Salgueiro: Chacina confirma genocídio negro e política de segurança falida

FONTEPor André Santana, do UOL
Corpos achados por moradores no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo (RJ) Imagem: Marcos Porto/Agência O Dia/Estadão Conteúdo

A dor e a indignação unem a comunidade do Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, Rio de Janeiro, e os moradores da Vila Moisés, no bairro do Cabula, em Salvador.

Na favela carioca, ao menos nove pessoas foram mortas no domingo (21). Oito corpos foram retirados do mangue pelos vizinhos.

Na chacina do Cabula, em 6 de fevereiro de 2015, 12 jovens, entre 16 e 27 anos, foram executados e outros seis baleados, em um terreno baldio na comunidade. Nos dois casos, o massacre ocorreu durante uma operação policial.

Após investigação, o Ministério Público da Bahia apresentou denúncia contra policiais militares por homicídio qualificado e tentativa de homicídio. Os promotores concluíram que os agentes da segurança pública, que dispararam 88 tiros, agiram por vingança, após um policial ter sido baleado em outra ação, dias antes, na mesma comunidade.

A presença do Bope (Batalhão de Operações Especiais) no Complexo do Salgueiro, no domingo, visava encontrar os responsáveis pela morte de um policial um dia antes, na região. De acordo com UOL, um documento interno da PM aponta que 75 agentes estiveram na comunidade entre sábado (20) e domingo.

Política de Segurança Pública falida

Os nove policiais envolvidos na chacina do Cabula foram absolvidos pela Justiça da Bahia, com a tese de que agiram em legítima defesa. Como foi noticiado pelo UOL, a Justiça Global pediu a federalização do caso.

À época do ocorrido, o governador da Bahia, Rui Costa (PT), comparou a ação dos policiais a “um artilheiro em frente ao gol que tenta decidir, em alguns segundos, como é que ele vai botar a bola dentro do gol, pra fazer o gol”.

Esses confrontos, que se repetem no cotidiano dos territórios ocupados por pobres e pretos, escancaram uma política de segurança pública falida, em todo país.

Ao invés de combater crimes e oferecer tranquilidade às comunidades, o Estado Brasileiro utiliza seu aparato a serviço do extermínio da população negra. Uma ação em curso permanente ao longo da história do país.

Nós nos chocamos muito com a realidade atual de violência racial no Brasil, mas ela tem se mantido nesses mesmos níveis há 500 anos. Em termos de armamento disponível, dos recursos institucionais, tudo que viabiliza essa violência tem se mantido constante há 500 anos. A grande pergunta é: como?”

Jesiel Oliveira, pesquisador

O questionamento do pesquisador da Universidade Federal da Bahia Jesiel Oliveira é um dos fortes depoimentos que compõem o filme-manifesto “Genocídio e Movimentos”, dirigido por Andreia Beatriz, Hamilton Borges dos Santos e Luis Carlos de Alencar.

O documentário, que denuncia as chacinas em favelas do Brasil como parte de uma política de genocídio da comunidade negra, terá estreia nacional no próximo dia 4 de dezembro, durante o XVII Panorama Internacional Coisa de Cinema, que acontece em Salvador.

Filme destaca a arte e os movimentos de resistência

A produção alia dolorosos relatos de mães e pais que tiveram seus filhos assassinados, ainda jovens, em operações policiais, com imagens de marchas e protestos contra a violência racial, em Salvador e no Rio de Janeiro.

Andreia Beatriz e Hamilton Borges estão à frente da organização “Reaja ou Será Morta, Reaja ou Será Morto”, criada em 2005, para acolher familiares de vítimas do estado e denunciar o genocídio em curso.

Desde então, os números de mortes em operações policiais só aumentaram, como mostra o filme, baseado em observatórios da violência e da vivência de militantes pelos direitos humanos.

“Precisamos continuar tratando deste tema com a radicalidade necessária”, afirma Hamilton Borges, que também é poeta e escritor, autor de obras como “Teoria Geral do Fracasso” (poesias, 2017), “Salvador, cidade túmulo” (contos, 2018), e o romance “O livro preto de Ariel” (2019), entre outros.

“A indústria da violência gira em torno da nossa desgraça”, aponta Hamilton. Ele também desenvolve ações políticas e culturais no sistema prisional, cobrando os direitos dos presos, denunciando o encarceramento em massa e toda a economia estimulada pelas criação de mais prisões no país, que já é o terceiro em população carcerária no mundo.

A médica Andreia Beatriz está à frente da Reaja: organização mantém escola, biblioteca e uma editora em Salvador
Imagem: Raul Spinassé/UOL

Todos esses aspectos que compõem a tragédia do genocídio (violência policial, auto de resistência, encarceramento, guerra às drogas, racismo institucional etc) são abordados com falas e imagens incisivas nos 60 minutos do filme.

O longa ainda acompanha a pesquisa do ator Gustavo Melo, na composição de uma performance cênica sobre o tema. O artista busca expressar com seu próprio corpo as imagens de dores e torturas experimentadas pelos corpos negros diante das violências.

Em uma das cenas, o ator mostra o sofrimento de alguém sendo torturado, com lama por todo o corpo e rosto. Imediatamente vêm à lembrança os áudios das mulheres da comunidade do Salgueiro, que circularam nas redes sociais durante essa semana, que registram os momentos de desespero de quem buscava os corpos de filhos, parentes e amigos em meio ao lamaçal.

“Uma angústia em estado bruto”, revela Gustavo, que dialoga com outros artistas e ativistas como transformar em arte tanto horror.

Desafio que o filme “Genocídio e Movimentos” encara corajosamente, tornando-se uma obra urgente e necessária diante da barbárie.

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