Ricos recebem transferências permanentes, enquanto pobres dependem das transitórias

Sensação de ressentimento das injustiças sociais catalisa políticas populistas que destroem o crescimento

FONTEPor Michael França, da Folha de São Paulo
Pessoas buscam restos de alimentos na feira no Jaçanã, em São Paulo (Foto: Rubens Cavallari)

Muitas coisas não estão indo bem no atual estágio do capitalismo. A mobilidade social em vários lugares está retrocedendo; diversas empresas estão usufruindo de um amplo poder de mercado e aumentando a influência na política; os mais ricos estão se apropriando de uma parcela cada vez maior da riqueza construída pela coletividade e o contexto familiar tende a se sobrepor ao esforço individual na determinação dos resultados alcançados nas vidas da maioria dos cidadãos.

Nas últimas décadas, aqueles que se encontravam fora do topo da pirâmide social ficaram, progressivamente, para trás. O avanço tecnológico está excluindo trabalhadores com baixa escolaridade das atividades produtivas e ampliando o prêmio salarial dos que possuem alta qualificação. Em vários países, a renda do trabalho da classe média permaneceu estável, enquanto a dos 1% mais ricos disparou.

Entretanto, a lacuna educacional entre as classes sociais não consegue explicar sozinha a ampliação do profundo fosso que separa os ricos dos demais. Eles também recebem heranças e outras transferências permanentes de recursos de gerações anteriores e do Estado. Ao mesmo tempo, enquanto muitos batem no peito glorificando o mérito, parcela considerável de seus patrimônios foi adquirida pelo legado do trabalho de terceiros e, não raramente, por meio de algum conluio com o poder público. Desse modo, no topo da distribuição de renda, expressiva parte do dinheiro não é derivada da renda do trabalho, mas provém de heranças e reinvestimentos.

Essa ampliação das disparidades de renda tem efeitos colaterais prejudiciais no tecido social. Ela pode interferir negativamente na ascensão de pessoas talentosas enquanto propicia consideráveis vantagens para certos ricos que, além de medíocres, estão poucos interessados em trabalhar para o bem comum. Por sua vez, a sensação de ressentimento derivada das injustiças sociais tende a catalisar políticas populistas que destroem o crescimento e pode se tornar uma poderosa fonte de agitação social.

As disparidades também interferem no processo político, gerando demasiado poder de influência para as elites e retroalimentando as desigualdades. No final do dia, o que move o mundo é o autointeresse. As elites podem até ter a intenção de criar intervenções que ampliem as oportunidades dos demais, porém, no meio desse processo, dificilmente se absterão de ampliar suas vantagens, ou, até mesmo, acabar com alguns privilégios herdados no percurso da história.

Além disso, existe uma ilusão tecnocrática que faz com que muitas pessoas inteligentes acreditem que poderão acabar com a pobreza apenas com soluções técnicas desenhadas por aqueles que sempre viveram em ambientes de alta renda. Entretanto, a visão de mundo pode interferir na concepção de políticas públicas que realmente vão impactar a vida do cidadão.

O mundo é complexo. Parte do conhecimento humano vem das vivências. Ações individuais e coletivas respondem não somente aos incentivos, como também aos costumes, crenças e superstições.

Sem mudanças profundas na forma de funcionamento da sociedade brasileira, é provável que os mais ricos continuem recebendo transferências permanentes de renda de outras gerações, enquanto aos mais pobres, restam políticas transitórias e, geralmente, pouco efetivas.


Michael França – Ciclista, doutor em teoria econômica pela Universidade de São Paulo; foi pesquisador visitante na Universidade Columbia e é pesquisador do Insper.

-+=
Sair da versão mobile