Senso de justiça e retidão, racismo e meritocracia – Cultivar o senso de justiça e retidão como estratégia possível para enfrentar práticas racistas

FONTEPor Lucia Helena de Oliveira Neves, enviado para o Portal Geledés
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“O valor do ser humano está no seu senso de justiça e de retidão” (Mokiti Okada)

 

A saída do chamado “lugar do negro”¹ não decorreu da meritocracia² para mim, mas sim, da postura intransigente de pessoas que, movidas pelo espírito de retidão, procuraram ser justas. Primogênita de sete crianças negras, influenciada pelas revolucionárias ideias de uma mãe cosmopolita ex-proprietária de tinturaria vendida ao casar-se com um trabalhador rural e mudar-se para o campo –, fui a primeira pessoa preta a ocupar alguns espaços antes destinados a pessoas não descendentes dos povos da África subsaariana.

Na zona rural, começamos a trabalhar em tenra idade em casa, nas plantações, como cuidadores de animais e, não raro, como as crianças que “brincavam” com os patrõezinhos. Todavia, meus irmãos e eu somos parte de um grupo privilegiado. Nossa mãe – que havia estudado até a terceira série primária – nos alfabetizou, e, junto com nosso pai, viam no estudo a única possibilidade de negros escreverem história com final feliz

Tão logo conseguíamos caminhar por cerca de cinco quilômetros, éramos enviados para a escola rural. Essa escola precária funcionava numa espécie de caramanchão na casa de um dos empregados da fazenda. A filha mais velha da casa na qual funcionava a escola tinha dezesseis anos de idade e concluíra as quatro primeiras séries do ensino primário. Por isso era a professora de uma classe multisseriada de alunos. Nosso pesadelo racial, o peso da negritude, começou exatamente quando fomos para essa escola.

A professora e sua família, embora tão pobres quanto nós, eram pessoas brancas. Nossos colegas geralmente nos recebiam aos gritos: “os urubus chegaram”! Às vezes nos atiravam paus e pedras e gritavam: “Xô! Urubu comigo é na pedrada!”. Óbvio que não desejávamos continuar na escola. Então, nossos pais utilizavam-se das táticas de convencimento disponíveis e legítimas na época: as surras. Argumentavam: “não permitirei que você seja um burro, uma pessoa sem estudos como eu”. 

Compreendi essa lógica. Ignorei ofensas raciais e empenhei-me para ser a melhor aluna. Leitora voraz, lia de tudo. Antes de completar quinze anos de idade, havia lido a Bíblia duas vezes. Lia escondido jornais, revistas e enciclopédias dos patrões. E, inaugurada a biblioteca na cidadezinha no interior de Minas Gerais onde nasci, li a coletânea “Sítio do Pica-pau Amarelo”. Decepcionei-me, pois os personagens negros eram bonachões e analfabetos, sem riso e sem choro pelas suas próprias histórias e, portanto, no máximo, coadjuvantes. E eu buscava protagonistas. 

As leituras e as convicções da minha mãe conduziram-me à descoberta de que, embora houvesse segregação racial nos Estados Unidos e uma sangrenta luta pelos direitos civis, os afrodescendentes de lá conseguiam remuneração mais justa, e seus conhecimentos científicos eram utilizados nos grandes projetos em andamento na época. Desejei aquilo. Afinal, eu, hoje com 62 anos de idade, fui criança, adolescente e jovem impulsionada pelas propagandas do regime militar. E, sob o lema “eu te amo meu Brasil, eu te amo. Meu coração é verde, amarelo, branco e azul anil³ , decidi: brilharei aqui. Assim, consegui aprovação em vestibulares de universidades federais para cursos dominados pelas elites brancas, numa época em que não havia cotas raciais e eram raríssimas as faculdades particulares.

No primeiro curso superior, somente participava de trabalhos em grupo quando os alunos eram distribuídos em ordem alfabética. Os colegas compeliam-me a fazer o trabalho sozinha e todos o assinavam. Afirmavam saber todas as disciplinas, pois seus pais ou parentes seriam profissionais da área e amigos dos professores e que, portanto, seriam aprovados naturalmente. Buscavam silenciar meus protestos com ameaças verbais no sentido de ser-lhes fácil criar situações que resultariam em expulsão ou, no mínimo, na atribuição de nota zero a minhas provas ao ser flagrada enquanto supostamente colava resposta de colega. Precisei trancar esse curso por ter contraído doença infectocontagiosa. Ao retornar à faculdade, sentia-me fracassada. Não suportei as pressões psicológicas exercidas por terceiros e por mim mesma. Desisti do curso.

