Ser negro é nascer lutando

A força do movimento negro

Por Patrick Chagas, do 

Ainda adolescente, Vilnes Gonçalves Flores Junior já acumulava vivências que a maioria das pessoas não experimenta ao longo de uma existência inteira. Aos 11 anos, precisou lidar com a ausência do pai, um policial militar que foi morto dentro de um quartel. Após o incidente, que jamais teve suas circunstâncias esclarecidas, em 1978, ele e sua família deixaram a localidade de Barragem de Itaúba, no distrito de Arroio do Tigre.

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Com quase 30 anos de militância, Ney D’Ogum recebeu, no ano passado, o Prêmio Diversidade RS na categoria Cultura Negra. (Foto: Jean Pimentel, 5/11/2015)

Novamente morando em Santa Maria, cidade onde nasceu, conheceu nos bancos escolares uma das mais cruéis e desumanas formas de violência: o racismo. Adjetivos como macaco, “xibungo”, narigudo e beiçudo eram comuns. Como explicar a um adolescente em pleno processo de formação intelectual que ele é discriminado por causa da cor da sua pele? Para tal atrocidade não há repostas fáceis. Não significa, porém, que não haja respostas.

Enquanto a África do Sul, governada por Frederik Willem de Klerk, vivenciava as consequências do regime de apartheid, Vilnes encontrava no movimento negro a força para superar os desafios que o acompanhariam pelo resto da vida. À época, escapava da mãe, inflava o peito para aumentar o corpo franzino e passar a impressão de que realmente tinha a idade que dizia ter. Então, corria para um reduto conhecido como Buraco Quente. No espaço, onde ocorriam os ensaios da Escola de Samba Vila Brasil, negros, homossexuais, contraventores e intelectuais ouviam precursores como Osman Ramos Corrêa, recitando poetas negros e falando sobre a falsa ideia de democracia racial no Brasil. Lá, também experimentou a pluralidade da nossa sociedade.
Hoje, aos 46 anos, Vilnes acredita fielmente que foi salvo no momento em que conheceu uma história diferente daquela ensinada na escola.

– Na minha escola, eu só via o negro inferiorizado. Não havia heróis negros, todos apresentados pela escola eram brancos. Mas eu já sabia de Zumbi dos Palmares, já sabia de Machado de Assis. Eu tinha certeza que aquilo não era verdade e não me conformava – lembra.
E, assim como Vilnes, que entronizou essa omitida passagem da história brasileira como quem veste a proteção de Ogum, milhões de negros e negras vêm, dia após dia, lutando para reverter a nociva herança dos 354 anos de escravidão no país.

As vésperas do simbólico 20 de novembro, quando se celebra o Dia Nacional da Consciência Negra, o MIX mostra que, ao contrário do que parte da população acredita, privilégios eurocêntricos não são cláusula pétrea na sociedade brasileira. Como disse certa vez o líder religioso agraciado com o Prêmio Nobel da Paz, em 1984, por sua luta contra a segregação racial, Desmond Tutu: “Se você é neutro em situações de injustiça, escolhe o lado do opressor.”

A construção de uma nova história

O Dia Nacional da Consciência Negra remete ao dia em que Zumbi dos Palmares, um dos mais celebrados líderes quilombolas da história brasileira, foi perseguido e assassinado, em 1695. Embora venha sendo construída há tempos pelo Movimento Negro, foi somente em 2003 que a data foi reconhecida oficialmente pelo Estado Brasileiro, por meio da Lei 12.519, que a incluiu no calendário escolar. O real avanço, no entanto, vai muito além de uma representatividade no calendário.

Como explica a professora Maria Rita Py Dutra, mestre em identidades sociais e etnicidade e militante do Movimento Negro, em primeiro lugar, a data remete à resistência do povo africano diante do apartheid. Também simboliza líderes como Steve Biko, que mesmo correndo o risco de ser preso, instrumentalizava politicamente o povo sul-africano, falando do orgulho de ser negro e salientando os valores civilizatórios do povo.

