‘Ser exceção sempre dificulta’: conquistas e barreiras vividas pela crescente parcela de transexuais nas universidades

FONTEBBC, por Evanildo da Silveira De Vera Cruz
'As universidade são ainda um lugar de exclusão', diz Marina Reidel, diretora de Promoção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (Arquivo Pessoal)

Provas, leituras, prazos, novas pessoas — estar em uma universidade traz desafios para qualquer um.

Entretanto, para um grupo pequeno porém crescente, estes desafios costumam se somar ainda ao preconceito, à incompreensão e a angústias.

Esse é o relato de transexuais (pessoas que cuja identidade de gênero difere daquela designada no nascimento) que, em um fenômeno recente, estão chegando às universidades brasileiras, seja como alunos, professores ou pesquisadores.

De acordo com a antropóloga Brume Dezembro Iazzetti, pesquisadora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), ela própria transexual, o ingresso de pessoas trans em instituições de ensino superior é recente no país, datando dos últimos dez anos.

Isso é visto tanto em inscrições no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e em outros vestibulares, quanto no aumento da quantidade de defesas de dissertações e teses escritas por eles.

“Os temas abordados são diversos, havendo a presença de transexuais em todas as áreas de conhecimento, da medicina à música.”, diz Iazzetti. “Mesmo assim, esse número ainda é extremamente baixo quando comparado à população brasileira como um todo.”

Pesquisa

Uma pesquisa realizada em 2019 pela Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), conta Brume, mostrou que apenas 0,1% de estudantes de universidades federais se declarou homem ou mulher trans.

“No caso do ENEM, houve 394 candidatos utilizando o nome social em 2019”, explica. “Esse número é expressivo quando comparado aos anos anteriores, mas se mostra baixíssimo perto das 5 milhões de inscrições do Exame naquele ano, e é o resultado de violências anteriores, ainda na educação básica.”

O avanço em números não mostra a luta e sofrimento que estão por trás da história de cada uma dessas pessoas antes de chegar à academia, seja em suas famílias consanguíneas, na educação básica ou no acesso à saúde. E muitas dessas dores também vão porta adentro das universidades quando elas finalmente chegam lá.

Dezembro Iazzetti aponta para uma pesquisa da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) que mostrou que grande parte das travestis é expulsa de casa aos 13 anos de idade, por exemplo.

“Todos esses fatores afetam diretamente o acesso e permanência de pessoas trans na universidade e eventualmente no ingresso ao mercado de trabalho”, diz.

‘Piorava mais ainda quando eu dizia que eu também não era gay’

Fernanda passou por situação em que viu que ‘básico’ da discussão sobre gênero não chegou a membros da academia (Arquivo Pessoal)

As experiências de Fernanda Bravo Rodrigues, mestranda em Psicologia na Universidade Federal do Ceará (UFC), mostram que, embora as universidades possam ter formalmente mecanismos inclusivos, na prática há brechas e distorções que continuam perpetuando preconceitos.

Por exemplo, ao ingressar em sua universidade, havia uma resolução legal permitindo o uso do nome social — aquele que a pessoa trans adota, quando faz a transição de gênero.

“Mesmo assim, logo depois da matrícula, passei por um episódio bem estranho para mim”, conta. “Para que meu nome viesse nos diários como feminino, eu precisaria solicitar ao responsável pelas graduações no departamento de Ciências Sociais. O chefe estava viajando e no lugar dele havia provisoriamente um professor estrangeiro, que ficou incumbido de fazer essa troca de nome no sistema.”

Durante a conversa, lembra Fernanda, tudo ia maravilhosamente bem — se não fosse o fato de ele repetir inúmeras vezes, “meio que com um sorriso amarelo, que achava muito importante pessoas diferentes chegarem à Universidade, que ele dava todo apoio embora não fosse homossexual”.

“Ele repetiu isso umas quatro vezes e piorava mais ainda quando eu dizia que eu também não era gay”, lembra.

“Ou seja, aquela atitude me mostrava que o básico dessa discussão ainda não havia chegado para muitos sujeitos acadêmicos, como o fato simples de que identidade de gênero não é orientação sexual. Isto é, gênero não estava preso, unicamente, aos genitais — o que é o básico que se precisa saber”, acrescenta ela.

