Revisão do Plano Diretor, que será votada hoje, aprofundará o racismo em SP

FONTEEcoa, por Gisele Brito, Victor Próspero, Luciana Araújo, Flávia Santana e Rafael Hime Funari*
Imagem: Foto: Shutterstock

O notável aumento do debate público sobre racismo em todo o país e a comoção social com casos explícitos de ataques a pessoas, como o do jogador Vini Jr., pouco tem se convertido em enfrentamentos reais ao problema que estrutura o país.

É o que pudemos observar no último dia 23, quando um substitutivo à revisão do Plano Diretor Estratégico (PDE) de São Paulo foi apresentado pelo Relator da Comissão de Política Urbana, Metropolitana e Meio Ambiente da Câmara Municipal, o vereador Rodrigo Goulart (PSD), tendo como base projeto anteriormente encaminhado pela prefeitura em 20 de março deste ano.

O PDE cria diretrizes e orienta o crescimento e desenvolvimento da cidade, mas o texto apresentado reitera a lógica racista que pautou, e ainda pauta, o planejamento urbano da capital paulista e as demais cidades do país, sem acolher as propostas para problemas e demandas apresentados pela sociedade civil – verdadeira destinatária da lei.

Desde junho de 2022, o movimento Mobiliza Saracura/Vai-Vai, composto por organizações do Movimento Negro, entidades e moradores do Bixiga – localizado na região central de São Paulo -, tem debatido o direito à memória e à permanência no bairro, um raro território negro bem localizado e com infraestrutura que resiste em uma das regiões mais brancas e ricas da cidade.

A articulação se constituiu em razão da descoberta de vestígios arqueológicos do Quilombo Saracura nas obras da futura estação “14 Bis” da linha 6 do Metrô, reafirmando a história da população negra transmitida tanto oralmente, pelas ruas do bairro, quanto registrada em jornais antigos, fotografias e literatura.

Desde então, o movimento vem se reunindo para exigir a preservação dos achados históricos, a observância dos procedimentos legais no âmbito do licenciamento da obra, a mudança do nome da estação para “Saracura/Vai-Vai” e permanência da população negra no território.

Isso porque, desde o final do século 18, quando a região abrigava um quilombo, o bairro é local de residência, trabalho, sociabilidade, produção cultural e organização social de uma diversa população negra, que atualmente varia entre a vulnerabilidade de cortiços e vida de classe média, ameaçada pelo avanço da especulação imobiliária.

No contexto da revisão do Plano Diretor, o Mobiliza Saracura/Vai-Vai apresentou quatro propostas de emendas ao texto encaminhado pelo Poder Executivo, duas delas que materializariam, na lei, dispositivos antirracistas, e outras duas mais voltadas a questões do patrimônio histórico e cultural, já que o Bixiga tem diversos imóveis e elementos urbanos tombados.

Quanto aos dispositivos antirracistas, a primeira sugestão de emenda coloca, entre os objetivos da Macroárea de Urbanização Consolidada, a equidade racial.

Nessa região da cidade, onde estão bairros como Cerqueira César, Jardim Paulista, Vila Mariana, Consolação e parte do Bixiga, cerca de 95% da população é branca, um verdadeiro gueto que concentra a melhor infraestrutura, os melhores equipamentos públicos e privados, os empregos que pagam melhor, as melhores escolas e hospitais.

Assim, ainda que tenha pouco efeito imediato, a emenda busca concretizar na lei diretrizes para o enfrentamento da segregação racial, de modo a promover a equiparação racial da população negra residente nas áreas consolidadas e com boa infraestrutura instalada ao perfil racial médio dos habitantes do município ou ao perfil existente no entorno das intervenções.

A outra emenda refere-se especificamente à área tombada do Bixiga e, no mesmo espírito que a anterior, condiciona a produção imobiliária do território à manutenção da população negra no bairro.

Como um bairro nascido de Quilombo e ainda reconhecidamente um território negro, a permanência da população local — de modo a preservar práticas culturais e modos de vida — passa necessariamente por criar instrumentos de garantia de permanência da população negra, como forma de conter o processo de embranquecimento e gentrificação no qual o desenvolvimento imobiliário se baseia.

À evidente relevância da área como patrimônio da história da população negra em nível nacional, em razão da presença viva do Quilombo Saracura e da Escola de Samba Vai-Vai, soma-se também a legislação municipal de patrimônio histórico e cultural.

A região faz parte do perímetro urbano protegido pela Resolução nº 22/2002 do CONPRESP, normativa que menciona de forma explícita: para que se possa preservar história e cultura associadas ao Bixiga e suas construções, é fundamental garantir a viabilidade da permanência da população residente no local – em especial a população negra.

