“Antes eu vejo essas almas despidas e por todos os lados.
Eu vejo o funcionamento de suas entranhas.
Eu conheço os seus pensamentos e elas sabem que eu conheço.
Este conhecimento as torna ora envergonhadas, ora furiosas.”(W.E. Du Bois)
Nesta fase aguda da pandemia, me deparei com um “protesto” contra o lockdown, a favor da ditadura e de um tal “mito”, em Curitiba, onde resido.
Fiquei intrigada por poucos segundos com aquele nível de abstração política capaz de comprometer o menor grau de racionalidade de tantas pessoas. A dúvida logo passou quando me recordei do que W. E. B. Du Bois cunhou como “the public and psychological wage”, aqui chamado apenas “salário psicológico”, conforme a tradução de Silvio Almeida.
Michele Alexander trata do assunto em A Nova Segregação e se vale do exemplo de Malcon X quando este condenou o homem branco e o declarou como inimigo, elucidando que estava a se referir à ordem branca patriarcal que caracterizou a escravidão e o apartheid estadunidense instituído pelas leis Jim Crow. Alexander assim remete à ideologia do privilégio branco como fundamental para a manutenção das hierarquias raciais e sociais e, assinala que nos Estados Unidos, de maioria populacional branca, a luta pelos direitos civis terminou por afrontar o sentimento de parcela da população branca pobre, que mesmo economicamente longe de uma minoria branca bem sucedida pelos regimes de exploração, se mantinha muito distante dos negros pelo signo do pertencimento racial.
Segundo Du Bois, por Alexander, essa distinção ideológica foi capaz de convencer a classe trabalhadora branca a priorizar interesses de status racial em vez de interesses econômicos comuns aos dos negros, o que favoreceu um sistema de castas que beneficiava apenas marginalmente pessoas brancas pobres e que fora destruidor para afro-americanos. Essa teria sido a liga de uma relação econômica vertical entre brancos ricos e pobres e fundamental na fragmentação de classe entre pobres negros e brancos. Foi dessa forma que o salário psicológico estampou o rosto negro na moeda do fracasso americano e forjou a reconstrução por meio da segregação legal de acordo com os interesses da elite sulista.
Ainda segundo Alexander, a partir da conquista dos direitos civis e do advento de ações afirmativas essa fratura seria remexida, pois colocara questões de raça e classe em novos patamares de disputa das oportunidades sociais.
O fato é que ressentimentos e frustrações articulados pelo racismo tem sido historicamente bem aproveitados por elites econômicas na sustentação da ordem hegemonicamente branca e patriarcal de seus privilégios. Nessa tessitura política se mantém hierarquias de raça e classe com considerável conforto institucional e jurídico.
No Brasil, embora as dinâmicas segregacionistas não tenham obtido suporte legal tão explícito no pós-abolição, suas estratégias foram dotadas de sofisticação tão ou mais eficiente no sentido de marginalizar uma majoritária população não branca. A articulação entre a ideologia da democracia racial, com seu dispositivo da mestiçagem, e o projeto político eugênico de branqueamento fez do racismo um processo estruturante de subjetividades muito competente no construto de um inconsciente social amarrado em fantasias e opressões negadas.
Dados históricos angariados por Heloisa Starling apontam que entre as décadas de 1920 e 1930, o Brasil teve a maior seção fora da Alemanha do Partido Nazista e o Paraná foi o local onde a bandeira integralista de mesma inspiração fascista mais arregimentou militantes.
Projetos nacionalistas autoritários são historicamente mobilizadores de sentimentos em torno de ideologias estruturantes de seus poderes despóticos em prol de ordens econômicas vigentes, isso porque como bem assinala Almeida, a ideologia é a representação da relação que se estabelece com as relações concretas e nesse desiderato a reconfiguração de eixos de pertencimento é fundamental. E, ainda, de acordo com Paul Giroy, a biopolítica nacionalista se caracteriza pela integridade nacional e racial que se constrói a partir da ideia de integridade masculina, hierarquia de gênero e controle dos corpos femininos em que a família é o eixo de operações tecnológicas que conectam os fatores de pertencimento à noção de pátria.
Na perspectiva psicanalítica, Marcelo R. Pereira, identifica o familiarismo brasileiro como uma espécie de resíduo incomum que é manejado fundamentalmente para conter anseios por justiça social, seguindo assim como “bastião de coronelismos políticos, gestões de governo, fundamentalismo religioso, melodramas midiáticos e segregações sociais”.
Despontam aí as afinidades do atual governo brasileiro e o do ex-presidente americano Donald Trump. Ambos tributários contemporâneos de uma recompensa psicológica pelos fracassos naturais das dinâmicas do modelo econômico neoliberal e que se viabilizaram a partir de discursos que recompõem o conforto psíquico de uma identidade branca recalcada em suas pulsões de morte e sexuais.
Dentro de um contexto de escassez econômica, que não permite manutenção de tantos privilégios com razoável inclusão de minorias políticas, uma recompensa psicológica que alinhe trabalhadores viáveis, especialmente como empreendedores de si próprios nas novas escalas do capital, a uma elite econômica sustentada pela política assassina de estado emerge como plataforma essencial.
Sem precisar oferecer quaisquer programas reais de desenvolvimento socioeconômico em face da desigualdade e escassez, mas apenas vetores ideológicos para alívio psicológico do fracasso por meio da expiação do outro, esses projetos políticos dobraram a aposta nos ressentimentos sociais causados pelas crises econômicas e empreenderam ações de desmonte dos mínimos alicerces institucionais de proteção social.
Não custa lembrar que a carga tributária brasileira, substancialmente incidente sobre o consumo e salários, é equivalente à de países desenvolvidos, ao passo que nesses países há uma maior fatia de tributação sobre renda e patrimônio dos mais ricos, o que reflete em maior grau de efetividade dessas políticas na distribuição dos recursos públicos. Já no Brasil, com participação tributária sobre o PIB muito alta e uma fatia que onera os mais ricos muito baixa, significa dizer que a maior parte da riqueza do país não é produzida pelos mais ricos, mas pela incidência tributária sobre os mais pobres, camada em que as pessoas negras sempre estiveram na linha mais baixa da base piramidal.
Nesse contexto, a superexploração do trabalho e as escravidões modernas não são meras distorções, mas parte fundamental de um modelo econômico. Não por acaso o trabalho doméstico segue tendo elevada importância socioeconômica. Por outro lado, o PIB brasileiro, mais próximo do nível dos países subdesenvolvidos da América Latina, torna evidente que esse quadro de exploração favorece outros interesses geopolíticos, uma vez que coloca o país em círculo vicioso que impede melhores níveis de crescimento e de disputa no mercado internacional.
É assim que, seguindo o que Achille Mbembe descreve como a lógica do curral na organização das multiplicidades, distribuindo hierarquias e repartindo-as em espaços mais ou menos estanques, sob um cenário familiar, com uma camisa da seleção brasileira e esbravejando discursos psicologicamente recalcados, se executa a necropolítica atualmente no Brasil, a baixo custo para os coronéis e senhores de sempre.