negra, 2018.

 

MBEMBE, Achille. Necropolítica. Arte & Ensaios, revista do ppgav/eba/ufrj, n. 32,  2016

 

MOORE, Carlos. Racismo & sociedade: nova bases epistemológicas para entender o racismo. Belo Horizonte: Mazza, 2007.

 

NASCIMENTO, Beatriz. Beatriz do Nascimento, quilombola e intelectual: possibilidades nos dias de destruição. Diáspora africana, filhos da África, 2018. 

 

SANTOS, Antônio Bispo. Somos da terra. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, número 12, página 44 – 51, 2018.

 

SIQUEIRA, Maria de Lourdes. N’assyim: a íris dos olhos da alma africana: saberes africanos no Brasil. Belo Horizonte: Mazza, 2010. 


** Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas do PORTAL GELEDÉS e não representa ideias ou opiniões do veículo. Portal Geledés oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.

 

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