Se era transformação que o poeta porto-alegrense Oliveira Silveira queria quando capitaneou a construção da data, sob a imortalizada imagem de Zumbi, essa mudança continua em pleno desenvolvimento.

– Acho que vivi muito tempo da minha vida como boa parte da população negra, aceitando o racismo e todos os diferentes tipos de preconceitos como se fosse algo naturalizado, que não poder ser combatido – conta João Heitor Silva Macedo, 39 anos, professor de história, filosofia e sociologia.

Há 15 anos, o educador encontrou no curso de História da UFSM o embasamento teórico e a materialização de conhecimento que o possibilitaram a se posicionar criticamente diante deste tipo de questão social. Durante a formação, acabou pesquisando populações indígenas. Esse contato fez com que se desse por conta que pouco sabia sobre a história de seu povo, há centenas de anos negligenciado.
– Comecei a questionar: cadê a história do negro no Brasil e a minha identidade negra? – revela João Heitor.

Em 2001, o ingresso na especialização em museologia foi um divisor de águas. Ao lado de Giane Vargas Escobar, pesquisou a história do então Clube Treze de Maio e percebeu que o local estava diretamente ligado a história do movimento negro santa-mariense e à sua própria família.

– Isso nos despertou outro olhar. Vimos a possibilidade de contar a história do negro sob outra perspectiva. Não mais pelo viés da mazela, do sofrimento e da escravidão, mas, sim, do negro que construiu o Brasil – explica João, que, hoje, também é diretor do Museu Treze de Maio.

É preciso debater humanidade

Não por acaso, João Heitor Silva Macedo ressalta o caráter simbólico da construção dessa nova história simbolizada pelo Dia Nacional da Consciência Negra.
– Se começa a contar a história de um homem revolucionário, que lutava por liberdade e que serviu de inspiração para outros revolucionários que vieram ao longo da nossa história tentando construir um Brasil diferente, melhor, mais igualitário, contra a violência e sem imposições arbitrárias – argumenta o militante.

O professor acredita que as lutas passaram a ter outro significado após o 20 de novembro. Talvez, por isso, também vislumbre a data como uma oportunidade para que a sociedade faça um estudo de consciência e, acima de tudo, para que se discuta humanidade.

Realmente, basta olhar para os dados da Safernet Brasil para perceber a necessidade urgente de reavaliar nosso conceito sobre humanidade. Há nove anos atuando no Brasil, a ONG recebeu nesse período 469.942 denúncias anônimas de racismo, envolvendo 68.940 páginas escritas em sete idiomas diferentes. Conforme o estudo, somente no ano passado, mais de 86,5 mil casos de ódio a negros e outras etnias foram relatados.

De acordo com a Secretaria de Políticas Públicas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), secretaria do governo federal com status de ministério, o número de denúncias praticamente dobrou em três anos. Em 2011, a ouvidoria do órgão recebeu 219 queixas. No ano seguinte, o número aumentou para 413 e, em 2014, chegou a 425.

A boa notícia é que os registros de casos de injúria racial e racismo parecem ter crescido na mesma proporção em que a população se tornou mais conscientizada e encorajada a denunciar, a exemplo do que fez, recentemente, Tais Araújo. No final de outubro, a atriz foi alvo de ataques racistas na internet e o caso foi parar na Polícia Federal.
Para João Heitor, casos como esses são a prova de que o racismo não acontece só de vez em quando, ou porque uma pessoa está se vitimizando.

– Acho lindo quando acontece com uma pessoa famosa, porque daí não é o João Heitor, da Vila Oliveira, quem está falando. Quando isso aparece na grande mídia é como se a cortina tivesse caído e pego todo mundo pelado lá atrás. Não admito que, em 2015, meus alunos ou meus sobrinhos ainda sofram com isso – afirma.

As marcas da discriminação

Apesar do impacto que o racismo, seja ele virtual ou não, causa em suas vítimas, há quem tente relativizar o assunto. Além de não enxergar a legitimidade da causa, essas pessoas acabam colocando em xeque os prejuízos desses atos. Mas somente quem sente na pele consegue expressar as marcas dessa opressão cotidiana.

