Segurança pública e racismo institucional

Por Almir de Oliveira Junior Do Jusbrasil

1. Introdução

Como dever constitucional, o Estado deveria fornecer aos cidadãos, de forma independente de sexo, idade, classe social ou raça, uma ampla estrutura de proteção contra a possibilidade de tornarem-se vítimas de violência. Esse é um direito do qual nenhum indivíduo poderia ser legitimamente excluído, fundamento do próprio contrato social. Contudo, a segurança pública é uma das esferas da ação estatal onde a seletividade racial se torna mais patente.

Há grande desigualdade entre brancos e negros no que diz respeito à distribuição da segurança. Essa desigualdade é explicitada pelas maiores taxas de vitimização da população negra. Pode-se tomar como referência a taxa de homicídios. Se, devido à situação de insegurança no país, a exposição da população em geral à possibilidade de morte violenta já é grande, ser negro corresponde a pertencer a uma população de risco: a cada três assassinatos, dois são de negros (Waiselfisz, 2011). No conjunto da população residente nos 226 municípios brasileiros com mais de 100 mil habitantes, calcula-se que a possibilidade de um adolescente negro ser vítima de homicídio é 3,7 vezes maior em comparação com os brancos (PRVL, 2010).

Dados do IPEA mostram que os negros tem uma perda 114% maior do que os brancos em sua expectativa de vida devido aos homicídios no país. Enquanto o homem negro perde, em média, vinte meses em sua expectativa de vida, a perda do homem branco é pouco maior do que oito meses. Ser da cor negra faz aumentar em cerca de oito pontos percentuais a probabilidade de o indivíduo ser vítima de homicídio (CERQUEIRA, 2013).

Se esses números mostram uma maior demanda de segurança por parte da população negra, deve ser apontado adicionalmente que os órgãos encarregados de fornecer esse bem público atuam de forma enviesada, prejudicando essa parcela da população. Segundo estudo realizado por Adorno, apesar de não existirem indícios de que negros cometam mais crimes do que brancos, há a tendência de sofrerem maior coerção por parte do sistema de justiça criminal, seja por uma vigilância mais incisiva por parte da polícia, seja por uma probabilidade maior de sofrerem punição (Adorno, 1996).

Diante desse contexto, objetiva-se abordar, de forma mais específica, o racismo institucional dentro das polícias. Mesmo sem subestimar o papel ou a relevância das outras instituições componentes do sistema de justiça criminal, as polícias merecem ser o foco de atenção por alguns motivos. Em primeiro lugar, porque constituem o principal “filtro” do sistema. Por meio do atendimento direto à população e das atividades de apuração e investigação de crimes, definem a distância entre a criminalidade detectada e processada legalmente (Paes, 2010). Em segundo lugar, porque as polícias consistem em um dos aparatos mais presentes e atuantes do Estado no cotidiano da população, principalmente das camadas pobres e negras, maior alvo das ações de vigilância e repressão policial (Paixão, 1985).

Muito precisa ser feito para que essas instituições de Estado contribuam, de forma mais abrangente, com uma concepção ampla de desenvolvimento, que engloba a garantia de direitos individuais e a promoção da equidade. É comum que policiais trabalhem de forma discriminatória ao buscarem sua “clientela”, com base em estereótipos que tem na cor da pelé dos “suspeitos” seu elemento principal. Dentro das sociedades democráticas esse tipo de orientação torna-se um dos elementos mais polêmicos da atuação policial.

2. O conceito de racismo institucional

Racismo institucional pode ser definido como o fracasso coletivo das instituições em promover um serviço profissional e adequado às pessoas por causa da sua cor. O termo foi utilizado de forma pioneira em 1967 pelos ativistas Stokely Carmichael e Charles Hamilton, integrantes do grupo Panteras Negras, para especificar como se manifesta o racismo nas estruturas de organização da sociedade e nas instituições (GELEDÉS, 2013: 11). Também, a partir de 1993, por instituições de combate ao racismo na Inglaterra, em particular na Comissão para Igualdade Racial (Comission for Racial Equality-CRE) do Reino Unido (SAMPAIO, 2003). Manifesta-se por meio de normas, práticas e comportamentos discriminatórios atuantes no cotidiano de trabalho das organizações, resultantes do preconceito ou estereótipos racistas (IPEA, 2007). O racismo institucional não se expressa em atos manifestos, explícitos ou declarados de discriminação, mas atua de forma difusa no funcionamento cotidiano de instituições e organizações, que operam de forma diferenciada, do ponto de vista racial, na distribuição de serviços, benefícios e oportunidades aos diferentes segmentos da população (Silva et al., 2009).

