Revolucionária, Serena Williams dá adeus às quadras e deixa enorme legado

FONTEPor Beatriz Cesarini e Alexandre Cossenza, do UOL
Serena Williams em partida do National Bank Open, em Toronto, Canadá (Foto: 10/08/2022 REUTERS/Cole Burston)

Serena Williams já tinha avisado: ela é péssima em dar adeus e, por isso, não fez questão de planejar uma despedida à altura da maior tenista da história. A norte-americana apenas anunciou que sua última dança seria no US Open e se permitiu fluir pelo caminho natural do torneio.

Aos 40 anos de idade, ela entrou no Estádio Arthur Ashe com um vestido repleto de cristais – que ela mesma desenhou – e um par de tênis com 400 diamantes para vencer mais um jogo na primeira rodada do US Open. Ainda não era o momento do adeus.

O match point na carreira de Serena Williams foi hoje (2), diante da australiana AjlaTomljanovi, pela terceira rodada do torneio. A veterana lutou até o fim, mas sucumbiu diante da adversária por 2 sets a 1, parciais de 7/5, 6/7 (4) e 6/1. Ao final, foi aplaudida de pé pelo público presente e se emocionou com seu último ato.

A atleta deixará de competir, mas seu legado transcende o esporte e continuará presente. Ao enfrentar um universo machista, preconceituoso e elitizado como o tênis, Serena Williams abriu portas para outras mulheres e se tornou um ícone mundial. Com 98 títulos em simples, duplas e duplas mistas, sendo 23 troféus de Grand Slams e quatro ouros olímpicos, ela se tornou a maior tenista da história na era aberta.

Uma vencedora

Serena Williams fecha as portas para sua carreira considerada por muitos como a maior tenista da história. Nas simples, conquistou 23 títulos em torneios de Grand Slam — apenas um a menos do que a australiana Margaret Court, maior vencedora de slams da história incluindo homens e mulheres. Somando as conquistas em duplas e duplas mistas, são impressionantes 39 troféus. Ao longo de mais de 25 anos no esporte, passou 319 semanas como número 1 do mundo.

Ela também deixa o tênis como líder absoluta no ranking de premiação. Ao longo da carreira, acumulou US$ 94.618.080 (valor atualizado até o começo do US Open). A quantia é mais do que o dobro da segunda maior milionária da história do tênis feminino, que é sua irmã Venus. A Williams mais velha, hoje com 42 anos, embolsou US$ 42.312.453 em torneios. O resto do top 5 feminino ainda inclui a romena Simona Halep (US$ 40.123.437), a russa Maria Sharapova (US$ 38.777.962) e a dinamarquesa Carolina Wozniacki (US$ 35.233.415).

Uma carreira das mais laureadas do esporte, mas que não pode ser resumida a taças, medalhas e estatísticas. Mais do que uma lista de conquistas e imagens indeléveis, Serena deixa um legado incomparável. Ela e Venus — é realmente difícil separá-las em certos quesitos — tomaram de assalto e mudaram definitivamente o tênis feminino, adicionando uma potência jamais vista, mas sem deixar de trabalhar os muitos outros recursos exigidos pelo esporte.

E mais do que isso: Serena, Venus e seus pais mostraram que é possível e vale a pena sonhar. Sem formação ou histórico na modalidade, Richard e Oracene criaram duas campeãs que saíram de uma região de classe média baixa na cidade de Compton, na Califórnia, e conquistaram o mundo. Quando Richard afirmou que tinha em casa as duas próximas Michael Jordans do esporte, ele não estava brincando.

Serena transcende o esporte

Durante toda sua carreira no tênis, Serena e sua irmã Venus tiveram de enfrentar muito mais do que partidas longas e difíceis. Além das quadras, ambas as atletas bateram de frente contra o machismo e o racismo em um esporte massivamente praticado por homens brancos.

Não bastaram os inúmeros títulos na carreira. Em entrevista à revista Vogue em 2020, Serena afirmou que “recebeu menos e foi desvalorizada” como mulher negra no tênis, mas nada a fez baixar a cabeça.

A atleta boicotou o torneio tradicional de Indian Wells por 14 anos após sofrer injúrias raciais pela torcida no WTA de 2001 e ficar chorando por horas no vestiário. Em 2018, Serena apontou sexismo ao perder um ponto e ser multada por quebrar sua raquete no US Open.

“Eu tenho orgulho de representar as belas mulheres negras. Talvez isso (o racismo e sexismo) não melhore a tempo para mim, mas alguém na minha posição pode mostrar às mulheres e todas as pessoas que temos uma voz, porque Deus sabe que eu uso a minha”, exaltou Serena.

King Richard

Will Smith, Demi Singleton e Saniyya Sidney interpretam Richard, Serena e Venus Williams em ‘King Richard’ (Foto: Warner Bros. Pictures/Divulgação)

O grande responsável por persistir e conseguir apresentar os dons de Serena e Venus ao mundo foi o pai delas: Richard Williams. A história de um homem obstinado pelo sucesso das filhas negras em um esporte massivamente praticado pelos brancos virou filme de Hollywood, o “King Richard: criando campeãs”. Will Smith interpretou o ex-treinador e venceu o Oscar deste ano.

