Domingo era dia de refresco, mas o suco vinha morno” (Reza de Mãe, p. 59)
Por Ana Flávia Magalhães Pinto – enviado para o Portal Geledés
Ana Flávia Magalhães Pinto
Todos os dias, Vingança traveste-se de Esperança, toma lá uma talagada de café e se lança como protagonista de uma sequência dinâmica e monótona de ações que falam da vida e do seu inverso. Vingança tem seus múltiplos sentidos e feições. É gente homem, mulher, criança, jovem e pessoa que carrega o peso de ter visto muito acontecer, mas pouca coisa mudar.
Vingança é a desforra de diariamente sobreviver à guerra de entrar no busão/trem lata de sardinha/navio negreiro, para encarar o esculacho do subemprego e da subalternidade; de aprender a beber pouca água e segurar a bexiga para suportar a viagem de horas até o centro da cidade ou a volta de lá; de engolir a humilhação sofrida “quando perguntou se ia receber sua paga”; de chegar em casa, encontrar a filha já dormindo e mesmo assim contar histórias emboladas, pedir proteção à santa para que os “esgotos” não alcancem a pureza da menina e, sem sentir, desabar no sono…
Vingança é também encarar torcidas rivais e se firmar ponta de lança em torneio de futebol de bairro no fim de semana; trocar solidariedade com outras iguais na fila da visita e não sucumbir após as “três cocorinhas”; é matar e também morrer para ridicularizar a quem tanto ajudou a rebaixar outras vidas; é comemorar uma conquista besta, mas grande porque coletiva e sair pela quebrada juntando pau para fazer fogueira na companhia do pequeno parceiro.
E Vingança boa é ainda transformar tudo isso em sustento para a prosa, desafiar modelos narrativos e colocar a gente negra e periférica no centro da escrita literária, com suas falas, seus medos, sonhos, felicidades e frustrações. E não se trata apenas de temática, coisa de interesse de quem alimenta fascínio por um cotidiano alheio, que cabe em determinadas páginas dos jornais, mas segue estranho aos catálogos de livros de literatura, sobretudo se escritos por quem, de tanto naturalizar, desnaturalizou essas e outras cenas e histórias.
Eis o “troco” passado por Allan da Rosa em seu novo livro Reza de Mãe e outros contos, cuja primeira reunião de lançamento aconteceu na Ação Educativa, no último 17 de outubro, e que já foi recebido em outros espaços de cultura negra de São Paulo, como a Aparelha Luzia, o Núcleo de Consciência Negra e o GRES Quilombo. A responsabilidade da publicação foi confiada e assumida pela Editora Nós, empresa criada ano passado pela jornalista e escritora Simone Paulino, com foco em projetos literários inovadores. Não por acaso, é assim que se expressam seus anseios editoriais: “Vamos ser plurais, democráticos, inclusivos, afetivos. Princípio este que se reflete também na concepção da marca – uma palavra única, de três letras, mas indivisível, com um centro aberto no qual as pessoas e as ideias poderão entrar”. De fato, será muito importante que isso aconteça e permaneça!
Pois marcando a estreia do autor na prosa de ficção, as 104 páginas que compõem o volume são o primeiro resultado concentrado das andanças que o escritor Allan da Rosa têm feito por veredas outras que as da poesia. Historiador, angoleiro, mestre e doutorando em Educação pela Universidade de São Paulo (USP), homem negro, morador do Taboão da Serra e caminhador do mundo, ele havia publicado Vão (Edições Toró, 2005); Morada, com Guma (Edições Toró, 2007); Da Cabula (Prêmio Nacional de Dramaturgia Negra, 2014); Zagaia (DCL, 2007); A Calimba e a Flauta, com Priscila Preta (Capulanas, 2012); e Pedagoginga, Autonomia e Mocambagem (Aeroplano, 2013).
Reza de Mãe, aliás, mais do que um novo caminho, parece-me um adensamento desse esforço reflexivo que vem de alguns anos, em que literatura, educação, ancestralidade, arte e história são postos em diálogo, a fim de garantir a conversa com quem não pode ficar de fora dela. Sem cair num didatismo simplificador, os quinze textos mantêm estreita relação com princípios da própria Pedagoginga, já que: “Lâmina e dádiva que atravessa a Pedagoginga é sim bailar [nas nossas] contradições, para que nossa compreensão não se mutile e não nos enforque na hipocrisia, para que não anunciemos liberdade mas oferecendo cabresto” (Pedagoginga, Autonomia e Mocambagem, p. 17). Parente próxima da Pretagogia, a escrita de Allan da Rosa é dessas inúmeras elaborações intelectuais que escapam à matriz limitada que sustenta a convicção de sujeitos como Marco Antonio Villa, que se só conseguem tratar como desatino e heresia aquilo que não reflete si mesmos.
Escritos com tinta batizada de cerol, as tramas de palavras de Allan da Rosa grudam e cortam interpretações rasteiras a respeito das pessoas, famílias e espaços da chamada periferia, que para muitas/os de nós é o centro do mundo, o pior e o melhor dele. Os contos dialogam entre si não apenas por meio de personagens que aparecem em diferentes histórias e situações, mas também tendo como referencial as possibilidades e impossibilidades de proteção, afeto, contato e cuidado entre gerações de pessoas representadas. Nesse sentido, justamente por garantir a seus sujeitos ficcionais características humanas, não espere encontrar nas páginas do livro um equilíbrio acalentador entre dor e alegria. Como na vida das pessoas de carne e osso, não é sempre que se tem a mesma quantidade de arroz e feijão no prato. Mas o fato é, tal como os tais córregos poluídos que ainda margeiam certas sequências de casas, de que gosta de falar Allan, as pessoas seguem, enquanto não desaparecem.
Reza de Mãe carrega, portanto, um forte potencial didático e pode muito bem servir nas salas de aula como um recurso outro que as tão importantes letras e músicas de rap e outros versos da literatura afro-brasileira contemporânea. Afinal, mesmo sendo a produção e a publicação de poesias menos interditadas, não é de hoje que há investimentos na escrita negra em prosa. Uma medida desse empenho se acompanha nas edições dos Cadernos Negros dedicadas a isso desde os anos 1980. Sem falar das obras individuais de escritores/as como Oswaldo de Camargo e Conceição Evaristo, cujo o livro Olhos d’Água conquistou o terceiro lugar do 57º Prêmio Jabuti (2015) na categoria Contos e Crônicas. De tal sorte, em tempos de esforços de negação da legitimidade de temas, perspectivas e pessoas incomuns ao alegado centro, é hora de investir na ampliação de nosso conhecimento pelas escritas negras e periféricas. Fica, portanto, o convite para se chegar à nova criação do capoeira Allan da Rosa.
Fonte: Conversa de Historiadoras https://conversadehistoriador