Salve o almirante negro

Não é inédito no Brasil que a cultura faça por grandes figuras o que a História, a Justiça, o Estado não fizeram

FONTEO Globo, por Flávia Oliveira
Flávia Oliveira (Foto: Marta Azevedo/ Arquivo O Globo)

Coube à escola de samba carioca Paraíso do Tuiuti no carnaval 2024 a mais recente homenagem a João Cândido Felisberto. Num ato adicional de reparação, o carnavalesco Jack Vasconcelos escalou o entregador Max Angelo dos Santos para encarnar o líder da Revolta da Chibata (1910) no segundo dia de desfiles do Grupo Especial na Marquês de Sapucaí. Mais de um século depois do motim de marinheiros contra castigos físicos aplicados pela Marinha em plena República, o morador da Rocinha foi chicoteado com uma coleira de cachorro por uma madame de São Conrado, bairro limítrofe à comunidade. Resquícios de um país forjado na escravidão.

A ex-jogadora de vôlei Sandra Mathias Correia de Sá foi indiciada pela Polícia Civil por lesão corporal, injúria e perseguição em junho de 2023, dois meses depois da agressão. A justiça que falhou a Max nos tribunais brotou na folia. No desfile do Tuiuti, o entregador veio ao leme da alegoria Dragão do Mar, um navio estilizado que, ao mesmo tempo, relembrava a revolta na Baía de Guanabara e homenageava Chico da Matilde, líder jangadeiro e ícone do movimento abolicionista do Ceará, primeira província brasileira a pôr fim à escravidão, em 1884, quatro anos antes da Lei Áurea.

O desfile da Tuiuti em homenagem a João Cândido — Foto: Domingos Peixoto

Não é inédito no Brasil que arte e cultura façam por grandes figuras nacionais o que a História, a Justiça, o Estado não fizeram. Nesta semana, mais uma evidência se apresentou, quando o Ministério Público Federal enviou ao Ministério dos Direitos Humanos parecer complementar ao processo administrativo para reconhecer João Cândido como anistiado político, bem como à Câmara dos Deputados pela inscrição do almirante no livro dos heróis e heroínas da pátria. O projeto tramita no Legislativo desde 2018.

O procurador Julio José Araujo Junior usou pesquisas dos historiadores Silvia Capanema e Álvaro Nascimento como prova de que João Cândido foi atormentado pelo Estado por muitas décadas depois da Revolta da Chibata e mesmo após sua morte. Silvia apontou que o almirante foi perseguido por oficiais da Marinha depois da anistia de 1910, na prisão antes de ser julgado e após ser absolvido pelo Tribunal Militar, em 1912. Quem tentou ou escreveu sobre ele, também.

O jornalista Apparício Torelly, que publicou no Jornal do Povo um texto sobre a revolta escrito pelo médico Adão Pereira Nunes sob pseudônimo, apanhou de militares. No Estado Novo (1937-1945), nada foi publicado sobre a rebelião. A Academia Brasileira de Letras foi criticada por oficiais por citar João Cândido numa sessão em 1948. Raimundo Magalhães Júnior sofreu ameaças de chibatadas em telefonemas anônimos por assinar reportagem no Diário de Notícias. Edmar Morel teve direitos políticos cassados pelo golpe militar de 1964 por publicar o livro “A revolta da chibata” (1959), resultado de dez anos de apuração sobre o motim.

João Cândido morreu em 1969, mas o esforço por seu apagamento não feneceu. Quatro policiais acompanharam o funeral. Na canção “Mestre-sala dos mares”, de Aldir Blanc e João Bosco, tornada hino em homenagem ao líder, era conhecida a troca imposta da denominação almirante por navegante negro nos versos finais. O parecer do MPF, agora, acrescenta que a ditadura civil-militar vetou a música em 1973, sob alegação de “conteúdo esdrúxulo” e “mensagem negativa”, por falar da “chibata na Marinha”, “prostituição no cais”, “lutas inglórias”, “do trabalhador do cais e sua negritude sofrida”. O censor ainda escreveu que havia “conotação política” na referência à revolta de João Cândido contra castigos físicos e superiores hierárquicos da Marinha.

Já no fim da ditadura, a escola de samba União da Ilha do Governador teve de submeter aos censores todo o plano do desfile “Um herói, uma canção, um enredo” em homenagem a João Cândido para o carnaval de 1985. O desfile foi aprovado em outubro de 1984. Na documentação, a agremiação escreveu que “a Marinha de hoje nada tem a ver com os episódios acontecidos há 75 anos”.

Para o procurador Araujo Junior, a série de episódios indica não apenas a omissão prolongada do Estado em anistiar, mas também atitude de vigiar, perseguir e controlar a vida e o legado de João Cândido. Assim, reforça o pedido de anistia política e reparação financeira em promoções e benefícios de pensão por morte formulado pelo filho do almirante, Adalberto Nascimento Cândido, bem como a inscrição no livro dos heróis da pátria. A resistência pela arte, pela cultura, pelo jornalismo são instrumentos a atestar a importância histórica de João Cândido, sistematicamente negada num Brasil que ainda hoje, 60 anos após o golpe militar, tenta silenciar a verdade e a memória.

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