Rio de janeiro, 8 de maio de 1945. No mesmo momento em que a população festejava pelas ruas o fim da II Guerra Mundial, o elenco da peça o Imperador Jones subia pela primeira vez ao palco do teatro Municipal.
Rio de janeiro, 8 de maio de 1945. No mesmo momento em que a população festejava pelas ruas o fim da II Guerra Mundial, o elenco da peça o Imperador Jones subia pela primeira vez ao palco do teatro Municipal. Dentro da casa de espetáculos mais imponente da cidade, podia se escutar os tiros em festejo à vitória dos Aliados. O espocar das balas se confundia com os tiros de festim que os atores do teatro experimental do negro (ten) reproduziam numa das cenas da peça do dramaturgo afro-americano eugène o´neil. Era uma noite atípica! Assim como conflitos bélicos mundiais não acontecem e terminam todos os dias, artistas negros subindo ao palco de um teatro, nos anos 40, para atuarem como protagonistas numa peça com temática e personagens negros, era algo absolutamente inédito. E foi exatamente naquele dia, que uma jovem linda e majestosa, debutaria no mundo das artes dramáticas: Seu nome? Ruth de Souza
O ingresso se daria pelas mãos do dramaturgo e ativista negro abdias nascimento, criador e dirigente do Ten, grupo de teatro amador, fundado em 1944, e que tinha como um de seus principais objetivos interferir na estética e na dramaturgia em vigor no meio teatral, isso numa época em que personagens caricaturais eram interpretados por atores brancos pintados com tinta preta e grandes artistas negros, como Grande Otelo, eram explorados em situações cômicas. Ruth de Souza foi uma das atrizes do Ten que acreditaram ser possível reverter esse quadro. Com a contribuição de seu talento, a dramaturgia brasileira passaria a olhar, forçosamente e com mais atenção, para os artistas afro-brasileiros. Mas a ideia de ser atriz havia surgido na cabeça da moça bem antes de ela chegar ao Rio de Janeiro aos oito anos de idade. Até então, Ruth vivia em Minas Gerais, no seio de uma família humilde. A mãe, dona Alaíde trabalhava como lavadeira na casa de importantes famílias para sustentar os filhos. Mas era ela quem levava Ruth ao cinema e ao teatro, além de conversar com a menina sobre música e incentivá-la a “sempre andar bem-vestida, bem calçada e bem penteada”, como a atriz gosta de frisar. “Ela era uma mulher de sensibilidade incrível”, recorda-se, com carinho. Com isto, dona Alaíde dava a senha para a filha driblar as dificuldades provenientes da origem racial e de classe social. Com tamanho estímulo, o fato de ser negra e pobre num país que tenta maquiar seu racismo, não abalou o desejo de Ruth de Souza de consagrar-se nos palcos e estúdios de filmagem. “A raça negra é uma raça bonita, uma raça como outra qualquer. Por que existir essa diferença, então? Na minha cabeça eu pensei: eu sou um ser humano, que quer fazer isso (ser atriz). Posso fazer ou não. Mas tenho o mesmo direito de qualquer cidadão brasileiro, de qualquer ser humano”, afirma.
Pé na estrada
Desde que entrou no municipal na pele de uma escrava, lá se vão 65 anos, tempo em que a mineira Ruth de Souza usou para construir uma carreira repleta de atuações impecáveis e elogiadas, e na qual se casam, invariavelmente, sucesso e reconhecimento de público e crítica. Inúmeros filmes, novelas, minisséries e peças teatrais. Um conjunto de realizações que são o orgulho maior de “dona Ruth” – Como a atriz é respeitosamente chamada. Do alto de seu sucesso, talento e profissionalismo, Ruth de Souza parece não valorizar títulos como o de diva ou primeira-dama da dramaturgia brasileira. “Além de um tanto quanto engraçado, também acho pouco apropriado. Eu não sou nem coadjuvante nem uma estrela, eu sou uma atriz!”, diferencia. “Então, como atriz, posso fazer qualquer tipo de papel: grande, pequeno, de feia ou bonita, de glamurosa ou não. Enfim, sou uma atriz que tem muito amor pelo que faz.”, define-se. Rótulos e títulos à parte, o fato é que, já há um bom tempo, as reverências chegam de tudo quanto é lado. Fora o número de biografias publicadas, convites para participa de projetos envolvendo dramaturgos – negros ou não -, que buscam na comprovada competência da atriz uma chancela para seus trabalhos.
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“Eu me chamo Ruth{/xtypo_quote}
Quando Ruth de Souza foi trabalhar na companhia cinematográfica Vera Cruz, criada em 1949 e ativa até os dias de hoje, o diretor e “amigo muito querido”, Abílio Pereira Almeida foi categórico quanto à estética da atriz para interpretar um personagem negro pra lá de estereotipado. “Você tá muito magra para ser uma empregada de fazenda – ele me disse. na época eu pesava 45 quilos. O personagem chamava-se bastiana. aí no segundo filme, fui chamada de novo e o personagem tinha o mesmo nome. Eu, então, perguntei a ele: Abílio, por que o personagem chama bastiana, de novo? Ele respondeu: porque toda negra se chama Bastiana. Eu disse: não! Eu me chamo Ruth.”
