Sankofa e as políticas de ações afirmativas: Olhar o passado para construir o futuro

FONTEPor Denize Souza Leite, do Justificando
Denize Souza Leite (Foto: Arquivo pessoal)

A cultura oriunda dos países africanos é de uma simbologia incrível, e cuja complexidade nos traz ensinamentos profundos, demonstrando o grau de evolução do berço do mundo. 

Dentre os elementos culturais encontramos os Adinkras, símbolos ideográficos dos povos Akan, da África Ocidental, região que hoje abrange parte de Gana e da Costa do Marfim. Estes conjuntos de ideogramas tinham como propósito representar valores da comunidade, ideais, provérbios, além de serem usados em cerimônias e rituais de grande importância.

Sankofa é um dos Adinkras mais conhecidos, sendo representado por um pássaro que apresenta os pés firmes no chão e a cabeça virada para trás, segurando um ovo com o bico. O ovo simboliza o passado, demonstrando que o pássaro voa para frente, para o futuro, sem esquecer o passado. Ele surgiu com o provérbio ganês “Se wo were fi na wosankofa a yenkyi” que significa “não é tabu voltar para trás e recuperar o que você esqueceu (perdeu)”. 

Através de um genuíno movimento de Sankofa – como a capacidade de olhar para o passado para construir o futuro, o movimento negro brasileiro passou a pleitear políticas de ações afirmativas para a população negra, como estratégia para interromper um processo histórico de marginalização racial e garantir um futuro com dignidade para população negra, que passa necessariamente pelo pleno acesso aos espaços de prestigio da sociedade.

O Brasil conta com um histórico de quase 400 anos de escravidão do povo negro que veio seqüestrado de África, e simulou um processo de abolição, que de fato representou, nos dizeres de Silvio Almeida, um processo de transição de um sistema racista oficial e de segregação legalizada para uma total indiferença em face da igualdade racial, agora sob o manto da democracia.

A população negra brasileira é a maior do mundo fora do Continente Africano, mas, essa maioria foi transformada, por um logo processo racista, em minoria econômica, cultural e política, porque permanece sub-representada em esferas de poder ou de visibilidade em nosso país.

Como denuncia Lélia Gonzalez, o 13 de maio de 1988 trouxe benefícios para todo mundo, menos para a população negra. Com ele se inicia “o processo de marginalização das trabalhadoras e trabalhadores negros. Até aquela data elas e eles haviam sido considerados bons para o trabalho escravo. A partir daquela data passaram a ser considerados ruins, incapazes para o trabalho livre.”

É como esse longo passado pela frente que, através da 3ª Conferência Mundial contra o Racismo, promovida pela ONU, em 2001, na cidade de Durban, na África do Sul, o Brasil assumiu o compromisso oficial de combater todas as formas de racismo e discriminação racial, e estabelecer políticas concretas para a sua superação.

Dentre as políticas de ações afirmativas mais difundidas para o enfrentamento da desigualdade racial, encontram-se o sistema de cotas raciais, que se concretiza através da reserva de vagas para as pessoas que se autodeclaram negras, mediante procedimento de heteroidentificação complementar, em instituições públicas ou privadas, para cursos de ensino primário, médio ou superior, para o preenchimento de cargos públicos, empregos e estágios e etc, por serem espaços que historicamente não eram acessíveis, por um processo de exclusão sustentado pelo racismo.

Não foi (e não é) um processo fácil. Mesmo com todo o passado escravista e com diversas leis e tratados internacionais que recomendavam a implementação das políticas de cotas, houve diversos questionamentos no meio social, político e jurídico, quanto à necessidade/legalidade das ações afirmativas.

Toda essa resistência tem uma explicação. É que as ações afirmativas quando corretamente implementadas, atacam um dos mitos fundantes de nosso país, e que guarda parentesco com o mito da democracia racial: a meritocracia. É através da meritocracia que mecanismos como as seleções para acesso a educação superior ou cargos públicos, ganham conotação “democrática” e “igualitária”, enquanto privilegiam deliberadamente o acesso de pessoas brancas, conforme já nos alertou Sueli Carneiro.

As mais diversas reações culminaram em questionamentos sobre a constitucionalidade das cotas raciais perante o Supremo Tribunal Federal, que na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 186, em 2012 e, na Ação Declaratória de Constitucionalidade n. 41, em 2017, julgou que a implementação das cotas raciais está de acordo com a Constituição Federal brasileira.

