Perto de confirmar seu heptacampeonato mundial na F-1, o que pode acontecer no domingo (15), o inglês Lewis Hamilton, 35, teve um 2020 muito marcado também pelo que fez fora das pistas.
Neste ano, ele se consolidou como uma das principais vozes ativistas entre os atletas por suas declarações, protestos que liderou antes dos GPs e ao ir às ruas em manifestações do movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam) que eclodiram mundialmente às vésperas do início da temporada da F-1.
Na opinião de Kehinde Andrews, professor de Estudos Negros da Birmingham City University, o ativismo que o faz ser tão admirado globalmente também limita seu reconhecimento entre os próprios britânicos.
“Há uma grande parte da população que não gosta quando você é “negro demais” e se posiciona. Hamilton poderia ter se posicionado menos para ser mais popular, mas, dando crédito a ele, decidiu ser firme”, afirma Andrews em entrevista à Folha.
O acadêmico, doutor em Sociologia e Estudos Culturais, também é autor de livros sobre racismo e colaborador do jornal The Guardian. De acordo com ele, muitos no Reino Unido não veem Hamilton como britânico por causa da cor de sua pele.
“É, na melhor das hipóteses, um ‘britânico negro’, o que é diferente de ser britânico. Quando a população britânica vê atletas brancos, se identifica com eles. Para muitos nesse país, um negro nunca vai representá-los.”
Como o senhor vê o debate sobre racismo no Reino Unido? Apenas 3% da população do Reino Unido é negra, somos uma minoria. Há negros em poucos lugares, como Birmingham [sua cidade-natal], Manchester, Londres, Leicester. Assim como no Brasil, aqui também temos racismo, que geram problemas com a polícia, em escolas, em termos de oportunidades. Lewis Hamilton é uma exceção por ter se tornado o único piloto de Fórmula 1 negro em um esporte de elite. No Reino Unido, existe uma chance muito maior de viver na pobreza se você for negro.
A sociedade britânica ainda precisar reconhecer que existe racismo no país? Somos minoria no país, então as pessoas podem tentar ignorar a questão. Os britânicos exportaram o racismo através da escravidão, então não havia muitos negros no país até recentemente, talvez dos anos 1950 em diante [passou a ter]. Londres está sempre na TV, e você vê alguns negros famosos, mas a verdade é que na maioria do país não há negros, então é muito fácil ignorar completamente a questão do racismo. A discussão é sobre classes sociais. Podemos argumentar que Lewis Hamilton seja o atleta mais famoso de todos os tempos do Reino Unido. Olhe o que ele já conseguiu. Se fosse branco, não tenho dúvidas de que seria visto dessa forma. No Reino Unido não se fala sobre racismo abertamente. Aqui as pessoas vão ser mais educadas e fingir que isso não existe. Mas, sejamos honestos: se Hamilton não fosse negro, seria muito mais popular.
E a justificativa de que o esporte número um do país é o futebol e que os britânicos não são fãs de Fórmula 1… Damon Hill [ex-piloto britânico de F-1, campeão mundial em 1996] era uma celebridade, muito popular, e não tinha 10% do talento de Lewis Hamilton. Isso é uma desculpa. É o mesmo que fizeram com Meghan Markle [duquesa de Sussex]. Quando as pessoas falam que não gostam dele, na verdade querem dizer: “ele não é um de nós, não se encaixa no nosso perfil”.
Como o ativismo de Hamilton em relação ao movimento Black Lives Matter é visto no Reino Unido? As pessoas no Reino Unido são educadas e não vão dizer isso abertamente, mas não soou nada bem. Há uma grande parte da população que não gosta quando você é “negro demais” e se posiciona. Hamilton poderia ter se posicionado menos para ser mais popular, mas, dando crédito a ele, decidiu ser firme e isso custou a ele parte do apoio popular.
Se um atleta branco defendesse o Black Lives Matter, seria mais aceito? O ponto principal é que Hamilton não se encaixa no perfil de um atleta britânico. Muita gente nem o considera britânico. Eu, por exemplo, nasci aqui, minha mãe nasceu aqui [o pai de Kehinde nasceu na Jamaica], e muitas pessoas não acham que sou britânico.
Quando o Lewis Hamilton defende o Black Lives Matter, ele acentua essa diferença. Se um atleta branco fizesse isso seria diferente, porque ele é automaticamente considerado britânico. Eu garanto que para muita gente o Hamilton não é considerado britânico. É, na melhor das hipóteses, um “britânico negro”, o que é diferente de ser britânico. Quando a população britânica vê atletas brancos, se identifica com eles. Para muitos nesse país, um negro nunca vai representá-los.
O ativismo de Lewis Hamilton pode ajudar a mudar o pensamento de alguns britânicos sobre racismo? Não, mas muitas pessoas, no lugar dele, tentariam ser “menos negras” para conseguir mais apoio em geral e também apoio popular. Nem falariam sobre racismo. A maioria das estrelas britânicas negras no esporte não diz nada sobre questões raciais. O fato de Hamilton ser tão bem-sucedido e se posicionar é representativo para os negros nesse país, e isso é muito poderoso. Nesse sentido, tem um impacto positivo.
O senhor acredita que algum dia ele vai ser reconhecido no Reino Unido à altura dos feitos que conquistou? Sem chances. Ele vai ter algum reconhecimento porque seria impossível não acontecer isso, por tudo que conseguiu. Mas Hamilton é o maior atleta britânico de todos os tempos e nunca vai receber um reconhecimento à altura porque ele é negro. Minha família tem origem no Caribe.
Quando meu pai nasceu lá, o lugar fazia parte do Império Britânico, mas não é assim que as pessoas daqui entendem. É claro para mim que somos considerados estrangeiros, não pertencemos a esse lugar e deveríamos ser gratos. Muitas vezes já me disseram para “deixar o país e voltar para casa”. Para onde eu iria? Eu nasci aqui, assim como todas essas pessoas. Mas é isso, a definição de ser britânico é ser branco. Você nunca vai ser aceito da mesma maneira se for negro.