Coisas de casa (de cima para baixo) reprodução do cartaz do Teatro Experimental Negro, com a atriz e Abdias Nascimento; Ruth clicada pelo fotógrafo José Medeiros; Caricatura da atriz pelo o artista Lan |
A cena ficou na memória da atriz, cuja trajetória é considerada atípica por muitos artistas. São atrizes e atores negros, sobretudo, que tiveram ou vêm tendo suas carreiras podadas pela falta de oportunidades de trabalho e por personagens estereotipados. Além de darem vida a empregadas como as “sebastianas” vividas por Ruth, se revezam em papéis de marginais, escravos, mulatas fogosas, motoristas e todo e qualquer personagem que caiba dentro dos estereótipos que existem na sociedade sobre os negros. Isto, evidentemente, quando encontram espaço no mercado de trabalho para atuarem.
Ruth também viveu algumas escravas na carreira, mas tem consciência de ter sido privilegiada por não ter trilhado o mesmo percurso de tantos outros artistas negros. “Eu ainda tive sorte e privilégio de fazer no teatro papéis de pianista, juíza, professora. Também fiz todo tipo de personagem nas novelas”, avalia. Como primeira atriz negra a fazer teatro – clássico, inclusive -, ela costuma assegurar, com firmeza, que não enfrentou, até hoje, qualquer tipo de preconceito devido à sua raça. o escudo contra a discriminação, segundo ela, é formado por três “armas” importantes e poderosas: “a educação, a postura e o comportamento. acho que é estupidez ter preconceito de raça dentro de um Brasil lindo como o nosso. somos bonitos porque somos misturados”, acrescenta.
Exceções e armas à parte, as limitações que um ator negro encontra na carreira artística não são surpresa para uma profissional que integrou o Teatro Experimental do Negro. Uma escola e tanto, no que se refere à conscientização sobre as disparidades de oportunidades e de direitos entre negros e não-negros no Brasil. “São poucos os escritores negros de novela ou teatro. Todos os papéis, sem grandes exceções, o do mocinho, da mocinha, assim como os diretores e os escritores, são brancos. a visão que algumas dessas pessoas têm do negro, e acredito que não por maldade, é sempre a mesma: de subalternização ou escravidão”, explica a atriz, referindo-se à imagem que foi negativamente construída num passado recente e permanece no imaginário social do país. Mas mesmo consciente das condições em que os artistas negros lutam para conquistar um lugar ao sol, no ainda muito elitizado meio artístico brasileiro, Ruth diz que nunca se colocou na posição de vítima. E mais: Destaca que sempre batalhou para ser a melhor.
{xtypo_quote}Todos os papéis, sem grandes exceções, o do mocinho, da mocinha, assim como os diretores e os escritores, são brancos. A visão que algumas dessas pessoas têm do negro, e acredito que não por maldade, é sempre a mesma: de subalternização ou escravidão{/xtypo_quote}
Sensibilidade crítica
A postando na força do mérito e do talento, ela convive com os jovens artistas afro-brasileiros. Ensina, estimula e reconhece o valor profissional destes. Participa de projetos em que divide a cena com os iniciantes, dando seu apoio a novos atores e diretores de cinema, TV e teatro. E orienta as pessoas em geral. “Independentemente de ser negro, branco ou azul; ou chinês ou japonês, digo a elas para não ficarem tolhidas diante do comportamento alheio e que batalhem para obterem conquistas. Sejam elas de ordem pessoal ou profissional. Se você chegar num lugar e disser: eu quero fazer isso, vá preparada para levar um não! A vida dá muito não mesmo. Mas vá também preparada para receber um sim. Mas nunca vá tolhida, não vá de cabeça baixa. Sua postura é muito importante. Daí, conforme seu comportamento, muitas portas se abrem”, ensina, do alto de uma carreira marcada pela iniciativa e a ousadia.
Aliás, foi fora de nossas fronteiras que a atriz, aos 22 anos, descobriu o cooperativismo, a solidariedade e o profissionalismo dos afro-americanos. Ruth seguiu para os Estados Unidos por meio de uma bolsa de estudos concedida pela Fundação Rockfeller para aprender direção de cena, e outras modalidades relacionadas ao palco. Aprendeu dramaturgia, iluminação, som, vestuário, até a colocar prego em cenário. Por lá, estagiou inicialmente na Karamu House, em Cleveland, e depois na Howard University, instituição frequentada por negros ricos. “Acho os negros americanos unidos entre si. Isto é algo maravilhoso. Faz com que caminhem juntos. Seria ótimo se os negros brasileiros também fossem desse jeito”, costuma dizer, em tom de lamento.
