Por: Djamila Ribeiro
Costumo dizer que o Brasil é o país da piada pronta sem graça. Com os últimos acontecimentos envolvendo as ofensas racistas que o goleiro Aranha sofreu e a minissérie “Sexo e as nega”, essa constatação só se reafirma. Patrícia Moreira, a moça que ofendeu Aranha ganha um enorme espaço na mídia que a quer transformar em vítima. Quando nesse país programas de TV e jornais deu espaço para alguém se defender e tentar justificar seu crime? Quem ficou com pena e deu espaço para Angélica Aparecida Souza que em 16 de novembro de 2005 foi presa por roubar um pote de margarina? Quem fez moção de apoio a ela, quantas apresentadoras a levaram aos seus programas? Angélica passou 128 dias na cadeia de Pinheiros e por quatro vezes teve o pedido de liberdade provisório negado. Foi condenada a quatro anos de prisão em regime semi-aberto. Por roubar um pote de margarina porque não agüentava mais ver seu filho com então dois anos passar necessidade.
Cláudia Ferreira, a mulher morta e arrastada pela PM carioca, nas manchetes dos jornais virou a “arrastada”, nem nome e sobrenome davam a ela ao contrário do que fazem com Patrícia. Quem criou página de apoio nas redes sociais para a família de Cláudia? Quem ofereceu emprego ao viúvo ou se ofereceu para ajudar os quatro filhos e os quatro sobrinhos que ela criava? Percebe-se que no Brasil, crimes contra a propriedade, no caso de Angélica que roubou uma margarina é mais importante e causa mais comoção do que crimes contra a humanidade, no caso do Aranha. Chamar alguém de macaco é animalizar um ser humano, retirar sua humanidade. Cadê a empatia nesses casos? Patrícia Moreira agora diz que quer torna-se um símbolo contra o racismo. Como uma mulher que até agora não se desculpou por ter sido racista quer ser símbolo de uma luta tão cara? Agora irá trabalhar na ONG CUFA (Central única de Favelas). Piada pronta sem graça. Várias militantes negras com vivência do que é sentir racismo e com acúmulo teórico sobre a questão estão aí desempregadas e uma moça que não assume seu racismo recebe a vaga assim de mão beijada. Destaco que sou contra o apedrejamento da casa dela assim como xingamentos machistas proferidos contra ela. Mas, que sou totalmente a favor de que pague pelo o que fez.
Miguel Falabella cria uma série onde mulheres negras são tratadas como objetos sexuais e quer ganhar prêmio de senhor do ano. Só o nome da série “Sexo e as nega” já é problemático. Mulheres negras historicamente são tratadas com desumanidade e nossos corpos como mera mercadorias. Quantas apresentadoras negras há na TV? Quantas atrizes? Quantas jornalistas? Não precisa ser um grande estudioso das questões raciais no Brasil para perceber o quanto as mulheres negras são invisibilizadas pela mídia. Da história da revista Playboy no Brasil, por exemplo, somente sete mulheres negras foram capas. Não estou de forma alguma concordando com esse tipo de exploração do corpo da mulher, estou dizendo que mesmo nesse mercado, a carne negra também é a mais barata. Aí, mais uma vez nos colocam nesses mesmos papéis estereotipados e temos que agradecer a boa vontade. Para piorar, Falabella se compara a Spike Lee ao dizer que o cineasta também fala de sua realidade. Bom, Lee é negro e fala com conhecimento de causa das dores que o afligem. O que Falabella, um homem branco e rico sabe da realidade das mulheres negras no Brasil? Piada pronta sem graça. E dizer que as militantes que apontaram o racismo da série são capitãs do mato é se utilizar de seus privilégios para nos calar. Ninguém atacou as atrizes da série e sim seu diretor que se acha benevolente por empregar mulheres negras. Alguns senhores de escravos também se achavam bonzinhos por não castigar seus escravos. Queremos outros referenciais, não podemos mais aceitar que a mídia nos reduza somente a essas possibilidades. Quem conhece minimamente um pouco da história no Brasil, sabe que as mulheres negras são tratadas como objetos sexuais desde o período colonial. Ideias racistas devem ser combatidas e não relativizadas e entendidas como “meras opções pessoais de pensamento”, ideologias, imaginários, arte, ponto de vista diferente, divergência teórica, opinião. Ideias racistas devem ser reprimidas e não elogiadas e justificadas. Não adianta dizer que HOJE tudo é racismo mostrando uma explícita ignorância histórica. Esse país foi fundado no racismo, não tem nada de novo. A mídia brasileira, nem de longe, reflete a diversidade do seu povo. E para perceber isso basta ligar a televisão ou folhear uma revista.
Algumas pessoas pensam que ser racista é somente matar, destratar com gravidade uma pessoa negra. Racismo é um sistema de opressão que visa negar direitos a um grupo, que cria uma ideologia de opressão a esse grupo. Portanto, fingir-se de bom moço e não ouvir o que as mulheres negras estão dizendo para corroborar com o lugar que o racismo e o machismo criou para a mulher negra, é ser racista.
Não vamos nos calar diante desses absurdos, de um país onde vítimas viram algozes. Que diretor de minissérie racista se faz de vítima e quer ganhar medalha por empregar negras, não nos esqueçamos que muitas famílias se julgam benevolentes por darem emprego a babá negra. Quem se compadece dos milhares de negros que morrem todos os anos? Das crianças que crescem ouvindo insultos racistas? E o pior é ouvir pessoas dizendo que todo mundo faz isso ou sempre fez como se o fato de isso não se tornar público os ausentassem de culpa. Pois é, antigamente as pessoas morriam de tuberculose. A quem serve esse discurso nostálgico? Antigamente era melhor para quem?
Não nos calaremos. Como diz Maya Angelou no poema “Eu me levanto” (Still I rise), “Pode me atirar palavras afiadas,
Dilacerar-me com seu olhar,
Você pode me matar em nome do ódio,
Mas, ainda assim, como o ar, eu vou me levantar”. E temos dito.
Fonte: Carta Capital