Já com relação às questões de ordem cultural e de patrimônio histórico, as outras duas emendas apresentadas pelo Movimento buscam corrigir distorções da legislação urbanística no que diz respeito à definição e abrangência das Zonas Especiais de Preservação Cultural (ZEPECs), para incluir na proteção do zoneamento as áreas envoltórias, atualmente desconsideradas, o que enfraquece a proteção dos bens e elementos urbanos tombados.

Além disso, busca-se dar mais efetividade aos perímetros urbanos delimitados pela Resolução nº 22/2002 do CONPRESP, que passariam a ser enquadrados como Áreas de Urbanização Especial (ZEPEC-AUE), restringindo, assim, a voracidade do mercado imobiliário sobre o território.

No entanto, as propostas de emenda apresentadas pelo Movimento ao relator, dentro do prazo legal e antes da elaboração do substitutivo, não foram incorporadas e sequer foram levadas em consideração em outros dispositivos do projeto de lei.

Isso mostra que as 47 audiências públicas feitas ao longo do ano, mencionadas pelo Poder Executivo e pelo relator da revisão como provas do processo participativo, parecem, na realidade, atestar um processo de fachada, pois a grande maioria das demandas colocadas pela população e pela sociedade civil organizada que não representasse o empresariado da incorporação foi simplesmente ignorada.

Contribuições de diversas entidades de pesquisa especializadas na área não foram levadas em consideração, ao passo que cerca de 18 das 26 propostas apresentadas por incorporadoras foram atendidas.

Percebe-se, portanto, uma evidente violação a um dos princípios basilares do Estatuto das Cidades, o da gestão democrática, que se concretiza justamente por meio da participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano – até porque é essa mesma população a principal destinatária das políticas públicas urbanas.

Além disso, o texto substitutivo apresentado pelo relator, o vereador Rodrigo Goulart (PSD), traz significativas alterações nas diretrizes de ordenação do território e de desenvolvimento das funções sociais da cidade, representando um verdadeiro retrocesso, na contramão de reiteradas manifestações dos mais diversos setores da sociedade civil paulistana.

Nesse sentido, o projeto de lei amplia as áreas de influência dos eixos de transporte, o que incentiva a construção de prédios cada vez mais altos – potencializando o lucro do mercado imobiliário -, ao mesmo tempo que diminui a contrapartida social que esses empreendedores pagam ao município.

Dinheiro esse que poderia ser usado para urbanizar regiões periféricas e investir em programas habitacionais em bairros bem infraestruturados, mitigando os impactos sofridos pela população negra decorrente da discriminação no mercado de trabalho e pela desigualdade de renda disso decorrente.

Estudos mostram que a verticalização privada é pouco acessada pela população negra, de forma que o incentivo absurdo dado a esses produtos imobiliários terão como efeito o aumento da segregação racial na cidade.

Assim, o substitutivo reforça a vulnerabilidade da maior parte dos moradores da cidade, que não se enquadram no perfil tipo de consumidor dos novos apartamentos produzidos em massa.

É reiterada, mais uma vez, a naturalização do processo de desenvolvimento econômico enquanto processo de embranquecimento dos espaços urbanos, tendo como motor fundamental a expulsão da população negra de seus bairros.

Aos edifícios de pequeno porte, casario histórico tombado ou não, vilas, moradias coletivas, entre outras formas de organização espacial, social e de modos de vida, resta o destino certo da demolição, sem qualquer medida que atenda essas famílias e desnaturalize os guetos brancos.

Mais uma vez, as dinâmicas de transformação da cidade parecem estar baseadas em formas análogas à expropriação, pilhagem, e acumulação primitiva de capital, das quais os resultados segregacionistas conhecemos bem.

Importante lembrar, por fim, que, recentemente, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) reconheceu que o sítio arqueológico “Saracura/Vai-Vai” foi encontrado “no local onde existiu um dos maiores quilombos paulistas pré e pós abolição”, o que por certo atrai a responsabilidade do Município, nas figuras dos poderes executivo e legislativo, pela proteção e salvaguarda do local e dos bens histórico-culturais ali encontrados, incluindo a criação de mecanismos e instrumentos legais que garantam a manutenção da população negra, que é, ao mesmo tempo, titular e responsável pelos valores culturais que se busca preservar.


Sobre os/as autores/as:

*Gisele Brito é coordenadora da área de Direito à Cidades Antirracistas do Instituto de Referência Negra Peregum
*Victor Próspero é vice-presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil – São Paulo, e doutorando em história da arquitetura pela FAUUSP
*Luciana Araújo é jornalista, membra do Movimento Negro Unificado (MNU) e da organização da Marcha das Mulheres Negras
*Flávia Santana é arquiteta e urbanista, mestranda em planejamento urbano e regional pela FAUUSP
*Rafael Hime Funari é assistente jurídico do Tribunal de Justiça de São Paulo e especializado em direito ambiental e urbanístico

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