Ser atendido por um médico negro vai muito além da redistribuição de renda, diz economista

Para Marcelo Paixão, política de cotas fez o Brasil 'se reencontrar com ele mesmo' e tem efeito civilizatório

FONTEFolha de São Paulo, por Felipe Nunes
Marcelo Paixão, professor da Universidade do Texas, Austin - Divulgação

A implementação da Lei de Cotas, que no mês de agosto completa dez anos, tem um impacto político e simbólico que ultrapassa o econômico, diz Marcelo Paixão, economista e professor da Universidade do Texas.

“Ser atendido por um médico negro, bem como dar entrevista para um jornalista negro, vai muito além de se a distribuição de renda aumentou ou diminuiu. Ela diz respeito a uma dimensão estrutural imaterial”, afirmou de Austin, por videoconferência, o pesquisador brasileiro.

De acordo com ele, permitir que mais negros ocupem funções e cargos onde antes não estavam tem “um papel pedagógico, cuja mensuração é muito mais profunda do que a gente poderia estimar originalmente”.

Já uma relação de causa e efeito que meça o impacto na economia do país da política de ação afirmativa ainda não foi estabelecida, afirma —tanto pela falta de indicativos, quanto pelo pouco tempo em que as cotas estão em vigor.

Doutor em sociologia pela Iuperj, ele diz que a lei ajudou a diminuir o desequilíbrio racial e social em universidades e instituições públicas, mas sozinha não é capaz de combater a concentração de renda no país –uma das maiores do mundo.

A Lei de Cotas pode contribuir para a melhor divisão de renda no Brasil? Que impacto a política afirmativa pode ter na economia? 

As políticas de cotas têm um papel estruturante na sociedade brasileira que vai além de uma mera mensuração econômica. Tem toda uma dimensão política e simbólica de mudanças nas ocupações do Brasil.

Ser atendido por um médico negro, bem como dar entrevista para um jornalista negro, vai muito além de se a distribuição de renda aumentou ou diminuiu. Ela diz respeito a uma dimensão estrutural imaterial.

Porque ela trabalha com o simbólico, com uma dimensão política implícita. Porque, agora, estamos tratando de um assunto que foi colocado na redoma, foi colocado debaixo do tapete por muito tempo.

Teve um efeito que eu acho que foi civilizatório. Tomara que a economia melhore, eu acho até que a economia vai melhorar. Eu até suponho que em algum momento virão profissionais tão bem qualificados, tão bem preparados, com tanta energia e com tanto ânimo, que vai gerar um efeito cascata na economia brasileira.

Mas o grande ganho que o Brasil tem não é econômico, o ganho é civilizatório. O Brasil está há 140 anos dando cabeçada. O problema não é a falta de integração, o problema é a injustiça social que ocorre por causa da cor das nossas peles que tem um efeito sobre nós, mas que tem um efeito sobre o país. Esse efeito é econômico, também. Mas ele é um efeito muito mais profundo.

O Brasil, com as ações afirmativas, se encontrou consigo mesmo. Esse encontro consigo mesmo é com a própria história.

É necessário enxergar essas relações mais de fundo. Porque em determinados momentos a conjuntura econômica não vai ajudar. Se a conjuntura não ajudou, o responsável foi a cota? Não.

As cotas, de certo modo, vão transcender esses círculos econômicos. Elas têm uma importância que vão perpassar se a economia está bem. Se a economia vai bem, as cotas ajudaram. Se a economia vai mal, as cotas ajudaram a não piorar.

Pode ocorrer de alguém querer jogar nas nossas costas: a economia está pior porque vocês agora chegaram. Então, eu digo que o objetivo maior é civilizatório do que propriamente apenas econômico.

Óbvio que vai ter algum efeito econômico, na medida em que isso se traduz na desconcentração da renda. Mas colocar essa dura dimensão pode nos trazer algumas armadilhas e é bom a gente lidar com alguma prudência.

O sr. fala sobre o efeito civilizatório da política de cotas, mas existem pessoas que ainda se surpreendem quando veem um profissional negro ocupando um cargo de elite. Para o sr., nesses dez anos já houve algum efeito positivo? 

Podemos pegar como referência as novelas e os atores. Hoje há uma maior visibilidade negra. Me lembro do filme de Joel Zito Araújo, “A Negação do Brasil”, que mostrava que os negros na televisão eram sinônimo de escravo e de empregada doméstica.

Hoje, eu percebo que já começa a ocorrer algo diferente. Me parece que isso é um indicativo de uma mudança que está ocorrendo. O fato é que nós estamos formando mais profissionais negros e, voltando à sua questão, eu quero medir se as cotas foram bem-sucedidas nisso.

