por Ricardo Rego no Jornal Sol
O Brasil discute por estes dias o racismo. Os três principais candidatos às Presidenciais de 5 de Outubro têm propostas para combater a discriminação racial no país, onde mais de 50% da população é de descendência afro-brasileira. Na última semana, o tema ganhou ainda maior relevância. Um relatório da ONU sobre a discriminação racial indica que o racismo no Brasil é “estrutural e institucionalizado” e “permeia todas as áreas da vida”.
O estudo surge semanas depois do guarda-redes do Grémio, Aranha, ser chamado de “macaco” pelos adeptos do Santos, equipa de São Paulo, no final de um encontro entre as duas equipas, e de Pelé relativizar a polémica, admitindo que também ele já foi insultado da mesma forma, o que incendiou ainda mais a opinião pública já indignada.
Em entrevista ao SOL, Adilson José Moreira, professor de Direito na Fundação Getúlio Vargas, com doutoramento sobre a questão racial no Brasil pela Harvad Law School, aponta o dedo às “elites políticas e económicas” que se mantêm “fiéis ao objectivo de manter os seus privilégios raciais”. Defensor do sistema de quotas para negros nas universidades e organismos públicos, alerta ainda que Marina Silva, a candidata que pode vir a ser a primeira mulher negra na Presidência do Brasil, nunca fez da justiça racial a sua luta.
Os três principais candidatos à Presidência do Brasil defendem a manutenção de quotas para negros nas universidades e me serviços públicos. Como é que vê estas propostas?
É importante que a discussão da justiça racial faça parte do programa político dos candidatos. Mas é surpreendente que os direitos de grupos minoritários estejam no centro do debate político e dos planos para a construção da nação, principalmente num momento em que a sociedade brasileira e a comunidade internacional reconhecem que o discurso da democracia racial é uma farsa ideológica.
Concorda então com o sistema de quotas?
Concordo plenamente. Os poderes públicos têm o dever constitucional de promover a inclusão social de grupos socialmente marginalizados e essa política das quotas adoptada tem sido muito bem sucedida. A grande maioria dos alunos tem excelentes resultados académicos e, em alguns, um desempenho superior ao de alunos que não entraram através das quotas.
Em 2008, foi notícia o tratamento discriminatório dado por uma universidade a duas irmãs em que uma entrou e a outra não foi admitida no sistema de quotas. As universidades resistem na aplicação da política?
A implementação precisa ser melhorada. Creio que ela deve ser restrita apenas a pessoas que possuem o fenótipo caracteristicamente negro, pois esse é o factor que produz a discriminação. O sistema de auto-declaração deve ser descartado e as leis que regulam esses programas devem abandonar o termo “afro-descendente”, porque isso gera a possibilidade de falsidade ideológica. Muitas das pessoas que dizem ter ascendência negra não se apresentam como negras e são vistas como brancas, não sofrendo qualquer tipo de discriminação racial.
Como é que se explica que o Brasil, onde 50,7% da população é negra e parda, precise do sistema de quotas para integrar uma população que está em maioria?
Porque nós ainda estamos sofrendo os danos causados pelos 350 anos de escravidão, as consequências das políticas eugênicas que procuraram eliminar a influência africana e ameríndia, como também a discriminação racial sistemática em todas as áreas sociais. O Brasil pode ter se tornado independente de Portugal, mas as elites políticas e económicas permaneceram as mesmas, elas permaneceram fiéis ao objectivo de manter seus privilégios raciais.
Não se devia falar em quotas sociais, em vez de quotas raciais?
Nós negros não sofremos apenas discriminação por sermos pobres, mas também pela estigmatização racial. Não podemos esquecer o facto de que negros estão em uma situação de desvantagem em todas as classes sociais, inclusive nas classes baixas. A experiência social de brancos pobres não é a mesma de negros pobres. Tal como em Portugal, ser branco é uma fonte inesgotável de privilégios sociais. A situação de subordinação social dos negros não é uma consequência da pobreza, mas sim da combinação de estigmatização social e desvantagem material.
De acordo com o documento do Tribunal Superior Eleitoral, que oficializa a candidatura, Marina Silva é de “raça/cor preta”. Ela representa a parcela dos eleitores negros e afro-descendentes?
É difícil dizer isso porque a plataforma de justiça racial nunca fez parte da luta política dela. Marina Silva não construiu a sua identidade política em torno do facto de ser mulher ou de ser negra. Ela é uma ambientalista e sempre procurou se afirmar como tal. Ter uma mulher negra na Presidência do Brasil poderia ser significativa do ponto de vista das relações raciais no nosso país, mas isso não teve um papel de destaque nos debates.
Nos Estados Unidos há um forte movimento negro que se impõe através da cultura, por exemplo, e com forte peso político. Consegue identificar algum movimento deste tipo e com esta importância no Brasil?
O movimento negro brasileiro tem alcançado grandes vitórias que vai da criminalização do racismo à implementação de quotas. Tem-se a impressão que eles não têm força política porque os média, controlados por pessoas brancas, se recusam a falar sobre racismo e dar a palavra aos representantes dos movimentos negros. É certo que eles não têm a mesma penetração social do movimento negro norte-americano teve nas décadas de 50, 60 e 70, mas são interventivos e organizados.