Hasenbalg (1979) destaca que a raça tem sido mantida como forte símbolo de posição subalterna na divisão hierárquica do trabalho e continua a fornecer a lógica para confinar os membros dos grupos raciais subordinados às condições que o código racial da sociedade define como seus “lugares apropriados”. Segundo Santos (2012), o racismo institucional é velado por meio de mecanismos e estratégias presentes nas instituições públicas, explícitos ou não, que dificultam a presença do negro nesses espaços ou a presença do Estado onde há maior concentração da população negra. O acesso é dificultado, não por normas e regras escritas e visíveis, mas por obstáculos formais, presentes nas relações sociais que se reproduzem nos espaços institucionais e públicos e/ou na formação dos agentes do Estado. A ação é sempre agressiva, à medida que atinge a dignidade humana, instaurando-se no cotidiano organizacional, gerando desigualdades e iniquidades na implementação das políticas públicas (IPEA, 2007).

Esse tipo de discriminação tem efeitos extremamente relevantes. Ele extrapola as relações interpessoais e instaura-se no cotidiano organizacional, inclusive na implementação efetiva de políticas públicas, gerando de forma ampla, mesmo que difusa, desigualdades e iniquidades (IPEA, 2007: 216).

No Brasil, o conceito de racismo institucional passou a ser apropriado apenas a partir da década de 1990 por parte de movimentos sociais negros, passando a ser empregado na formulação e implementação de programas federais de equidade racial em 2005, com o Programa de Combate ao Racismo Institucional, PCRI (IPEA, 2007). O programa teve por objetivo o fortalecimento da capacidade do setor público na identificação e prevenção do racismo institucional, a partir de formulação de políticas, capacitação institucional e revisão de normas e procedimentos. A transversalidade de programas dessa natureza seria útil para mobilização de gestores e profissionais de diversas áreas na busca de soluções para a redução das desigualdades raciais.

3. Discriminação racial e atuação policial

Existem várias formas de o Estado atuar sobre o quadro de injustiça racial, manifestado nas taxas de violência desiguais contra a população negra. Há um grande aparato de políticas públicas que precisa incidir sobre o problema do racismo, do qual a violência letal é um dos aspectos mais perversos. Também é preciso promover a diminuição do desequilíbrio na distribuição da segurança pública entre negros e brancos.

O processo de produção e distribuição da segurança pública consiste em atividades de controle da criminalidade e da violência pelo sistema de justiça criminal. Este é composto de instituições, ligadas ao Poder Executivo e ao Judiciário, que atuam em etapas concatenadas e sucessivas de controle social que definem o papel do Estado na consecução da ordem pública. Como o representante do Estado nas ruas, o policial deve, por lei, tratar os cidadãos de forma universal, imparcial, sem distinções de classe, cor de pelé, gênero etc. Mas isso se dá no campo ideal. Negros são as maiores vítimas de agressão por parte de policiais que brancos. Como mostra a Pesquisa Nacional de Vitimização, 6,5% dos negros que sofreram uma agressão no ano anterior tiveram como agressores policiais ou seguranças privados (que muitas vezes são policiais trabalhando nos horários de folga), contra 3,7% dos brancos (PNAD/IBGE, 2010).

No dia a dia do policial fardado em sua atividade de vigilância ostensiva, a suspeita e a abordagem são instrumentos de trabalho, para os quais busca estabelecer fundamentos ou racionalizações. Ou seja, o policial deveria ter um argumento articulado para a decisão de parar e revistar um cidadão, ato que constrange, de certa forma, sua liberdade. A abordagem policial é fundamentada no Código de Processo Penal (CPP), que em seus Artigos 240 e 244 trata desse tema, definindo que, mesmo sem mandato, o policial pode realizar busca domiciliar ou pessoal em caso de fundada suspeita. No entanto, o termo fundada suspeita é muito subjetivo, sendo a determinação de sua existência dependente da discricionariedade do poder de polícia (Teixeira Júnior, 2001). Na prática, os sinais identificados para abordar um suspeito são, de forma geral, apesar de não exclusiva, fortemente associados à classe social e à raça dos cidadãos. Em pesquisa realizada em Recife, ao serem perguntados sobre quem abordar primeiro em uma situação de suspeição que envolvesse um homem negro e outro branco, os policiais militares foram quase unânimes em dizer que o negro sofre um olhar diferenciado e, por isso, é sempre o primeiro (ou, às vezes, mesmo o único) abordado (Barros, 2008). Na mesma enquete, constatou-se que a situação em relação a condutores de veículos que mais levanta suspeita é a de uma pessoa de cor preta dirigindo um carro de luxo: trata-se de uma situação de suspeita para 21% dos policiais militares, enquanto um branco dirigindo um carro de luxo levantaria suspeita para apenas 2,6% dos entrevistados (Barros, 2008 p. 139).