Muitos anos de profissão, uma sensibilidade aprimorada pela convivência com grandes diretores de cinema, TV e teatro e pela própria atuação em muitos filmes, peças teatrais, telenovelas e minisséries, deram a ela uma enorme capacidade e sensibilidade crítica. Composição de personagens, cenas, roteiros, scripts… Sobre tudo ela comenta, do alto de sua grande experiência. E para alguém tão criteriosa, quais seriam seus melhores trabalhos? Depois de relutar, fala sobre alguns dos papéis pelos quais se apaixonou. “Oração para uma negra foi um trabalho que eu gostei muito de fazer no teatro. Já na TV, gostei de ter atuado emOssos do Barão (1973), novela dirigida por Régis Cardoso. E no cinema, gostei muito de interpretar meu personagem em Filhas do vento (2004), porque a história nasceu aqui dentro da minha casa com o diretor Joel Zito Araújo”, diz a atriz, que muda o tom da voz ao fazer uma crítica pela má divulgação da fita. “Foi um filme exibido no mundo todo. Passou na Índia, no Museu de Arte Moderna (Moma) de Nova York. Lá nos Estados Unidos, por exemplo, o filme foi noticiado. Mas aqui não teve a repercussão esperada”. Ela atribui a responsabilidade pela falta de apoio e interesse pelas artes também ao público negro. “Este filme, com elenco negro, produção negra e uma história muito bonita, ganhou nove prêmios, mas não teve apoio nenhum dos próprios negros. Os negros não vão ao cinema assistir a filmes. Não vão, às vezes, nem com entrada franca, mas acredito que se tivessem apoiado, teria sido uma outra história”, opina.
Dedicação à carreira
Na aconchegante sala de estar do apartamento na zona Sul do Rio de Janeiro, além dos vários livros, revistas e quadros, chama atenção um pequeno altar com a imagem de Nossa Senhora da Conceição, uma das santas de devoção da atriz. Católica praticante, ela não esconde o lado de sua personalidade mais ligado à religiosidade. Ruth de Souza diz ser bastante rezadeira. Reza pelo país, pela família, por ela própria, e se emociona ao contar uma história em que usou sua fé em Nossa Senhora Aparecida – outra santa de quem é devota – para tentar ajudar uma mulher desconhecida. “Eu me lembro do dia em que me deram a imagem desta santa e fui benzer. Tinha uma moça negra com o olhar triste, sozinha, vestida de noiva na porta da igreja.Eu nunca esqueci aquela cena. Entrei, o padre estava benzendo a imagem na igrejinha antiga, ainda não existia aquela basílica, maior, e, lá atrás, estava a imagem de Nossa Senhora que foi achada.
Aí eu falei: Ai, minha nossa senhora! Ajude aquela moça, coitada, que está lá sozinha vestida de noiva! Quando eu saí, já estavam chegando umas pessoas para ajudá-la. Eu nunca me esqueci daquela moça, rezei pra ela e não sei que fim levou aquela mulher que eu nem conhecia. Eu acho que ela deve ter tido sorte”, conforma-se. Se a atriz compadeceu-se da moça solitária no altar, nem por isso arrependeu-se de nunca ter se casado, tendo se dedicado exclusivamente à profissão que tanto ama. Um tipo de renúncia que Ruth de Souza fez – é bom frisar – muitas décadas atrás. “Eu nunca me casei por que eu acho que me dediquei demais à minha carreira. E pelo exemplo de ver muitas atrizes, minhas colegas, que se casaram e que poderiam construir uma carreira muito bonita, mas não conseguiram, pois o casamento limita muito. Uma família com filhos, limita qualquer carreira, ainda mais uma carreira difícil como é a nossa. Não me arrependo”, enfatiza.
Coisas do futuro
Aos jovens atores em início de carreira, Ruth de Souza deixa os sábios e importantes conselhos de uma veterana de talento inquestionável. “Independente de ser branco, negro, azul, cor-de-rosa, tem que se enfrentar a carreira com muita coragem, muita tenacidade, porque não é fácil. Todo mundo acha que trabalhar na televisão é ficar rico. Não é verdade. É muita luta, sacrifício. Tem que trabalhar muito”. E quais as expectativas de Ruth de Souza com relação ao futuro? “A carreira artística é um pouco cruel com seus profissionais. Ter mais de cinquenta anos significa estar “velho” e não ser mais chamado com tanta frequência para atuar. O ritmo mais acelerado de hoje beneficia a juventude”, diz. E do alto de seu talento incomum e do currículo invejável, ela parece constatar mais esta dificuldade, mas como agiu diante de tantas outras, a atriz segue em frente sem pensar em parar. “O ator não quer parar. Às vezes, a gente só quer descansar um pouco”, resume.