Ser homem e negro é um rascunho inconcluso e constante

I’m gonna be the best me…” (da música “I’m Beautiful” de Aloe Blacc)

Dedico essa música e essas palavras aos homens. Homens negros. Um rascunho inconcluso e constante.

Por Tulio Custódio, do HuffPost Brasil

Há algum tempo tenho pensado sobre ser homem, minha masculinidade, minha relação de ser homem com todos em volta. Claro, muito instigado pelo o que ouço, vejo, leio e sinto sobre as mulheres. Mulheres. Feministas, negras, brancas, vivas, se colocando no mundo que estamos, tão machista, tão “apertando” elas por todos os lados. E o quanto aprendo ao ouvir sobre a percepção delas desse mundo, que não diz a mundo claramente o que é machismo. E escuto isso de quem é vítima direta na opressão dessa violência estrutural.

Nisso de pensar sobre ser homem – o que, além de infinitas conversas em bares, inboxs e pensamentos -, vieram coisas a mais.

Sou negro. Ser homem negro não é só “ser homem”. Assim, no “geral genérico”. Se falo de “igualidades”, é essencial fazer o balanço da diferença sobre ser homem negro. Sim, tem. Nós, negros, sabemos disso.

 

Meus amigos, colegas, parças, manos, desconhecidos, todos: homens negros. Essa música é para nós.

Precisamos parar. Sim, parar, e fazer um retiro nosso.

Precisamos repensar nossa condição. Precisamos olhar o que estamos fazendo conosco. Nossa sexualização, nosso lugar de meio na escala das opressões e privilégios. Precisamos lembrar onde estamos. Lembrar que podemos ser amados, mas que nossos corpos, de uma forma ou de outra, serão sexualizados e fetichizados. E isso, ou as consequências materiais e físicas disso, não é ser garanhão ou o cara mais foda do baile.

Isso não vai curar as feridas abertas pelo racismo que sofremos e sentimos em cada passo. Aquele sorriso de desejo que podemos receber não supera o rasgo que a opressão do racismo impõe sobre nós. Sim, parece que nutre o ego. Mas não resolve, não supera. Ego aqui é o elo mais fraco da história.

Homens negros. Nós precisamos olhar o que estamos fazendo conosco. E também o que estamos fazendo com o outro, em específico com as mulheres. Com todas elas.

Como estamos tratamos as mulheres em torno de nós? As negras. As brancas. Ou de qualquer outro grupo étnico. Como estamos nos tratando sobre a forma como outros homens tratam as mulheres que estão em torno dele. E todas as outras mulheres.

E as mulheres negras? Como estamos mesmo ajudando a superar as dores do corte da navalha do racismo e do machismo entre nós mesmos. Estamos ouvindo as questões da mulher negra, e nosso lugar nelas? Estamos explicitando para mulher branca o lugar dela também nas questões que nós sofremos? Ou estamos reforçando algo que não (não mesmo!) nos ajuda em nada: machismo? Isso é sobre nós também.

Não precisamos ser essa figura que o racismo construiu: fechada, sisuda, machucada, mas “firme”. Estereótipo. Sim, é a máscara perfeita construída pela visão de mundo racista e machista. E ela não cabe em nós. Pode parecer que cabe, em especial no machismo, mas não cabe. As mulheres estão nos mostrando isso. Inclusive, as mulheres negras estão nos alertando seriamente sobre isso.

Quando vamos parar, nós, entre nós, para fazer um balanço? Ou estou perdendo algum outro consenso que estão fazendo e não vi? Não é o que leio, vejo, sinto. Entre nós. E no olhar delas quando nos veem. E no nosso olhar também. Acho que não queremos esse não-lugar. O racismo já fez isso conosco, não? Precisamos mesmo ocupa-lo?

Acredito que precisamos de “amor próprio”.

Não é apenas auto estima. Não é se sentir garanhão. Não é se sentir útil. Nem dominador. Nem amado. Somente. É algo além. Amor próprio, por nós, por quem somos, pela história que nos construiu no lugar que estamos, nas posições que estamos prostrados. Amor próprio que considere que, sendo homens negros, enfrentamos racismo – sim, ou dá para acreditar mesmo que somos iguais ao homem branco, não dá – e precisamos lidar com machismo. Mas talvez outras coisas que, se não pararmos para nos olharmos, não vamos além.

“I’m gonna be the best of me”. Vamos ser o melhor de nós. Para nós. Para geral na sequência. Em todos os sentidos.

Adendo pós-escrito (2016):

A primeira versão desse texto publiquei há quase um ano atrás.

A ideia era simples e continua a mesma: a necessidade de nós, homens negros, de olharmos para si e para os lados; e ver que o reflexo de nossas próprias masculinidades cresce em dimensões exponenciais destituídas de nossa própria dimensão e compreensão de ser homem e ser negro. E reforçar que não é possível construir e reconfigurar essa noção sem escutar as mulheres. E também não é possível reconstituir essa visão se pautando em uma porção apenas do que é ou seria ser um homem negro.

O que quero dizer com isso?

Que o ideal de homem-negro-favela-hood-cara-fechada (aquela visão que muitos de nós aprendemos nas letras de rap dos ano 1990 do homem negro sério, bravo, resistente contra tudo) não atende muitas vezes nem mais as perspectivas de quem as criou. Elas foram um ponto de partida, claro. Porém precisam de tratamento, reflexão e autocrítica.