Em maio passado, Vilnes Gonçalves Flores Junior, mais conhecido com Nei D’Ogum, saía de uma reunião na Secretaria Municipal de Cultura, onde acertava os últimos detalhes do Festival Municipal de Artes Negras (Fesman), do qual é um dos organizadores, quando experimentou, novamente, o significado real da palavra racismo.

Antes de pegar o ônibus rumo à UFSM – onde atua como colaborador da Pró-Reitoria de Extensão, num projeto chamado Negritude, e está prestes a se formam em Artes Cênicas – resolveu espantar o frio tomando uma xícara de café com leite. Logo após deixar o estabelecimento, na área central, foi surpreendido por quatro viaturas policiais. Da suspeita da dona do local, assaltado três vezes em cinco meses, às ordens de “para, não se mexe, abre a mochila. Cadê a arma?” não demorou mais do que poucos minutos. Mas os traumas causados pela opressão, mesmo em uma pessoa conhecida pelas décadas de atuação na promoção da cultura negra, continuam.

Sob a proteção dos santos que colorem seu terreiro, onde pratica sua religião de matriz africana e também recebeu a reportagem, Nei se mostrou visivelmente emocionado ao lembrar do fato.

– Dói muito, leva às lagrimas. Dentro do ônibus, eu chorava escondido. Tua identidade é posta em xeque, tua autoestima baixa e você se sente perseguido. Isso nos faz questionar a sensibilidade dos nossos iguais, os não negros. – conta Ney, enquanto lembra da professora Vera Valmerate, quem o iniciou nas leituras que não permitem que derrubem.

O extermínio negro

Quando Nei expõe sua sensação de insegurança em razão de sua cor da pele, ele tem motivos a para tal. De acordo com o Mapa da Violência 2015, os principais mortos por armas de fogo no país têm algo em comum: a cor da pele. Enquanto o número de pessoas brancas mortas por arma de fogo caiu 23%, entre 2003 e 2012, a quantidade de vítimas negras cresceu 14,1%. O estudo coordenado pelo sociólogo Julio Jacobo, mostra ainda que somente em 2012, morreram 2,5 mais negros do que brancos.

O mais estarrecedor é pensar nas 320 mil pessoas negras mortas a tiros de 2002 a 2012. É como se uma cidade de porte médio, como Santa Maria, fosse coberta de corpos crivados a bala. Um dos motivos para essa disparidade, segundo o estudo, deve-se a fatores econômicos. Enquanto as ações de segurança pública priorizam áreas mais abastadas, onde há também a atuação de segurança privada, as periferias, preferencialmente ocupadas por negros e pessoas de baixa renda, contam com o mínimo de proteção do Estado.

O racismo para além das ofensas

Negar a existência do racismo no Brasil é contribuir para a perpetuação do mito da democracia racial. E não há mais como pensar o racismo somente como ofensas e injúrias. Conforme Maria Rita Py Dutra, ele é uma ideologia que percebe determinados grupos, em virtude de suas características biológicas ou culturais, como inferiores e menores. Nesse bojo, cabe ainda a absurda ideia de que existem lugares para negros, para indígenas e para brancos.

O professor João Heitor Silva Macedo explica que a abolição da escravatura ocorreu em 14 de maio de 1888. Nesse dia, os negros foram soltos sem qualquer política pública que desse a eles o mínimo de condições de sobrevivência na sociedade.

– Ou seja, todos são iguais perante a lei, mas nem todos partem da mesma igualdade – comenta o militante.
Para o cientista político e professor do curso de Gestão Pública da Unipampa Guilherme Howes é um absurdo acreditar que, em algum momento, o país viveu uma democracia racial. Ele explica que nos anos que seguiram a libertação dos escravos, o abismo entre brancos e negros só fez acentuar-se. Pessoas de pele escura, descendentes de escravos, ex-escravos, mesmo que possuíssem dinheiro para adquirir propriedades, eram impedidos arbitrariamente de escriturá-las. Também não podiam registrar formalmente empresas nas casas notariais. Até, pelo menos, os anos 1920, jovens e crianças negras não podiam frequentar os bancos escolares, salvo raríssimas exceções.

