Revés na política de segurança

FONTEPor Flávia Oliveira, do O Globo
Flávia Oliveira (Foto: Marta Azevedo)

Em plena pandemia da Covid-19, a narrativa que, no Rio de Janeiro, tornou política de segurança pública sinônimo de guerra, confronto, abate sofreu um revés. Foi histórica a decisão do Supremo Tribunal Federal que proibiu operações policiais em comunidades, enquanto durar a crise sanitária do novo coronavírus. A decisão do ministro Edson Fachin, posteriormente referendada pelo plenário da Corte, respondeu ao apelo do PSB, autor da ADPF 635, em articulação com Defensoria Pública e organizações da sociedade civil, diante de um inexplicável salto no número de mortes decorrentes da intervenção de agentes da lei no mês seguinte ao início do isolamento social, em março. A polícia matou 177 pessoas em abril e 129 em maio. Em junho, após a decisão do ministro-relator, houve 34 homicídios; em julho, 50. São dados oficiais do Instituto de Segurança Pública, que também anotou queda em outros indicadores, entre os quais homicídios dolosos e crimes contra o patrimônio.

A sentença do STF impôs freio a um modelo que fez a polícia fluminense bater recorde de assassinatos nos dois últimos anos. Em 2018, com a segurança pública sob intervenção federal, a cargo do general Braga Netto, hoje chefe da Casa Civil no Planalto, foram 1.534 homicídios; em 2019, 1.814, o maior número em quase três décadas. O ano que passou foi o primeiro da gestão de Wilson Witzel, o ex-juiz eleito governador — hoje ameaçado de impeachment — sob a promessa de implementar a Lei do Abate, mandato para policiais executarem a pena capital não prevista na legislação vigente e sem o devido processo penal. Dito e feito.

Foi a escalada homicida que levou a situação ao Supremo, em fins do ano passado. A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental apelava ao fim dos abusos e solicitava elaboração de um plano de segurança pública pelo governo local, com participação social. Esse pedido ainda não foi julgado; Daniel Sarmento, advogado do PSB, espera apreciação ainda este ano. “Essa decisão do STF em junho foi histórica, porque carrega um caráter simbólico muito forte e um efeito prático surpreendente. Foi simbólico ver que falta controle das polícias pelo estado, e a Suprema Corte precisou intervir, pelo menos, durante a pandemia. Vínhamos numa escalada de mortes e chegaríamos a dois mil homicídios, não houvesse a proibição. A queda de 73% em junho foi importante. Abriu-se um precedente que poderá ser usado, inclusive por outros estados, quando for percebida a desproporção da força letal”, analisou Silvia Ramos, cientista social à frente do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) e da Rede de Observatórios de Segurança.

Além da suspensão das operações durante a pandemia, o STF confirmou, num segundo julgamento de medidas cautelares de Edson Fachin, no início do mês, a proibição do uso de helicópteros como base de disparo de tiros e de intervenções nas proximidades de creches, escolas, hospitais e postos de saúde. De tão recorrentes, a prefeitura do Rio chegou a instituir divulgação diária do número de unidades de ensino e saúde com atividades interrompidas em razão de tiroteios entre criminosos ou com a polícia.

Nesse trecho, a inspiração foi a inédita e vitoriosa ação civil pública que Defensoria e organizações sociais, entre elas a Redes da Maré, moveram no Tribunal de Justiça do Rio, em 2017, para reduzir danos de operações policiais nas 16 favelas do complexo, onde vivem cerca de 140 mil moradores — gente predominantemente honesta, trabalhadora e potente, mas estigmatizada pela criminalização da pobreza e pelo racismo estrutural. O protocolo vigente desde agosto do ano passado diminuiu significativamente as ocorrências. Em 2019, 39 intervenções deixaram 34 mortos, 30 feridos, 24 dias sem aula e 25 sem postos de saúde. No primeiro semestre deste ano, houve 11 operações, com quatro mortes, 12 pessoas feridas, três dias sem escola (sem contar a suspensão pela pandemia) e seis sem atendimento à saúde.

Na ADPF das favelas, o Supremo também inovou ao reconhecer o protagonismo do movimento social dos territórios populares. Na liminar que suspendeu as operações, o ministro Fachin reproduziu declarações de Rene Silva (Voz das Comunidades), Raull Santiago (Coletivo Papo Reto) e Buba Aguiar (Coletivo Fala Akari), ativistas à frente de ações humanitárias de distribuição de alimentos, kits de higiene e água para enfrentamento à pandemia, que chegaram a ser interrompidas por tiroteios e mortes em favelas do Rio. “Foi, sim, uma vitória do movimento social organizado. Há uma pandemia global, e a gente conseguir, em meio a isso, destacar a violência do Estado, abrir um debate no STF e paralisar as operações foi muito importante”, declarou Santiago, também integrante do Gabinete de Crise do Alemão.

Organizações como Educafro, Justiça Global e Movimento Negro Unificado (MNU) foram admitidas como amicus curiae na ação. “Há um ganho quando o Supremo reconhece a legitimidade de lideranças comunitárias. A dúvida é se a decisão representará mudança, de fato, na narrativa da sociedade e será incorporada pelas políticas públicas”, disse o historiador Atila Roque, ex-diretor da Anistia Internacional Brasil, hoje na Fundação Ford.

Cabe sublinhar que as forças policiais, ao contrário do que vêm sugerindo notas divulgadas pelas corporações, não estão impedidas de atuar em hipóteses excepcionais, desde que “devidamente justificadas por escrito pela autoridade competente, com a comunicação imediata ao Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro — responsável pelo controle externo da atividade policial”, estabeleceu o STF. Deveria ser uma obviedade a polícia justificar formalmente suas ações e o MP fazer valer sua legítima atribuição. No Rio de Janeiro, não é.

A decisão do Supremo poderia levar Estado, instituições policiais, órgãos de controle e sociedade civil a refletir, em conjunto, sobre um modelo menos letal, mais inteligente e eficiente de segurança pública. Em vez disso, tornou-se adversária a ser batida em prol de uma política de segurança que, até aqui, só produziu mortes (de criminosos, agentes da lei e inocentes), violou direitos civis, maculou a imagem das instituições policiais e não gerou segurança nem venceu o crime organizado.

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