É uma parte de construção de masculinidade, mas ela não dá conta do universo de complexidades que nós, homens negros, estamos inseridos. E pior: muitas vezes ela se escora numa visão machista de mundo, na qual – mesmo de maneira “despretensiosa” – o homem só consegue construir seu valor ao negra ou diminuir o valor da mulher (objetificando sexuando ou moralmente no caso das mulheres que poderiam ser parceiras ou aliadas; ou fetichizando-semi-endeusando figuras de laços próximos, como mãe e irmã – e, dessa maneira, retirando a humanidade dessas pessoas.

Ou que ideal de homem-negro-ousadia-e-alegria também precisa URGENTEMENTE ser revisto. Esse, na verdade, já passou da hora. Não pela parte do machismo, que também se sustenta, mas desse lugar objetificado do negão-sedutor-pego-todas-e-tô-na-risada, achando que ser homem negro é ser o homem que apesar dos pesares (opressão racial e maioria das vezes de classe) teria o desejo de todas as mulheres ao seus pés – e uma disposição sexual-animalesca para satisfazer todas elas. Todas. Definindo, portanto, o lugar desse homem no “circuito sexual e de afetividades” na sociedade.

Aliás, vale ressaltar e grifar, tratar desse assunto não significa falar (apenas) de palmitagem, amigos.

Discutir masculinidade negra é muito mais do que tratar sobre quem você pega, se relaciona, casa ou abandona. Discutir masculinidade é refletir também sobre lugares nos quais NOS colocaram – e não nos lugares que nós mesmos construímos para nós, criamos para nós a partir de nossa autonomia enquanto sujeito-de-nós-mesmos.

O óbvio: ouvir e pensar sobre a crítica extremamente coerente feita pelas mulheres negras sobre palmitagem é importantíssimo. Ela pode e deve compor nossa reflexão para construção desse lugar de masculinidade negra. Amor próprio. Legal, mas ela não é o único ponto constitutivo de ser homem negro!

Não dá para construir masculinidade entre nós, homens negros, achando que se trata apenas de responder, reagir ou ignorar (benefício de quem está uma escala acima na opressão é poder ignorar um dado, pense nisso) a questão da palmitagem. Isso é só um aspecto, mesmo que de uma dimensão (reveladora em muitos quesitos). Apenas uma.

Para estressar um pouco mais esse ponto, para tentar abrir caminhos para outros tópicos de reflexão: talvez o interessante da discussão (leia-se reação de nós, homens negros, no geral) sobre palmitagem é que ela revele muitos lugares não acessados e evitados pelo homem negro. E são evitados porque adentram terreno do auto-sentimento de exclusão, da compreensão que o desejo, a “autenticidade” e a própria imagem de si são MUITO pautadas racialmente e sexistamente (machista) no homem branco. Isso dói. Isso, para muitos, é inadmissível. Olhar no espelho e ver o outro: a imagem do que te oprime, te anula, te odeia, como imagem de si. Odiar a si. Anular a si. Isso dói.

E vemos exemplos explícitos disso no tratamento que alguns homens negros, em ambiente de redes sociais – claro que o mesmo é limitado, mas revelador de muitos códigos explicitados no offline – dão para temas de sexualidade e afeto, seja pelo tratamento oferecido a mulheres negras quando o tema é afetividade; seja comemorando “morte de mulheres feministas” ou o “poder do pênis negro em penetrar qualquer dimensão” – e respaldando (pasmem!) falas com “Poder para Povo Preto”.

Alguns até arriscam, em um pseudo afrocentrismachismo-perturbado-de-sentido-e-contexto citar pensadores como Franz Fanon; e só demonstram como a vitrine dessa masculinidade porcamente banalisada na discussão racial expõe a fraqueza e vergonha de nós mesmos em mostrar que , além de não ler os caras que citamos,  não estamos mergulhando nada em uma reflexão sobre nossa realidade.

Portanto, esse adendo reforça que a busca pelo melhor de nós mesmos – por muito tempo pautada na luta contra racismo – precisa, hoje, indubitavelmente passar por enxergar o que está em nosso entorno (como recortes de gênero e sexualidade).

Precisamos nos esforçar – agir, fazer, inserir – para realização de uma desconstrução crítica e reconstrução (dolorosa) de quem somos e para onde vamos. Como homens negros.

Quando comecei a pensar sobre essas questões, achava que eram para o “homem de todos os grupos étnicos e raciais” (leia-se brancos, negros, amarelos, etc). Ledo engano. Apesar de masculinidades ser um tema importante para todos os homens – e incluo os trans, que muitas vezes são deixados de lado dessas reflexões – , acredito que essa reflexão precisa atingir principalmente e primeiramente os homens que, no contexto estrutural, estão mais destituídos de capitais (financeiros, sociais, simbólicos), visibilidades e oportunidades.

Precisa atingir os homens que estão mais próximos na escala de opressão e violência contra as mulheres (que também estão mais abaixo na linha de opressão, no caso, as mulheres negras). O homem que, mesmo sendo homem numa sociedade machista (e, portanto, poder exercer opressão sobre uma mulher), pode ser objetificado. O homem que até pode ter a sensação ilusória de poder por ter um pênis.

Mas não compreende que esse poder não é e nunca será total, e sim apenas metonímico, ou seja, de uma parte: o pênis. Esse pênis é que o objetifica porque é o pênis “valorizado” enquanto parte, e nada mais que isso. E, se o poder é de uma parte, e ela é objetifica (você é valorizado apenas pelo pênis que porta), significa basicamente que você não tem poder algum. Simples. Objeto. Nós, homens negros.

Para finalizar: O melhor de nós mesmos pode ser construído e é lugar de sujeitos. Não de objeto. Então vamos fazer isso.

 

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