O engajamento em lutas contra o racismo e o entusiasmo do ‘King’ Richard é um dos aspectos mais fiéis do filme. Em entrevista recente ao UOL Esporte, o brasileiro Fernando Meligeni, que conviveu com a família, conta que o pai das tenistas era apelidado de ‘homem cartolina’ devido aos cartazes que exibia nos torneios desde a chegada à sala dos jogadores, convidando para o show das Williams.

“O pai era um cara que pegava o cartaz e sempre colocava duas frases. Você estava entrando no US Open e via ele na entrada da sala dos jogadores com ‘Welcome to the Williams Show’ (Bem-vindos ao show das Williams). Outra frase que eu achava demais era a luta dele pela igualdade de prize money (premiação), de wild card (convite) para negros e brancos”, contou Meligeni.

“A gente chamava ele de ‘homem cartolina’. E elas já ganhavam Grand Slam, não é que a menina era 80 do mundo. Elas já eram relevantes e ele se prestava a olhar para as meninas que estavam chegando e lutar por uma causa”, completou.

Entender a hora de parar

Serena Williams e Olympia: mãe e filha adoram combinar roupa, hábitos e até poses (Foto: Instagram/ Serena Williams)

Serena Williams não consegue falar a palavra aposentadoria nem ao marido Alexis Ohanian. O tênis é muito importante na vida dela, mas ela entendeu que precisaria deixar a rotina competitiva se quisesse aumentar sua família. Esse é o desejo da atleta que é mãe de Olympia, de quatro anos.

A multicampeã venceu o Aberto da Austrália em 2017 quando estava grávida de dois meses. No parto, Serena sofreu embolia pulmonar e passou por uma cirurgia para a retirada de um coágulo. Superando as dificuldades, ela retornou às quadras em 8 de março de 2018, em Indian Wells, no Dia Internacional das Mulheres.

Meses depois, em julho de 2018, a atleta lamentou ter perdido os primeiros passos da filha, porque estava treinando para voltar ao ritmo de antes. Foi difícil. No fim da temporada, a Associação Feminina de Tênis (WTA) decidiu atualizar as regras a fim de oferecer maior flexibilidade às mães. Antes, uma gestação era tratada da mesma forma que uma lesão. Agora, a atleta que se torna mãe tem até três anos para se beneficiar de uma posição especial no ranking e ser admitida em torneios. Serena mais uma vez fez história.

É de se entender. Depois de tudo, a tenista quer ter uma gestação mais tranquila e quer curtir ao máximo sua família.

Mulher de negócios

Serena pode vir a sentir falta do tênis, mas certamente não faltará competição em sua vida. Já faz algum tempo que a americana frequenta o mundo dos negócios, onde o ambiente é tão ou mais agressivo do que no circuito mundial. A ex-número 1 do planeta passou os últimos 4-5 anos planejando a formação da Serena Ventures, uma empresa de venture capital que investe em companhias que têm boas ideias, mas precisam de dinheiro para levá-las adiante. A empresa já captou US$ 111 milhões de investidores.

“Eu estava em Miami, em uma conferência do JP Morgan, e Jamie Dimon estava no palco conversando com Caryn Becker. Ela é CEO da Clear e disse que menos de 2% de todo dinheiro de VC [venture capital] ia para mulheres. Estamos falando de bilhões de dólares, possivelmente até trilhões. Achei que ela tinha se confundido. Falei com ela depois, e ela disse ‘É verdade. Menos de 2% do dinheiro de VC vai para mulheres.’ Eu já tinha investido em Masterclass e outras empresas que estavam indo muito bem. Eu pensei ‘Ok, a única maneira de mudar aquele número, aquela estatística, era ter gente como eu, uma mulher negra, passando cheques grandes. Homens gostam de passar cheques para outros homens. Mulheres gostam de dar cheques para outras mulheres. Para mim, precisamos de mais mulheres em grandes palcos, dando grandes cheques”, contou, recentemente, em um evento para investidores em São Paulo.

Quatro anos depois desse episódio, a Serena Ventures nasceu, captando US$ 111 milhões. O número não é por acaso: “gosto do número 1.”

“Eu sabia que para erguer essa empresa, isso tinha de ser feito da maneira certa, e tinha que ter muito sucesso. Eu também sabia que se fosse levantar dinheiro, eu queria que as pessoas vissem o que eu já tinha feito, meu histórico, o que eu era capaz de fazer e como eu podia montar uma equipe e ter sucesso. Então fizemos isso quatro anos depois porque eu queria ter certeza que eu sabia de tudo sobre o negócio. E decidimos buscar US$ 111 milhões para o nosso primeiro fundo. Foi empolgante, e isso nos permite continuar a investir em mulheres e fintechs.”

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