O conceito de racismo institucional parece, portanto, bastante adequado à forma de atuação das organizações policiais. Não que seja a polícia, em si, a produtora do fenômeno discriminatório. Ela reflete o desvio comportamental presente em diversos outros grupos, inclusive aqueles de origem dos seus membros (Reiner, 2004).

Cabe sublinhar aqui o paradoxo de a PM, uma instituição com presença maciça de negros nos seus quadros, praticar a discriminação racial, ser percebida como muito racista por boa parte da sociedade e, ainda assim, esquivar-se defensivamente de qualquer questionamento, de qualquer debate, interno ou externo, sobre o problema (Ramos, 2005, p. 215).

As polícias deveriam atuar como órgãos públicos para minimizar a iniquidade gerada pelo racismo e outros desequilíbrios sociais. Não reproduzi-la ou ampliá-la. Pesquisa realizada pelo Ipea mostra um claro diagnóstico de distanciamento entre polícia e sociedade, problema que se agrava na relação com a população que não é branca, que tem menos confiança nos serviços prestados pelas polícias e, consequentemente, menor confiança nessas instituições (Oliveira Junior, 2011).

A cultura organizacional das polícias orienta um olhar enviesado. Essa falta de imparcialidade pode ser observada quando corpos de jovens negros e pobres são encontrados nas favelas e periferias. A mesma versão é continuamente citada por policiais nos noticiários exibidos nos mais variados veículos de comunicação do país, geralmente condensada na seguinte afirmação: “Já sabemos o que aconteceu, a vítima estava envolvida com o tráfico de drogas”, sem ser realizado, na verdade, um trabalho mais sério de investigação. Apesar das autoridades policiais estimarem que a maioria das vítimas de tiro no Brasil consiste em indivíduos envolvidos com o tráfico, pesquisas mostram que se trata de uma explicação simplista (Adorno e Pasinato, 2010, Misse, 2010). Torna-se patente que a polícia não só exerce maior poder punitivo sobre os jovens negros pobres, como também “economiza” energias para garantir a punição de quem exerce violência contra tais (Adorno, 1996). Esses são pontos que merecem um debate político amplo e aprofundado. É necessário questionar o fato de que a população negra, principalmente jovem e pobre, seja definida como alvo preferencial de políticas repressivas e excludentes.

A sedimentação do mito que associa juventude negra e criminalidade multiplica consequências desastrosas no cotidiano das práticas policiais. Um dos componentes mais claros do racismo institucional das polícias é naturalizar a relação entre pobreza e criminalidade, incoerentemente tomando a cor da pelé como seu indicador visível. O resultado mais contundente desse tipo de atitude é o fato de que a taxa de homicídios de jovens negros no Brasil, com a qual as próprias polícias contribuem de forma significativa, é bem superior às taxas de mortes de jovens de países em guerra (Waiselfisz, 2012). É como se o jovem negro sintetizasse o drama de uma sociedade incapaz de solucionar suas contradições. A figura do jovem negro condensa o aspecto alegre e sincrético da cultura brasileira, expressa no samba e na malandragem, entre outras manifestações, que nos afastam do europeu colonizador. Ao mesmo tempo, simboliza um fator de desordem, execrável do ponto de vista de um Estado autoritário, historicamente voltado para o controle e domesticação das “classes perigosas”, como se fossem uma espécie de inimigo interno.

4. Considerações finais

As decisões cotidianamente tomadas no âmbito da justiça criminal, notadamente pelas polícias, são injustificadamente mais severas para os negros do que para os brancos. O braço da repressão legítima do Estado e, por vezes, veículo até de execuções sumárias, atinge majoritariamente os jovens negros. É comum que policiais trabalhem de forma discriminatória ao buscarem sua “clientela”, com base em estereótipos que tem na cor da pelé dos “suspeitos” seu elemento principal. Dentro das sociedades democráticas esse tipo de orientação torna-se um dos elementos mais polêmicos da atuação policial.

Muito precisa ser feito para que essas instituições de Estado contribuam, de forma mais abrangente, com uma concepção ampla de desenvolvimento, que engloba a garantia de direitos individuais e a promoção da equidade. Diante desse quadro grave, é necessário introduzir programas de combate ao racismo institucional na área de segurança pública, avançando na consecução das propostas constantes do PRCI.

O combate à violência contra a população negra, principalmente os jovens, requer políticas públicas que reforcem a posição do Estado brasileiro como provedor de direitos. Deve atuar como garantidor da igualdade de oportunidades, corrigindo distorções sociais historicamente produzidas pelas ideologias e práticas racistas no país. Evidentemente que, tomadas de forma isolada, apenas ações na área da justiça criminal não são capazes de diluir a desigualdade racial. Contudo, se ampliados podem vir a atenuá-la, diminuindo os obstáculos para o desenvolvimento pleno das capacidades de um contingente considerável da população.

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Guia de Enfrentamento do Racismo Institucional

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