– Existiu portanto um apartheid formal e perverso silenciado pela historiografia, negado pela política e afirmado pela cultura brasileira que perdura até os dias de hoje e dá sinais de recrudescer a cada dia quando fingimos acreditar que haja uma democracia racial – avalia.

E se engana quem pensa que, 127 anos após a abolição da escravatura, essa disparidade não mais existe. Howes diz que o racismo não é um fantasma do passado, mas, sim, um elemento vivo e ativo. Ele tem raízes profundas e históricas em nossa cultura escravocrata e monárquica, que naturalizou privilégios e que até hoje vê com bons olhos o popular “jeitinho,” sem conseguir perceber o quanto é absurdo moralmente não valorizar o trabalho dos outros.

– Somos o único país do mundo que ainda constrói o quartinho da empregada, que é uma reminiscência clara à senzala dos séculos 17, 18, 19. É a senzala moderna. O elevador de serviço, que não serve exatamente para os que estão em serviço, mas para os que são serviçais, que por mais que estejam de folga, não têm acesso aos elevadores dos patrões. Ele é a porta dos fundos das cozinhas das “casas grandes” – diz.

O cientista político afirma ainda que estes são exemplos claros de que não superamos nossa cultura escravagista e racista.
– São práticas perversas que ensinam a exclusão na prática. Uma criança que como com sua mãe (doméstica), depois dos patrões aprende o que é segregação e racismo sem que nenhuma palavra tenha sido desferida a ela diretamente – conclui.

Dizer não às cotas também é discriminação

Nei D’Ogum lembra que o Brasil tem a segunda maior população negra do mundo, atrás somente da Nigéria. O militante explica que mais da metade dos brasileiros são negros, mas essa representação não ocorre na prática. Ou seja, a população negra não está efetivamente inserida em setores produtivos como o mercado formal de trabalho, as instituições de ensino e tampouco ocupando lugares de destaque na mídia.

Para a antropóloga Maria Rita Py Dutra, a não aceitação de mecanismos de inclusão, dentro desse sistema de opressão que privilegia um grupo racial em detrimento de outro, também pode ser entendida como uma forma de racismo. E é isso que faz com que a invisibilidade de estudantes negros nas universidades públicas brasileiras, por exemplo, tenha sido naturalizada de tal forma, que ninguém questiona.

– A universidade pública, gratuita e de qualidade, antes das cotas, destinava suas vagas aos estudantes que realizavam seus estudos em escolas privadas, frequentando cursinhos suplementares, enquanto que ao estudante de escola pública, filho da classe trabalhadora, cabia completar as vagas que sobravam. Tínhamos uma universidade voltada aos interesses da elite nacional – avalia a pesquisadora, lembrando que, após a implementação das cotas, 50% das vagas da UFSM são destinadas a estudantes de escolas públicas, além de ser consideradas as categorias: preto, pardo ou indígena e portador de necessidades especiais.

Educação a serviço da conscientização

Desde que se somou à causa de seu povo, há quase três décadas, Nei D’Ogum viu uma série de avanços institucionais e presenciou a implantação de inúmeras ações afirmativas. Além da Constituição de 1988, que tornou o racismo um crime inafiançável e imprescritível, com penas que chegam a três anos de reclusão, o militante cita a 1ª Conferência Nacional de Promoção de Igualdade Racial, até então inédita no Brasil. Realizado em 2005, em Brasília, o encontro definiu uma série de diretrizes voltadas à educação, cultura, mercado de trabalho, entre outras.

– Depois da Universidade de Brasília (UnB), a UFSM é a segunda universidade pública brasileira a adotar o sistema de cotas. E os negros não pleiteavam somente as cotas para afro-desentendes, mas, também, para filhos de trabalhadores, para portadores de necessidades especiais e indígenas – comemora Nei.