Disseram que iríamos fracassar. Mas, se a política fosse um fracasso, os negros não iam conseguir se formar e ficaria tudo como era antes. Vejo que houve essa mudança. Isso tem, de novo, um papel pedagógico, cuja mensuração é muito mais profunda do que a gente poderia estimar originalmente.

Como assim um efeito pedagógico? 

Um maior número de profissionais negros ocupando posições importantes tem um efeito pedagógico à medida que as pessoas vão começando a se acostumar, não se sentem mais surpreendidas pela visualização de peles pretas ocupando espaços originalmente ocupados por quem tinha peles não pretas.

Há uma discussão sobre uma necessidade de revisão na Lei de Cotas. Existem grupos que defendem a cota social e não a racial. Nesse sentido, qual seria o prejuízo para as conquistas dos negros?

Obviamente, qualquer mudança que venha no sentido de eliminar o critério racial das políticas vai ser extremamente injusta.

O objetivo da política de cotas era o de favorecer os mais pobres? Era. Mas o objetivo fundamental era modificar a composição racial no campus universitário brasileiro. E, se uma política que tem por objetivo mudar a composição racial do campus universitário brasileiro retira essa dimensão, obviamente ela começa a dar sinais de fracasso.

Porque, se os jovens brancos ocupam as vagas com maior intensidade, nós podemos até melhorar a distribuição de renda social como um todo, mas do ponto de vista racial estaríamos aprofundando as diferenças.

Acho que devemos, neste momento, manter a política para que ela possa seguir dando resultados. Nós tivemos 500 anos de segregação, exclusão, discriminação e racismo no Brasil. Vamos resolver tudo em dez? É uma goleada temporal. Nós temos que manter a política e tentar, quando possível, aumentar seu escopo.

Na sua opinião, a política de cotas precisa de ajustes? 

Nesse momento, temos que mudar a política num único plano: é preciso dar mais recurso para a assistência estudantil. É uma maldade estimular e encorajar os jovens a irem para a universidade e depois eles se verem fracassando porque não têm o que seria o elementar.

Sabemos que, para que uma política dê certo, é preciso colocar dinheiro. Nesse terreno, não é necessária uma mudança de escopo, mas, sim, uma mudança de aporte financeiro.

Mais adiante teremos que fazer uma discussão mais séria sobre os efeitos do racismo na sociedade brasileira e começarmos a implementar medidas que também prevejam reservas de vagas a partir de critérios raciais, considerando que essa injustiça perpassa não apenas as instituições de um ponto de vista genérico social e geral, mas ela também se manifesta através das práticas raciais discriminatórias contra negros nos vários estabelecimentos, o que prejudica o seu progresso escolar.

Por que ainda hoje é necessário defender a Lei de Cotas? 

Nós negros temos que mostrar que somos capazes duas vezes, três vezes mais do que um colega que está ali do lado e não atravessou as mesmas dificuldades que atravessamos, inclusive do ponto de vista das discriminações raciais que vêm nos acompanhando desde o momento em que nascemos.

E vamos deixar de hipocrisia. Sou de uma geração que pegou aquele debate: “no Brasil ninguém sabe quem é negro e quem é branco”. Não sabe? Basta ligar a televisão. Não sabe por que é preciso ter política de cotas, mas ao ligar a televisão todo mundo é branco. Dá para ver que houve algum critério de seleção ali.

É preciso deixar de hipocrisia e ir direito ao ponto, não temos mais tempo a perder. Temos um país para construir, ou a reconstruir, depois da destruição desses últimos anos.

Existem barreiras para pessoas que têm peles escuras. “Ah, mas raça não existe.” Peles escuras existem, aparências físicas existem. Existem apropriações simbólicas, culturais, sociais e políticas dessas formas físicas humanas, que acabam criando barreiras para milhões de seres humanos no seu processo de classificação social.

É preciso enfrentar esse problema. Nenhum país se constrói à base de hipocrisia. Sempre achei que conseguiríamos lidar com isso de forma racional, de quem tiver o argumento mais afiado ganha. Mas, depois da morte da Marielle [Franco] ficou colocado que estamos vivendo um momento em que a democracia brasileira colapsa.

Estão nos mostrando quais são os limites da democracia no Brasil. De que não há vaga para a gente, não há espaço para a gente. Não somos obrigados a aceitar. Vamos continuar lutando para que a gente amplie os espaços e nossos direitos. Sabemos que tem jeito.


Marcelo Paixão

Doutor em Sociologia pelo Iuperj, é economista e professor da Universidade do Texas associado ao Departamento de Estudos da Diáspora Africana (AADS) e ao Instituto Teresa Lozano Long para Estudos Latino-Americanos. Antes de vir para Austin, foi professor de Economia da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) por 16 anos, mesmo local onde se formou. Entre 2012 e 2013, foi Professor Visitante na Universidade de Princeton, onde foi membro do Projeto sobre Etnia e Raça na América Latina (Perla).

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