Ainda assim, as ações afirmativas se encontram com seu alcance comprometido, porque esbarram na falta de letramento racial e em interpretações conservadoras e limitadas no seio das instituições que deveriam lhes garantir ampla eficácia. Um processo identificado por Abdias Nascimento, como um racismo mascarado, que transformam as normas vigentes em valores puramente simbólicos, mantendo mecanismos de discriminação permanentes, difusos, mas extremamente eficazes na manutenção dos “status quo”.

Podemos, no entanto, encontrar exemplos promissores de uma mudança sistêmica, em algumas Defensorias Públicas do país, e que apontam para um autêntico movimento de Sankofa via ações afirmativas, que é essencial, ressoe no Sistema de Justiça.

O primeiro deles pode ser observado na Defensoria Pública do Rio de Janeiro, cuja capital abrigou o principal porto de entrada de africanos escravizados das Américas, o Cais do Valongo, e integra a lista do Patrimônio Mundial da ONU para a Educação, a Ciência e a Cultura – UNESCO. A Defensoria Fluminense, criou em sua estrutura administrativa a Coordenadoria de Promoção da Equidade Racial (COOPERA), para incentivar ações práticas que promovam a equidade racial. Dentre as diversas mudanças promovidas, está a modificação nos critérios de avaliação dos candidatos cotistas no concurso para ingresso no cargo de defensor público (Deliberação 14/2020), cujo objetivo é dar efetividade à política de cotas. A mera reserva de vagas instituídas, não se mostrou suficiente para garantir o ingresso de pessoas negras na instituição.

No Estado do Tocantins, que de acordo com dados do IBGE, 70% da população é negra, e conta com 45 comunidades quilombolas certificadas pela Fundação Cultural Palmares, a Defensoria tocantinense aprovou a Resolução-CSDP nº 210/2021, que prevê a obrigatoriedade de inclusão do tema do racismo estrutural e relações de gênero nos concursos para ingresso na carreira de Defensor Público e Defensora Pública, no concurso de seleção do quadro de pessoal, bem como paridade de gênero e raça nas Bancas examinadoras.

Já a Defensoria do Estado da Bahia, cuja a capital Salvador, é considerada a cidade mais negra fora do continente africano, instituiu através da Portaria Nº 458/2021, a Política de Promoção da Equidade Racial e Enfrentamento ao Racismo, que traça diretrizes dentre as quais destacamos a que estabelece que os concursos públicos da instituição, deverão  fomentar, qualificar e ampliar a inserção de conteúdo referente às relações étnico-raciais, a trajetória histórica da população negra no Brasil e a sua contribuição decisiva para o processo civilizatório nacional.

São iniciativas como essas que merecem ser difundidas nos espaços institucionais, pois sinalizam que mais que a mera reserva de cotas em editais, as ação afirmativas precisam promover mudanças estruturais e que culminem na compreensão de como o racismo impacta no funcionamento das instituições, sem as quais, a equidade racial permanecerá apenas uma utopia.

É importante registrar que tramita no Senado Federal, Projeto de Lei – PL 4.656/2020, de autoria do senador Paulo Paim(PT-RS), que pretende alterar a  Lei nº 12.711/2012, a lei das cotas para as universidades,  para estabelecer que ao invés de uma revisão única, prevista para 2022, possa ser sistematicamente realizada a cada 10 anos, de modo a garantir uma avaliação periódica da eficácia da política de cotas, observando que além de estarmos muito distantes de um acesso igualitário à educação pública, medidas estruturais que impactam positivamente na vida da população negra, permanecem incipientes.

Que a ações afirmativas, como forma genuína de resgate do passado, enquanto avança para implementar a verdadeira integração da população negra na sociedade atual, antes negada, promova a construção de um futuro sobre bases firmes do pleno desenvolvimento, progresso e prosperidade para todos, abandonando por absoluto um discurso que trata as políticas de ações afirmativas como pautas identitárias.

Denize Souza Leite é Defensora Pública do Estado do Tocantins. Membra da Comissão da Igualdade Étnico-Racial da Anadep. Integra o Programa de Pesquisa e Extensão da Universidade Federal do Tocantins – Igualdade Étnico Racial e Educação.

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