Da mesma forma, o professor João Heitor ressalta a grande mudança trazida pela Lei 10.639, em 2003, que torna obrigatório o ensino da cultura afro-brasileira e da história da África nas escolas. Claro, houve dificuldades em sua implementação. Em contrapartida, o professor acredita que esses obstáculos vêm sendo superados. Ele conta que a bibliografia sobre a cultura negra aumentou consideravelmente, possibilitando uma melhor formação aos educadores. Prova disso, segundo ele, é que, às vésperas do Dia Nacional da Consciência Negra, praticamente todas as escolas de Santa Maria estão buscando formação com inúmeros coletivos da cidade.

Como professor de história, filosofia e sociologia, João Heitor acredita que, somente quando houver um equilíbrio no conhecimento cultural sobre o branco europeu, o negro e o índio, o racismo será efetivamente combatido. Isso porque as três matizes que formam a cultura brasileira irão se ver representadas de forma igual na história do país.

Enquanto isso não ocorre, ele se orgulha em olhar para as ruas santa-marienses e ver negros usando cabelo black power, com trança nagô, valorizando as cores da África e falando de negritude. Para o militante, uma significativa evolução se comparada à sua época de adolescente, quando ele mesmo não queria assumir sua negritude.

– Hoje se conta uma história mais bonita e que antes não se contava. Essa mudança social é o que se almejava quando se implementaram essas políticas públicas. Não está acontecendo massivamente, mas está acontecendo. Você entra em uma universidade e encontra quatro ou cinco coletivos trabalhando a diversidade, o movimento negro, as questões sexuais, homofobia – avalia.

Mudar o pensar, para mudar o formar

Foram muitos os avanços conquistados pelo Movimento Negro. Mas há também o consenso de que há muito a se consolidar. Como educador, João Heitor acredita que a educação seja a mola propulsora dessa transformação. Para começar, a Lei 10.639 precisa ser aplicada em todos os estabelecimentos de ensino. Outro ponto destacado pelo militante é que o debate precisa ser contínuo para que se mude também estruturas de ensino norteadas por conceitos extremamente antigos. Para isso, acima de tudo, João Heitor diz é preciso que o professor mude sua forma de pensar, consequentemente, mudando também sua maneira de formar.

– Essa mudança tem que ser epistemológica, na forma de pensar, nas metodologias. E é isso que movimento negro prega, que a gente traga outros referenciais de conhecimentos, como as filosofias africanas e das nossas comunidades tradicionais indígenas para que haja equilíbrio entre essa ciência e tecnologia que nos foi trazida pela Europa, mas que não é o conhecimento hegemônico do mundo. A gente precisa ter um conhecimento que não seja mais universal, mas, sim, pluriversal – argumenta.

Já a pesquisadora Maria Rita Py Dutra reafirma que o modelo social em que vivemos é excludente e gerador de desigualdades. Nele, capital e trabalho estão em permanente tensão. A militante afirma que chegamos ao estágio em que o racismo se revela, em que coisas que eram pensadas, mas não eram ditas, vêm à tona.

– Estamos na fase em que a máscara da democracia racial caiu por terra. O Brasil se mostrou como um imenso país hipócrita e racista, indo ao encontro do que circula pela Internet nos últimos dias: “a casa grande surta, quando a senzala aprende a ler. O que falta são os sistemas de ensino cumprirem a lei que obriga o ensino da história e das culturas africana e indígena, aprender a conviver na alteridade e a sentir orgulho da nossa história, da nossa capacidade de resistência. É olhar o passado e projetar o futuro – conclui.

Os traços da valorização

Militante e desenhista autodidata, Alexon Messias da Rocha faz de sua arte um mecanismo de empoderamento do povo negro. (Foto: Germano Rorato, 9/11/2015)

Basta uma rápida conversa com Nei D’Ogum para perceber nele uma inesgotável fonte de resiliência. Algo, segundo o militante, construído dentro do seio familiar. Como uma forma de que ele e seus cinco irmãos percebessem sua negritude como algo positivo, a mãe, uma mulher negra que estudou até a 4ª série, fazia uma correlação dos pequenos com doces saborosos.
– Ela relacionava doces gostosos a apelidos carinhosos dentro do seio familiar. Eu era o doce de coco queimado – lembra.