Entretanto, senti realmente o peso do racismo alguns anos depois, quando era acadêmica de outro curso e em outra universidade federal. Os primeiros ataques ocorreram durante a aula, na presença da professora e dos colegas, homens e mulheres supostamente defensores da ética e da justiça. Vamos aos fatos. Um colega exigia que a professora aceitasse seu trabalho. Depois de discutirem, a professora indagou: “turma, não fixei tal dia para a entrega dos trabalhos?”. Respondi sim antes dos demais, pois habitualmente anoto tudo. Apoplético, o colega, branco, descendente de alemães, gritou: “cale a boca, sua negra! Por isso tenho raiva da Princesa Izabel que, ao libertar os escravos, obriga-me a dividir a universidade com uma negra que deveria estar no tronco ou na senzala!”. Todos silenciaram. A professora encerrou imediatamente a aula. Sozinha na sala, procurava desculpas mentais para as atitudes de todos e repreendia-me mentalmente. Pensava: o agressor é poderoso, mas gosta de ajudar colegas pobres por meio de caronas. Eu mesma já fui beneficiada algumas vezes. Talvez ele já estivesse com descontrole emocional por outras razões. Senti-me mal agradecida. Considerava, ainda, os conselhos tantas vezes repetidos pela minha mãe: “não se meta em brigas entre brancos, pois eles se entenderão e, juntos, ficarão contra você”. Professora e aluno eram pessoas brancas. Senti-me só e pequena diante do poder de ambos, poder esse que acovardou meus colegas. Então, decidi desculpar-me. Mas, ao chegar para a aula no dia seguinte, havia cartazes por toda parte com estas e outras frases racistas: “Sabe quando negro é gente? Quando alguém bate na porta de banheiro e lá de dentro alguém grita ‘tem gente!’”; “Sabe qual a diferença entre uma negra grávida e um carro com pneu furado? Nenhuma, pois ambos esperam macaco”. 

Ingressei nas universidades federais aprovada em vestibulares de ampla concorrência contra dezenas ou até centenas de candidatos por vaga, mediante incalculável esforço pessoal por sempre ter trabalhado, estudado e silenciado meus gritos de revolta contra os ataques racistas. Acrescente-se a isso as inenarráveis renúncias dos meus pais e irmãos para custear despesas com passagens, alimentação e hospedagens para eu prestar provas nas grandes cidades, distantes no mínimo mil quilômetros da nossa residência. Inconteste, obviamente, meu direito de ser acadêmica naquelas instituições, e esse resultado não decorre da meritocracia e, sim, da convergência das forças da minha ancestralidade e de todos os heróis e heroínas afrodescendentes conhecidos e anônimos que não fugiram das lutas antes de mim. É história de superação.

No tocante às posturas de colegas e de professores, resta evidenciado que o nosso racismo encontra respaldo no famoso jeitinho brasileiro alimentado pela falta de cultivo do senso de retidão de caráter. No Brasil, muitas consciências sentem-se aplacadas com práticas supostamente caridosas. Como num pacto entre pessoas brancas, elas buscam encobrir como se processa a reprodução das desigualdades raciais nas relações de trabalho. Essa injustiça materializa-se também na inércia das pessoas amigas autodenominadas não racistas, quando além de não sentirem falta de pessoas pretas em espaços de poder, não respeitam nosso lugar de fala  a ponto de rotularem de “mimimis” nossos clamores contra as injustiças atuais. E mais. Divulgam o aumento de seus privilégios por terem conseguido cidadania europeia e não sentem empatia por não termos como refazer nossa história. Insaciáveis, empenham-se nas posturas impeditivas da concessão de condições mínimas de igualdade de chances para os afrodescendentes, mesmo cientes dos injustificáveis privilégios recebidos por seus ancestrais europeus e asiáticos imigrantes por vontade própria. 

Léxicos e manuais de direito abrigam grande quantidade de tentativas frustradas pelas quais buscou-se definir justiça. Embora relevante, neste artigo não há espaço para essa questão. Ontem e hoje pessoas íntegras, não descendentes de escravizados, reconhecem o justo valor de cada ser humano e promovem mudanças. Pessoas foram justas comigo. Como gratidão a elas, divulgo minha história com o objetivo de multiplicar o contingente de apaixonados pela ética e praticantes do senso comum de justiça, pois que sei da capacidade deles de mudar as histórias e a história. 

Assim, cultivar o senso de justiça e retidão como estratégia possível para enfrentar práticas racistas é proposta ora submetida à discussão, pois como bem afirmou o advogado Barack Obama, à época Presidente dos Estados Unidos, se não estivermos dispostos a pagar um preço por nossos valores, se não estivermos dispostos a fazer alguns sacrifícios para realizá-los, então deveríamos nos perguntar se realmente acreditamos neles. 

 


¹  IBGE  https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/21206-ibge-mostra-as-cores-da-desigualdade e IPEA – Retrato das desigualdades https://www.ipea.gov.br/retrato/pdf/revista.pdf

² Djamila Ribeiro https://racismoambiental.net.br/2016/02/07/racismo-no-brasil-o-crime-perfeito-entrevista-com-djamila-ribeiro/ 2. Silvio Almeida https://mundonegro.inf.br/silvio-almeida-com-falar-de-meritocracia-num-pais-que-mata-um-menino-de-14-anos-que-so-queria-estudar-dentro-de-casa/

³ https://jornalggn.com.br/ditadura/a-historia-do-eu-te-amo-meu-brasil-por-luis-nassif/

Jornal Alto Madeira (RO) Ano 1986\Edição 16924   

Kelsen, Hans. O problema da justiça 

Bento, Cida.  Pactos narcísicos no racismo: branquitude e poder nas organizações empresariais e no poder público.Wikidata Q104696248

https://www.youtube.com/watch?v=mVrTgPcIUgw&ab_channel=CanalGNT

Citação extraída do sítio frasesfamosas.com.br, em 09.01.2021 

 

** Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas do PORTAL GELEDÉS e não representa ideias ou opiniões do veículo. Portal Geledés oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.
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