Segundo dia de jornada contra o racismo institucional inicia com falas de lideranças da sociedade civil

A manhã do segundo dia da I Jornada Nacional sobre Racismo Institucional e Sistema de Justiça retomou os intensos debates sobre raça e direito que caracterizaram o dia anterior. Veja as fotos. Nesta etapa, a Jornada ouviu as reflexões de experientes lideranças negras que dirigem ou participam de importantes organizações da sociedade civil. Ao lado de Lúcia Xavier, que coordenou o espaço, tiveram fala Átila Roque, diretor executivo da Fundação Ford no Brasil, Jurema Werneck, diretora executiva da Anistia Internacional, e Humberto Adami, advogado membro do Instituto de Advocacia Racial e Ambiental – IARA.

Do Fórum Justiça

Foto: Reprodução/Fórum Justiça

Mesa: O Sistema de Justiça e as Relações Raciais no Brasil

Como primeiro a expor, Átila fez questão de ressaltar que o racismo estrutura profundamente todas as relações sociais no Brasil, não apenas a relação entre brancos e negros; e sim entre todas as relações.

“O racismo é a matriz sobre a qual se organizou o poder e a desigualdade no Brasil. Esse é o ponto de partida para se falar sobre qualquer coisa, inclusive para falar sobre o sistema de justiça.”

Em consonância com muitos argumentos defendidos na manhã anterior, ele concorda com a percepção de que o Brasil também esconde o racismo da sua realidade social, um “racismo à brasileira”, como apontava Ana Míria.  A referência ao assassinato de Marielle não pôde deixar de ser feita e a repetição da tragédia que recai sobre as mulheres negras que lutam por justiça fica evidente ao se relembrar o caso do assassinato de Edméia da Silva Euzébio. As histórias se juntam na medida em que Edméia foi assassinada quase que exatamente no mesmo local da morte de Marielle, sendo aquela uma destacada liderança das “Mães de Acari”. Edméia foi morta ao fazer o papel da polícia de investigar a Chacina de Acari. Fica claro, portanto, que o sistema de justiça não cumpre seu papel de defesa de direitos e na resposta a esses crimes, como também dá espaço e cobertura para o extermínio das mulheres que decidem denunciar os desvios por conta própria.

“O sistema de justiça tem sido cúmplice da ordem vigente racista, em especial o MinistérioPúblico”, criticou.

Por fim, avalia que o momento atual é um dos poucos momentos históricos cruciais para definir o futuro de uma ou duas gerações, quando então escolhas muito sensíveis necessitam ser tomadas. Para ele, é uma oportunidade de colocar os direitos humanos no foco das nossas ações e a juventude preta ou quase preta das periferias é a maior potência para isso.

O advogado Humberto Adami também iniciou sua fala em saudação a Marielle Franco, quando dividiu com os presentes a sua tristeza e o desafio de se lutar com saudade e de se pensar no que fazer nos próximos passos. Trouxe empecilhos jurídicos e lições aprendidas em suas experiências em casos judiciais emblemáticos contra o racismo. A partir de então pontuou um rol de propostas para a superação dessas dificuldades. Sugere que as organizações de mulheres negras devem se constituir enquanto amigo da corte (ou assistente processual do autor), mesmo agora na investigação e ação penal e de reparação no caso de Marielle. Provocar o Supremo Tribunal Federal em demandas de impacto também é essencial para manter acesso o debate sobre a reparação da escravidão do povo negro no Brasil.

“Nós vamos ficar discutindo cota até quando? Tendo em vista o peso e o tamanho da reparação da escravidão do povo negro no Brasil, debater cota acaba sendo muito limitado. É precioso ir além.”

Nesse sentido, há uma série de temáticas que cumprem essa função e ele citou algumas: a efetivação do ensino da história de África nas escolas e o combate do cumprimento de pena a partir de condenação em segunda instância, que se somam a outras iniciativas de sucesso, como a ADPF que julgou as cotas na UnB e a ADC 41, que declarou a constitucionalidade do regime de cotas no serviço público.

“Quais os direitos que interessam aos movimentos de mulheres? É preciso fazer ações concretas em cima dessas pautas.”

“Tem que ter uma mulher negra no Supremo Tribunal Federal”, clamou, ao apontar a necessidade de ir construindo essa candidatura desde agora.

Também propôs um esforço comum de formação de advogados para atuação específica em ações de moral e habeas corpus na questão racial, de forma a apoiar fortemente a causa.

Jurema Werneck abriu sua fala agradecendo a oportunidade de estar presente, indicando que acompanhou as discussões do dia anterior pela transmissão online do evento. Segundo ela, os diagnósticos sobre o racismo no sistema de justiça já estão feitos, sendo eles precisos e consistentes. Ela baseia sua intervenção na pergunta: pelos olhos das mulheres negras, o que a gente vê quando olha para a sociedade? E responde: as lentes do racismo, produzido e reiterado também pelo sistema de justiça, ainda que haja mecanismos contra-hegemônicos no seu interior.

Ao analisar a prática jurídica, Jurema recorda aos operadores jurídicos o papel da lei, que precisa ser utilizada com sabedoria, pois é com muita destreza que ela é usada pelos nossos inimigos.

“A lei é aquele papel que a gente esfrega na cara dos nossos inimigos para dar um passo à frente”, afirmou Jurema.

Assim como Átila, ela traçou os elementos comuns entre os assassinatos de Marielle e Edméia, ocorrido em 1993. Para ela, a luta em comum faz com que esses assassinatos tenham a mesma base. Ambas as mulheres foram produto da luta da favela. Marielle morreu como uma mulher preta e a sua morte representa as mulheres negras, assim como a sua vida representou.

“Nove dias que Marielle foi assassinada. O mundo grita por justiça e o sistema segue em silêncio. Quaisquer outros crimes já tinham colocado um homem negro como culpado. Até o sistema de justiça não se manifestou em nada. Seria muito estranho apontar para um homem negro agora nesse caso. Nós estamos atentas!”.

Insistiu que é preciso manter a chama da luta acesa e que estamos vendo a potência que Marielle trazia consigo. Como prova disso, o mundo está repercutindo essa morte. Avalia também que a política está sendo feita nas condições mais adversas e de maneira mais plural que antes, na cidade e no campo. Relembra que, se as mulheres negras estão onde estão, é porque se vem fazendo política há muito tempo. Nesse contexto, a lei deve ser enxergada como uma ferramenta que a política trouxe. E é na brecha que os parceiros se encontram e se movem. Afinal, a mulher negra mais velha e suas antepassadas viveram condições que não se pode sequer dimensionar. Contudo, foi através da política que elas resistiram.

“Só vai deixar de ruim quando o racismo acabar. É por isso que a gente luta contra ele a todo tempo e nas condições mais adversas”.

Após o debate com os presentes, a mesa deu lugar ao almoço, onde seguiram as confraternizações da Jornada. O último dia continuou com a apresentação, no período da tarde, de experiências e práticas jurídicas de enfrentamento ao racismo, dando lugar ainda a intervenções artísticas e à exposição dos trabalhos vencedores do concurso aberto pela Jornada.

Veja as imagens do evento: clique aqui.

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