Assim como Nei, que teve contato desde cedo com essa exaltação da negritude como algo bom, outros tantos dependem de outros meios. Há poucos dias, o cineasta gaúcho Jorge Furtado, autor da série Mister Braun, protagonizada pelo casal Taís Araújo e Lázaro Ramos, publicou no jornal Zero Hora, um texto no qual falava que “uma etapa fundamental deste processo civilizatório é a construção de um imaginário positivo habitado por personagens negros”. É dessa forma, retratando por meio da arte as particularidades e belezas do povo negro, que Alexon Messias da Rocha, 23 anos, dá sua contribuição para reverter a premissa de que o Brasil é um país miscigenado e, por isso, não há racismo e discriminação por aqui.

Nascido em Tupanciretã, Alexon veio estudar em Santa Maria, em 2010. Autodidata, começou a desenhar ainda pequeno, quando reproduzia mangás com os primos. Nessa época, já se arriscava nos retratos de personagens negros. Algo natural, afinal, eles fazem parte de suas referências culturais e de sua formação como pessoa.
Mas foi quando ingressou no curso de História da UFSM que teve contato com o Movimento Negro de Santa Maria e acabou conhecendo o Museu Treze de Maio, que sua arte tomou o rumo sem volta do engajamento. Alexon conta que encara seus trabalhos como um registro histórico de uma pessoa que está dentro do movimento e que enxerga e vive as particularidades do negro no Brasil. O jovem explica que se olharmos os registros históricos sobre a representação do negro dentro da arte nacional, esses personagens aparecem muito mais como uma ferramenta do desenvolvimento do Brasil. Ou seja, não se entende esse sujeito, não se sabe quem ele é, que características ele tem ou mesmo suas particularidades na sociedade.

– É isso o que eu tento trabalhar, junto a valorização da identidade, trazendo de uma forma positiva a representação do negro. Não como um objeto a ser cobiçado, mas como um sujeito que também é gente, para que ele se sinta atuante na sociedade da forma que ele queira fazer isso. O objetivo principal do meu trabalho é retratar negros e negras de forma positiva e com voz ativa – explica Alexon.
Definitivamente, basta olhar os traços que compõem os desenhos de Alexon para perceber que eles passam longe da imagem estereotipada e simplista com a qual estamos acostumados. Por meio dessa comunicação visual, ele luta para transformar a representação do negro, que não precisa estar visto sempre numa posição de entretenimento.

– Se o meu objetivo é o de empoderar as pessoas negras é porque sei que, em outros setores, elas não são tratadas da mesma forma. Além de trazer informação, o meu intuito é também estimular em algumas pessoas, que não são negras, essa valorização. Quero mostrar que o negro pode ser pesquisador, artista, estilista ou o que quiser – conclui Alexon, que, a cada vez que ouve ou presencia algum tipo de discriminação racial, a transforma em inspiração e incentivo para desenhar com ainda mais empenho.

Inclusão social não significa inclusão racial

O cientista político Guilherme Howes é enfático ao afirmar que promover inclusão social não necessariamente resulta em inclusão racial. Se fosse assim, segundo o especialista, não se jogariam bananas ou se imitariam símios nas beiras dos gramados para atletas que ganham milhões e que, mesmo assim, sofrem racismo. O professor afirma que vivemos um estado de barbárie e, por uma série de questões, estamos longe de superar a questão no Brasil.
Ele ressalta o atraso da nossa sociedade ao lembrar que declaramos que “todos somos iguais perante a lei” 212 anos depois dos norte-americanos. Da mesma forma, quando os Estados Unidos e Europa já universalizavam a educação, nós recém comemorávamos o fato de deixar de vender vidas humanas em praça pública.

– Vivemos um atraso de mais de um século nas políticas de enfrentamento das questões raciais. Levaremos, talvez, mais um longo tempo para que esta consciência que estamos começando a adquirir surta efeitos – avalia Howes.

Abaixo, o professor de Gestão Pública elenca uma série de questões essenciais para que o Brasil alcance a almejada equidade racial:

 

 

 

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