Para a mestranda, episódios vividos nas universidades vão ao encontro de outros dolorosos, dos tempos de escola.

“Era muito constrangedor ter que ser chamada por um nome que não condizia com a minha imagem”, recorda de suas experiências, quando era mais nova.

“O banheiro também era um lugar hostil, muitas vezes tive que prender minhas necessidades para que pudesse fazer uso do banheiro feminino — condizente com minha imagem — na hora das aulas, o que fazia com que eu perdesse boa parte da explicação dos professores.”

‘Mulheres trans em áreas duras da ciência (física, biofísica) com posição de professora associada e líder de grupo de pesquisa é algo ainda muito raro no mundo’, conta Ana Lígia Scott (Arquivo Pessoal)

Machismo refletido

Para a cientista da Computação e doutora em Biofísica Molecular, Ana Lígia Scott, do Centro de Matemática, Computação e Cognição (CMCC), da Universidade Federal do ABC (UFABC), o meio acadêmico e científico é uma bolha de conhecimento e tolerância, mas que ainda reflete um pouco do machismo e transfobia presentes na sociedade.

“No meu caso, a dificuldade foi provar, todo dia, para a comunidade científica e acadêmica que eu continuava uma profissional séria, competente, dedicada e produtiva com a transição, o que aconteceu realmente”, explica.

“Acredito que, hoje, eu esteja mais produtiva e feliz no meu trabalho. Mulheres trans em áreas duras da ciência (física, biofísica) com posição de professora associada e líder de grupo de pesquisa é algo ainda muito raro no mundo, imagine aqui no Brasil. Ser uma exceção sempre dificulta o dia a dia.”

Experiência positiva: ‘Minha universidade tem sido acolhedora’

O biólogo Fernando Luz de Castro, professor do Instituto de Microbiologia Paulo de Goes, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) teve mais sorte, pode-se dizer.

“A minha universidade tem sido muito acolhedora”, elogia. “Quanto a mim particularmente, os problemas disseram respeito principalmente a um engessamento do sistema, incluindo o de informática, que precisa de reformas para acolher as pessoas trans. Problemas estes que incluíram a exposição do meu antigo nome de registro.”

Da UFRJ, Fernando Castro faz parte de coletivo de pessoas transexuais da universidade (Arquivo Pessoal)

Ele diz que as pró-reitorias e a reitoria da UFRJ têm se mostrado muito interessadas em prestar auxílio nas demandas de seus professores, pesquisadores e servidores transexuais.

“Faço parte do coletivo Gisberta Salce de pessoas transexuais da universidade”, revela.

“Neste coletivo discutimos estes obstáculos, que se estendem também para uso de banheiros e inadequação no tratamento por parte do corpo técnico e docente, por exemplo. A UFRJ tem nos procurado constantemente a fim de promover ações de inclusão na comunidade acadêmica, como campanhas pelo uso do nome social, sessões de cine-debate e cartilhas informativas.”

Marina Reidel, diretora de Promoção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), diz no entanto que, em geral, a academia ainda “é um lugar com preconceitos”, relacionando-se com o que ainda ocorre na sociedade.

“De certa forma, todas as dificuldades são frutos deste processo. As universidade são ainda um lugar de exclusão e de ausência de determinados corpos que não entram dentro do padrão heteronormativo”, diz ela, que é trans e passou na pele por experiências assim na academia.

Para ela, é desejável ter mais e mais pesquisadores e pesquisadoras trans nas universidades por inúmeros motivos, entre eles a ampliação do “lugar de fala” para representar suas demandas — e orientar como pessoas cis (não trans) podem somar na causa.

“Buscamos apenas viver como queremos viver nossas vidas, amar do jeito que for e poder ser livre das opressões e violências cotidianas que muitas vezes nos ataca e nos mata. Precisamos urgentemente de uma vida mais que humana para entender o que acontece nos dias de hoje. Já avançamos muito — mas precisamos mais e quero ser otimista em acreditar num mundo melhor a todos e todas.”

 

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