Numa decisão com rapidez inusual para os padrões da Justiça brasileira, a juíza Marivalda Almeida Moutinho absolveu nesta sexta-feira nove policiais militares acusados de executar 12 pessoas no bairro do Cabula às vésperas do Carnaval deste ano em Salvador, soube o EL PAÍS por meio de fontes familiarizadas com o processo, que corre em segredo de Justiça. A sentença dá um novo capítulo controverso para o caso que mobilizou parentes, ativistas nacionais e internacionais e jogou holofotes sobre episódios de violência policial na Bahia. É também um problema para o governador Rui Costa (PT), hostilizado por militantes de seu próprio partido em junho por respaldar a cúpula da segurança e da Polícia Militar no episódio.
por Flavia Marreiro no Brasil Post
A volumosa denúncia do Ministério Público da Bahia sobre as mortes de Cabula contesta cabalmente a versão do inquérito da Polícia Civil sobre confronto e descreve padrões de execução sumária — por exemplo, a quantidade de tiros e a posição dos disparos que atingiram os rapazes entre 16 e 27 anos. Ela foi aceita em junho pelo juiz Vilebaldo José de Freitas Pereira, que deu início ao processo, mas por causa das férias, o caso foi assumido pela juíza Moutinho. A reportagem apurou que a sentença da juíza se fundamenta num artigo do Código de Processo Civil, apesar de se tratar de uma ação penal, o que chamou a atenção dos que a leram. Cabe recurso no Tribunal da Justiça da Bahia.
“Se essa decisão se confirma, será a segunda morte dos meninos. Não existe absolver em tempo recorde, isso é rito sumário. A juíza teria condições de colher depoimentos, ouvir mais provas, ouvir testemunhas que só falaram acuadas”, diz Hamilton Borges, da campanha Reaja ou Será Morto, Reja ou Será Morta, que milita em favor do direito dos negros e tem feito mobilizações pelo esclarecimento do que chamam de “chacina do Cabula”.
Ameaças a Gallo e pedido de Janot
Os envolvidos no caso relatam sofrer constrangimentos e ameaças veladas e diretas. Entre os alvos da pressão estão os ativistas de movimentos como o Reaja e até mesmo o promotor Davi Gallo, que lidera o quarteto do Ministério Público da Bahia responsável pela denúncia.
“Esse caso envergonha a Bahia, com exceção do Ministério Público”, havia dito, dias atrás, o promotor Gallo. “Nós cumprimos nosso trabalho e vamos continuar cumprindo.”
A repercussão do caso, que mobilizou a Anistia Internacional, a Justiça Global e deputados da CPI que investigou casos de violência contra jovens negros e pobres no Brasil, chamou a atenção do procurador-geral da República, Rodrigo Janot. Segundo a reportagem apurou, Janot fez o pedido para ter acesso aos autos do processo, o que sinaliza que o procurador deve pedir ao STJ (Supremo Tribunal de Justiça) para o que o caso de Cabula passe a instâncias federais. O procedimento acontece quando a Procuradoria avalia que há violações de direitos humanos e constrangimentos para o devido processo no âmbito estadual. Contactada na noite de sexta-feira, a assessoria de Janot não havia respondido ao questionamento do EL PAÍS até a publicação desta reportagem.
A incômodo político provocado pelo caso e o embate entre Ministério Público e a cúpula de segurança baiana só crescem. Os policiais envolvidos, chamados de “artilheiros” pelo governador Rui Costa horas após as mortes, estão sendo respaldados pela Secretaria de Segurança da Bahia. No começo do mês, a secretaria divulgou áudios que mostram traficantes da zona de Cabula lamentando as mortes dos rapazes em 6 de fevereiro. O suposto vínculo entre as vítimas e os criminosos reforçaria a conclusão do inquérito do inquérito do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), que afirma que os policiais agiram em legítima defesa.
“Essa decisão da Justiça serve como blindagem política para o Governo e e para os policiais que atuam em Cabula e em outras partes da Bahia. É muito duro. É uma licença para matar “, lamenta Borges, da Reaja.
De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 11.197 pessoas foram mortas pela polícia brasileira nos últimos cinco anos. A PM da Bahia ocupa o terceiro lugar neste ranking, com ao menos 234 mortes causadas em “confronto” em 2013, segundo o Anuário, embora a Secretaria de Segurança fale em apenas 13.